>

Design Universal na Indústria de Jogos: um Sonho Realizado

Design Universal na Indústria de Jogos: um Sonho Realizado

Este artigo traz para a Horizontes a preocupação com acessibilidade e inclusão no desenvolvimento de jogos.  Dra Vanessa Maike, profissional com ampla experiência em jogos e Design Universal, utiliza um caso real para mostrar que jogos podem, sim, ser projetados de modo a atender a maior diversidade possível de pessoas. E isso beneficia todas e todos! Boa leitura!
(Roberto Pereira, Editor Geral)


por Vanessa Maike (SUNY Oswego)

O que o último lançamento da Sony, “The Last of Us Part II”, tem a nos ensinar sobre Design Universal em um campo que, historicamente, negligenciou a Acessibilidade

Em 2013, a Sony Computer Entertainment publicou o jogo intitulado “The Last of Us”, desenvolvido pela Naughty Dog e exclusivo para o PlayStation 3 (PS3). Misturando elementos de ação e sobrevivência, o game conta uma intensa história de dois personagens em uma brutal jornada pelos Estados Unidos em um momento pós-apocalíptico [THE LAST OF US PS3, 2020]. 

Juntamente a “Dota 2” e “Grand Theft Auto V”, “The Last of Us” é considerado um dos melhores jogos de 2013, fazendo com que a sua sequência fosse ansiosamente aguardada pelos fãs. Em junho de 2020, exatamente sete anos depois do lançamento do título original, chegou “The Last of Us Part II” (TLOU2). Além de apresentar-se como uma sequência digna, o novo título trouxe uma inovação inesperada: acessibilidade!

O Jogo mais acessível de todos os tempos?

Em um vídeo emocionante [SAYLOR, 2020], Steve Saylor, conhecido nas mídias sociais como “Blind Gamer” (“Gamer Cego”), registrou sua reação ao iniciar TLOU2 pela primeira vez. Depois, em seu vídeo de review do jogo [THE LAST OF US PART II – MOST ACCESSIBLE GAME EVER!, 2020], Steve admite que foi convidado pela Naughty Dog para participar da produção do game como consultor de acessibilidade. Sua frase que deu título ao review foi “este é o jogo mais acessível de todos os tempos!”.

Ainda de acordo com Steve, ele próprio atuou como playtester junto com outras pessoas com deficiência, e inicialmente o jogo tinha muitos problemas. Entretanto, por estarem em estágios iniciais de desenvolvimento foi possível corrigir as falhas logo, adaptando as soluções e integrando a acessibilidade ao processo de desenvolvimento. Referindo-se à quantidade enorme de configurações de acessibilidade que TLOU2 oferece, Steve caracteriza a possibilidade do jogador de customizar sua sessão de jogo como algo que “remove barreiras para você construir play”.

“Remover barreiras” é, na minha opinião, um dos principais objetivos da filosofia denominada Design Universal. O conceito básico do Design Universal é realizar o “design de produtos e ambientes que sejam usáveis pela maior extensão possível de pessoas de todas as idades e habilidades” [STORY, MUELLER & MACE, 1998]: algo que não deve ser visto como um objetivo final, mas como um processo a ser seguido.

A Naughty Dog, conscientemente ou não, seguiu a filosofia do Design Universal ao preocupar-se com o design inclusivo desde o início da produção de TLOU2. Parece que o esforço foi recompensado, pois as configurações ajudam a melhorar a experiência para todos os jogadores, e não somente para aqueles com deficiência.

Design Universal em ação

Em primeiro lugar, TLOU2 conta com mais de 60 configurações de acessibilidade que o jogador pode ajustar individualmente de acordo com suas preferências [ACCESSIBILITY OPTIONS FOR THE LAST OF US PART II, 2020].

Por exemplo, existem opções para customizar todos os controles, desde o mapeamento de comandos para cada botão do joystick, até as entradas específicas para cada tipo de situação do jogo: combate, mira, corrida, construção, ouvir, gerenciar itens na mochila, atirar com arco e segurar a respiração.

O jogo também oferece customizações para diversos tipos de assistência (e.g. auto-mira), de opções visuais (e.g. contraste, lente de aumento, ajuste para daltônicos), enjôo por movimento (motion sickness), navegação, text-to-speech, volume de áudio, combate, Heads Up Display (HUD), legendas e dificuldade do jogo.

Em segundo lugar, os desenvolvedores enfrentaram o desafio de auxiliar os jogadores a encontrarem as configurações mais relevantes para suas necessidades, criando três agrupamentos predefinidos de acessibilidade para 1. visão, 2. audição e 3. habilidades motoras. Mesmo depois de ativar uma dessas opções, o jogador ainda pode customizar cada configuração individualmente, se assim desejar.


Os três agrupamentos predefinidos de acessibilidade com exemplos de configurações que eles ativam [ACCESSIBILITY OPTIONS FOR THE LAST OF US PART II] © Naughty Dog © PlayStation

Os recursos de acessibilidade que TLOU2 oferece podem ser colocados na perspectiva dos sete princípios do Design Universal [CENTER FOR UNIVERSAL DESIGN, 1997]. Para cada princípio, há algo sendo considerado¹:

  1. Uso equitativo: o jogo deve ser seguro e atraente para todas as pessoas, independentemente de suas características. TLOU2 oferece os mesmos recursos de customização a todos os jogadores, sem distinção.  
  2. Flexível: o jogo deve atender a diferentes necessidades das pessoas. TLOU2 explora a configuração e customização como forma de tornar o jogo usável da melhor maneira possível para a maior extensão possível de pessoas, considerando tanto questões motoras (mapeamento entre comandos e respostas), quanto perceptuais (brilho, velocidade do jogo, som) e cognitivas (nível de dificuldade, recursos de ajuda).
  3. Uso intuitivo e simples: os recursos de customização devem ser fáceis de entender e utilizar, não exigindo conhecimento prévio específico e mantendo a compatibilidade com padrões já estabelecidos (e.g., utilizar terminologia e ícones comuns). Os recursos de customização de TLOU2 possuem explicações sobre como podem ser utilizados e quais seus efeitos. 
  4. Informação perceptível: toda informação relevante sobre os recursos de customização deve estar claramente perceptível em diferentes formas, pois se a pessoa não conseguir encontrar, não conseguirá utilizar. TLOU2 oferece diferentes organizações para os recursos de customização, auxiliando a pessoa a encontrar as configurações relacionadas a questões visuais, auditivas e motoras, contemplando recursos em diferentes formatos. 
  5. Uso seguro: ações prejudiciais devem ser evitadas, desencorajadas e facilmente reversíveis. TLOU2 oferece recursos de configuração para evitar danos colaterais aos jogadores (ex: enjoo), e também permite que desfazer customizações, restaurando as configurações anteriores.
  6. Baixo esforço físico: o jogo deve oferecer possibilidades de customização que reduzam o esforço físico da pessoa ao jogar, evitando a fadiga, a repetição e o esforço desnecessários. TLOU2 permite que os comandos do jogo sejam todos configurados de acordo com as preferências e necessidades de cada pessoa.  
  7. Espaços e dimensões apropriados: o tamanho dos elementos para contato físico ou perceptual devem ser adequados para diferentes formas e tamanhos do corpo, não exigindo posições desconfortáveis para o jogo. TLOU2 oferece vários recursos visuais e sonoros, como lente de aumento, diferentes modos de contraste para destaque de inimigos e itens “interagíveis”, bem como pistas de áudio configuráveis para diversas situações de jogo.

O poder que a Naughty Dog deu às pessoas de adaptar a experiência do jogo não somente às suas necessidades, mas também às suas preferências, é ao que Steve Saylor se referiu quando falou sobre “remover barreiras”. As diversas opções de configuração permitem, por exemplo, que uma pessoa que possui dificuldades com os combates do jogo possa deixar especificamente esses momentos mais fáceis, podendo aproveitar todo o restante da maneira padrão.

Acessibilidade e Experiência do Usuário

No seu vídeo de reação a TLOU2 [SAYLOR, 2020], Steve Saylor diz “é por isto que eu e outras pessoas da comunidade de acessibilidade estamos advogando, por tanto tempo”. A questão, portanto, é esta: por que este tipo de atenção com o design inclusivo não é o padrão na indústria de games? Afinal, criar uma experiência fantástica para o maior número possível de jogadores parece a opção mais sensata, principalmente em termos de lucro.

Em um estudo de 2013 sobre barreiras para acessibilidade em jogos eletrônicos mainstream [PORTER & KIENTZ, 2013], os autores reportam sobre as dificuldades que indivíduos que trabalham na indústria de games enfrentam. Dentre os motivos relatados para a presença de preocupação com acessibilidade, estavam ter membros do time com alguma deficiência (sendo a mais comum o daltonismo), ter pressão vinda de cima na hierarquia para aderir a padrões, e ter middleware (i.e., o framework por trás da engine do jogo) que suporte os recursos de acessibilidade. É possível, portanto, dizer que a Naughty Dog fez sua lição de casa, já que essas três dificuldades foram ultrapassadas.

A partir do depoimento de Steve Saylor, é possível inferir que, ao trazer consultores externos para as questões de acessibilidade, foi superada a questão de ter pessoas no time com alguma deficiência. Quanto à pressão por seguir padrões de acessibilidade, é difícil saber de onde ela veio, mas claramente foi algo importante para “o alto escalão” da produção do jogo, já que na própria página oficial de TLOU2 consta que:

“Desde o início, o objetivo da Naughty Dog foi assegurar que tantos fãs quanto possível tenham a oportunidade de experienciar o jogo por meio do mais robusto conjunto de recursos de acessibilidade até a presente data.” (tradução da Autora)

[ACCESSIBILITY OPTIONS FOR THE LAST OF US PART II, 2020]

Ainda na mesma página, consta que os recursos de TLOU2 foram construídos em cima da fundação estabelecida com o título “Uncharted 4: A Thief’s End”, da mesma produtora. Portanto, é possível dizer que acessibilidade tem sido um investimento de longo prazo para a Naughty Dog, e provavelmente seu middleware tem sido customizado para suportar cada vez mais recursos dessa área.

No mínimo, pode-se concluir que a empresa está colhendo os frutos de tal investimento. Sem entrar no mérito de avaliar a qualidade do jogo em todos os seus múltiplos aspectos, em um deles certamente TLOU2 se destaca, e faz história. O cuidado e a preocupação com acessibilidade neste título mainstream estabelecem um marco que, arrisco dizer, outras grandes produtoras sentirão a pressão de correr atrás.

Independentemente do que aconteça no futuro, a Naughty Dog mostrou que é possível seguir seguir os princípios do Design Universal e tornar isso uma vantagem competitiva sem sacrificar a experiência para nenhum perfil de jogador. Portanto, fica o desejo de que este título não seja “o último de nós”, mas sim o primeiro de muitos.

Nota
¹ O mapeamento dos recursos do jogo TLOU2 para os sete princípios do Design Universal é resultado da conversa entre a Autora e o Editor durante a edição da matéria. O mapeamento é ilustrativo e não tem o propósito de ser exaustivo ou definitivo.

Referências

ACCESSIBILITY OPTIONS FOR THE LAST OF US PART II. PlayStation. https://www.playstation.com/en-us/games/the-last-of-us-part-ii-ps4/accessibility. Acessado em Julho/2020.

CENTER FOR UNIVERSAL DESIGN. (1997). The principles of universal design (Version 2.0). Raleigh: North Carolina State University.

PORTER, J. R., & KIENTZ, J. A. (2013, October). An empirical study of issues and barriers to mainstream video game accessibility. In Proceedings of the 15th international ACM SIGACCESS conference on computers and accessibility (pp. 1-8).

SAYLOR, S. https://twitter.com/stevesaylor/status/1271404306697158659. Acessado em Julho/2020.

STORY, M. F., MUELLER, J. L., & MACE, R. L. (1998). The Universal Design File: Designing for People of All Ages and Abilities.

LIST OF VIDEO GAMES CONSIDERED THE BEST. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_video_games_considered_the_best Acessado em Julho/2020.

THE LAST OF US PART II – MOST ACCESSIBLE GAME EVER! – ACCESSIBILITY IMPRESSIONS. Saylor, S. https://www.youtube.com/watch?v=PWJhxsZb81U. Acessado em Julho/2020.

THE LAST OF US PS3. PlayStation. https://www.playstation.com/en-us/games/the-last-of-us-ps3. Acessado em Julho/2020.

Sobre a Autora

Vanessa R. M. L. Maike é Pesquisadora e Professora no Departamento de Ciência da Computação da Universidade SUNY Oswego, localizada no estado de Nova Iorque (Estados Unidos). Bacharel, M.Sc. e Ph.D. em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), seus principais interesses de pesquisa são Human-Computer Interaction (HCI), Accessibility, Universal Design, Game Design, Natural User Interfaces (NUIs) e Virtual Reality (VR).

Como citar este artigo:
Maike, V.; Design Universal na Indústria de Jogos: um Sonho Realizado. SBC Horizontes, jul. 2020. ISSN 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/07/design-universal-na-industria-de-jogos/. Acesso em: DD mês. AAAA.

Compartilhe: