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DEBATE

EDIÇÃO ABRIL 2009

Regulamentação da Profissão

A regulamentação da profissão de Informática é um assunto extremamente importante e em constante discussão na nossa sociedade. Para a primeira edição da coluna Em Debate, convidamos o profissional Antônio Neto e o professor Ricardo Anido para exporem seus motivos a favor e contra a regulamentação.

SIM à Regulamentação, por Antônio Neto

Discussão recorrente desde a década de 70 do século passado, a regulamentação profissional no setor de informática desperta debates acalorados entre radicais, sectários e pessoas de bom senso de ambos os lados. As posições são fortes, os argumentos usados para defendê-las extremamente variados e o consenso entre as partes ainda não dá para vislumbrar. O Congresso Nacional, nas últimas quatro décadas, já se debruçou sobre mais de uma dezena de projetos de Lei versando sobre o tema e não chega a um consenso mínimo que permita aprová-los.

A nosso ver, não há como não defender a regulamentação e, por acharmos isto tão óbvio, não iremos nos centrar aqui em apenas defender a idéia, mas, principalmente, mostrar como a posição contrária não se sustenta.

Os defensores da não regulamentação para os profissionais de informática centram seus motivos, para defender sua posição, em algumas alegações principais, quais sejam: não é adequada a existência de regulamentação em nenhuma área e não devemos ficar criando mais autarquias federais; a regulamentação só deveria se dar para profissões que envolvam sério risco à população e/ou ao país, o que não seria o caso da informática, segundo eles; não é conveniente criar uma “reserva de mercado”, pois eliminaria a criatividade e a inovação visto que impediria a entrada de “gênios” que não atendessem as exigências para exercer a profissão; e, por fim, a regulamentação atrapalharia a saudável relação patrão empregado no setor.

Uma série de equívocos como veremos a seguir. As argumentações partem de uma premissa extremamente errada, a de que vivemos no país ideal e não no Brasil real, e se baseia, na maioria dos casos, em exceções e não na regra, no que é majoritário. Senão vejamos.

Nosso país é fortemente burocrata e com uma pesada cultura cartorial herdada dos portugueses e enraizada em nossas instituições por mais de 500 anos. As relações na sociedade não têm como não refletir isto. Por isto os intermináveis papelórios, os prolixos verborragismos e, por que não, os conselhos profissionais. Não ter uma profissão regulamentada poderia ser mais adequado em um país em que não houvesse conselhos, mas aqui, onde todos os aspectos profissionais gravitam em torno dos sindicatos e dos conselhos, é uma loucura e faz-nos chegar ao quadro que estamos e que citaremos um pouco mais na seqüência. Parodiando o Barão de Itararé, ou regulamentamos a profissão ou acabemos com todos os conselhos. O que não dá mais é ver pessoas falando contra a regulamentação na informática e se identificando com a carteira do seu conselho profissional.

Algumas pessoas mal informadas alegam que a informática não precisa de regulamentação porque não é como a medicina e a engenharia que, no seu exercício, envolvem risco às pessoas. Vou mais além, como os advogados, também, que não matam pessoas, mas, com uma atuação de má fé, podem prejudicar sobremaneira uma ou várias pessoas.

Pois bem, quem faz os programas que o engenheiro usa para calcular suas edificações? Quem programa os equipamentos dos médicos? Quem programa sinais de trânsito, pontes, guindastes, locomotivas, etc., etc., etc., que podem fazer estragos monstruosos? Quem foram os responsáveis pela quase eliminação do governador Leonel Brizola da disputa pelo governo do RJ (lembram-se da Proconsult?)? E de quais profissionais é a responsabilidade pela programação dos radares da Amazônia, do recolhimento do Imposto de Renda e das eleições gerais no país? E de todo setor bancário? Isto para ficar na camada mais aparente, pois em todas as camadas a informática afeta diária e decisivamente a vida do cidadão, das empresas e dos governos. E este profissional não pode ser responsabilizado porque não se sabe o que ele, de fato, é? Sinceramente, vamos falar sério!

Vamos à prática de argumentar pelas exceções. Os críticos da regulamentação costumam alegar que Bill Gates não existiria se ele vivesse em um país com a profissão regulamentada. E que a regulamentação impediria a atividade de outras infinidades de geniozinhos autodidatas por ai. Mentira! Quantos geniozinhos de fato existem? Quantos você conhece? Esta alegação nos lembra o argumento de detratores da Lei de Crimes por Computador quando argumentam que penalizar o indivíduo que quebra segurança de sites é desestimular a criatividade de alguns gênios e perder competitividade em caso de uma guerra. Maravilha! Por analogia, vamos incentivar os ladrões de banco a desenvolverem técnicas modernas de quebrar segredo dos cofres para podermos resgatar o dinheiro que nos foi levado pelos grandes bancos americanos em caso de uma guerra com os Estados Unidos e premia-los por isto, ok?

E o Bill Gates? Todos os modelos de regulamentação que temos proposto pressupõem a exigência de capacidade técnica comprovada apenas para os gerentes, líderes e/ou responsáveis pelo projeto. Pelo que nos consta, Bill Gates jamais foi o responsável (nem o principal executivo da empresa ele era) pelos seus projetos, e se fosse poderia contratar um gerente credenciado e continuar trabalhando normalmente. E os geniozinhos não seriam, em hipótese alguma, excluídos do mercado. Eles seriam, como qualquer pessoa de juízo e bom senso iria exigir, supervisionados por alguém que tivesse noções multidisciplinares e que colocasse ordem na casa. E não poderia fazer qualquer coisa que lhe desse na telha, sem a menor responsabilidade, como, com certeza, todos nós gostaríamos que acontecesse no desenvolvimento de algo que afetasse nossa saúde, segurança, dinheiro, governo, etc.

Na verdade, esta questão da não reserva de mercado é mais séria. O que os detratores da idéia querem é manter a reserva para a sua profissão e não permitir a reserva para as profissões de informática. Temos ótimos profissionais que sabem tudo de alguma área específica, mas que não podem trabalhar naquela área por não ter reconhecimento profissional. Agora os outros profissionais como professores, médicos e engenheiros podem, e exigem, invadir nossa área sem nem pedir licença. É um disparate! Se querem exercer a profissão, o que é saudável para dar o tom multidisciplinar das aplicações da informática, que se credenciem para tanto e a nossa idéia é que isto seja estimulado e não haja nenhuma grande restrição.

E, por último, mas não menos importante, analisemos a idéia de alguns empresários de que a regulamentação vai afetar profundamente seu relacionamento com seus funcionários. Na verdade, uma regulamentação deveria interferir sim na inflexão da curva de aviltamento dos salários no setor nas últimas décadas e na retomada do charme da profissão. Hoje temos analistas de sistemas, profissionais de nível superior, ganhando menos de dois salários mínimos mensais e, em parte por isto, vagas sobrando aos borbotões nas faculdades do país. E pessoas com nível superior, depois de um investimento próprio ou do governo enorme para que ele se formasse, vendendo bugigangas, dirigindo táxis, gerenciando restaurantes, etc.

E o governo fazendo de tudo para incentivar a formação de um contingente em torno da centena de milhares de técnicos para atender as necessidades das empresas brasileiras. Sem regulamentação será muito difícil se conseguir isto! É bem mais do que dobrar a quantidade de estudantes matriculados nas faculdades de informática do país. Muito difícil que o jovem que vai entrar na faculdade agora releve a questão da insegurança jurídica em um país cartorial (o que ele será enfim?) e escolha uma profissão que não tem a vistosa carteirinha que o colega dele que fará contabilidade, engenharia, medicina, nutrição ou uma infinidade de outros, vai ter. E, se não bastasse tudo isto, até o governo se ressente de não ter como criar a carreira de estado para uma profissão que, no nosso modelo burocrático, não existe de direito apesar de existir, aviltada, na prática.

Portanto, se queremos continuar como um dos países mais avançados em termos de informatização, se queremos continuar a prover qualidade e produtividade sistêmica para a economia como um todo, se queremos nos tornar um player de respeito no mercado internacional de serviços de informática, não temos dúvida: temos que regulamentar urgentemente a profissão na área das tecnologias da informação. E há clima para isto no Congresso Nacional. Basta apenas que os inimigos da idéia vistam a roupagem de patriotas, parem de fustigar a idéia e passem a dar sugestões de como fazer da melhor maneira. Não temos dúvida disto!



NÃO à Regulamentação, por Ricardo Anido

A maioria dos países regula de uma forma ou outra o exercício de algumas profissões. A razão principal é que, em algumas profissões, a atividade de um profissional pode causar dano grave e de difícil reparação ao seu cliente. A razão de o estado intervir e regular uma determinada atividade tem o propósito de defender o cidadão comum (cliente) de maus profissionais. Ou seja, a regulamentação existe para proteger a sociedade. Exemplos comuns de profissões regulamentadas em vários países são dentistas e médicos.

No Brasil, o uso da regulamentação como forma de proteção da sociedade parece ter passado para segundo plano. Os brasileiros simplesmente valorizam profissões regulamentadas, como se a regulamentação, e existência de conselho profissional, colocasse essa profissão em um patamar superior em relação a outras profissões. De acordo com um levantamento do Observatório Universitário (Instituto Data Brasil), no ano de 2004, os cursos de graduação vinculados às dezoito profissões regulamentadas com exigência de diploma de curso superior representavam 67% do total de cursos de graduação existentes no país. Mais impressionantemente, o número de matrículas em cursos vinculados a profissões regulamentadas representavam 79% de todas as matrículas. Ou seja, existe muito pouca oferta de cursos em profissões não regulamentadas, mas isso parece ser explicado pela demanda, já que os alunos preferem ingressar em cursos de profissões regulamentadas.

O fato de profissões regulamentadas serem valorizadas no Brasil não justifica a regulamentação de toda e qualquer atividade profissional. Em uma profissão regulamentada, a permissão para atuar na profissão é baseada, no modelo mais freqüente, na obtenção de um diploma de graduação em um curso específico. Para exercer aquela atividade, o profissional deve obrigatoriamente registrar-se junto ao Conselho de Profissão. Para permitir o funcionamento do respectivo Conselho, os profissionais devem pagar uma taxa de contribuição anual. Para algumas profissões, como Medicina, a regulamentação rígida exemplificada acima, com base em diploma, é o melhor meio encontrado para proteção da sociedade. Em outras profissões, a regulamentação baseada em diploma é não somente desnecessária mas prejudicial aos interesses da sociedade.

As profissões normalmente regulamentadas em outros países têm ainda duas características importantes. A primeira é que o exercício da atividade tem que requerer um conhecimento técnico, científico ou tecnológico avançado; a segunda é que os clientes procuram diretamente os profissionais para obterem o serviço. No caso específico da informática, a primeira característica (conhecimento técnico sofisticado) está obviamente presente; no entanto, a segunda característica (contratação de serviços diretamente pelo cidadão) certamente não está presente. Pessoalmente, não conheço um único caso de um cidadão (pessoa física) que tenha contratado um profissional de informática para, por exemplo, desenvolver um software. Um cidadão normalmente compra um software – e nesse caso, como para qualquer outro produto, já há dispositivos legais para resolver eventuais disputas sobre a qualidade do software adquirido. Uma empresa normalmente contrata um profissional para desenvolver um software, ou adquire um software de outra empresa. Também nesses casos, de relação comercial entre empresas, ou de relação trabalhista entre uma empresa e o profissional, já existem meios legais suficientes, na legislação existente, para que as empresas possam resolver pendências e proteger-se de maus profissionais.

Nos dias de hoje, a multidisciplinaridade é um dos principais fatores no desenvolvimento de inovação e na melhoria de desempenho de pessoas, sistemas e processos. E a área de informática é um dos mais importantes pontos de confluência entre diversas disciplinas, gerando novas competências e modificando antigas profissões. Em muitas das novas competências é essencial ter conhecimento em mais de uma área, como biologia e informática (bioinformática), robótica e computação (mecatrônica), e outras. A regulamentação da profissão na área de Informática em moldes antigos, como uma profissão estanque, dificultaria muito a saudável interação existente com outras áreas.

A restrição do exercício da profissão na área de Informática a detentores de diplomas de alguns cursos não condiz com a realidade, nem no Brasil nem no exterior. Em nenhum país com economia avançada essa restrição existe: Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Japão, Itália, Canadá, por exemplo, não restringem a atuação de profissionais da área. Nossos concorrentes diretos na busca por atração de oportunidades na área de informática, em especial Índia, China, Irlanda e Rússia, também não colocam qualquer restrição à atuação na área. Se a profissão fosse regulamentada na Suíça, Tim Berners-Lee não teria inventado e implementado a primeira versão da World Wide Web, já que ele tem um diploma de Física. Raymond Samuel Tomlinson, com diploma de Engenharia Elétrica, fosse a profissão regulamentada nos EUA, não teria construído o primeiro sistema de correio eletrônico. Bill Gates, primeiro programador e fundador da Microsoft, não terminou seu curso de graduação em Harvard e não poderia ter trabalhado na área e iniciado a maior empresa de software do mundo.

E como ficaria o movimento de software livre? O desenvolvimento de software de forma cooperativa e distribuída é um dos exemplos mais interessantes e bem sucedidos do uso da tecnologia da Internet para o bem da sociedade. Pessoas com interesses comuns e conhecimento de programação têm desenvolvido soluções avançadas de software, de alta qualidade, que são utilizadas gratuitamente, tanto por empresas, governos ou indivíduos. Através de mecanismos às vezes complexos de revisão para garantia de qualidade, a comunidade de software livre consegue permitir que qualquer pessoa contribua no desenvolvimento dos aplicativos. As contribuições são aceitas considerando exclusivamente a qualidade do código produzido, não importando a nacionalidade, formação escolar ou profissão do contribuinte. Muitos médicos, engenheiros, músicos, físicos, biólogos, dentistas, matemáticos e outros profissionais participam ativamente do desenvolvimento de software livre, com o conhecimento em programação adquirido de forma auto-didata.

Há ainda vários outros argumentos contra a regulamentação rígida, baseada no diploma. A regulamentação não se aplicaria a profissionais trabalhando em outros países, de forma que as empresas poderiam contratar profissionais fora do país para desenvolver produtos que seriam vendidos no país, criando uma reserva de mercado ao contrário, para estrangeiros. O Brasil já tem atualmente um grande déficit de profissionais na área de informática, e esse déficit tende a crescer, considerando que o mercado de software e serviços de TI no país deve crescer 15% ao ano, saltando de R$ 10,46 bilhões em 2007 para R$ 15,91 bilhões em 2010 (previsão 3B/IDC); restringir a atuação de profissionais auto-didatas competentes, além de coibir a multidisciplinaridade, certamente não vai contribuir para reduzir o déficit projetado.

A SBC, desde sua fundação, em 1979, tem se debruçado sobre o tema da regulamentação da profissão na área de Informática. A diretoria da SBC considera que, no interesse da sociedade brasileira, o exercício de atividades econômicas, ofícios ou profissões relacionadas com a área de Informática deva ser livre em todo o território nacional, independentemente de diploma de curso superior, comprovação de educação formal ou registro em conselhos de profissão. A diretoria da SBC apóia um modelo de regulamentação da profissão em moldes mais condizentes com a sociedade moderna e com as especificidades da área, que garanta o real livre exercício das profissões de informática, e impeça que outros conselhos de profissões existentes tomem para si algumas dessas atribuições, como vem sendo tentado, em grande prejuízo para a sociedade. A diretoria da SBC propõe ainda a criação de um Conselho de Profissão, de filiação não obrigatória, que seria responsável pela criação, manutenção e aplicação de um Código de Ética para a área.

A SBC entende que, para proteger os trabalhadores da área de informática, e lutar por melhores salários e condições de trabalho, o único caminho é fortalecer os sindicatos e as associações de classe. A proteção artificial que uma regulamentação da profissão baseada na exigência de diploma fornece aos trabalhadores da área de informática, pela restrição à atuação de profissionais competentes que não têm diploma, ou têm diploma em outra especialidade, é prejudicial à sociedade como um todo, além de fazer o país rapidamente perder competitividade, com grande prejuízo para as empresas, fechando um círculo vicioso que acabaria por diminuir o número de postos de trabalho na área de informática.

Sobre os Autores

Antônio Neto é presidente da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados de São Paulo e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI).
Ricardo Anido possui graduação em Engenharia Mecânica - Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (1978), mestrado em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (1983), doutorado em Computing pela Imperial College (1989) e pós-doutorado pela Institut National Des Télécommunications (1996). Atualmente é Professor Associado da Universidade Estadual de Campinas. Atuando principalmente nos seguintes temas: software básico, software embarcado, redes de computadores, concentrador de terminais remotos. É Diretor de Relações Profissionais da SBC.
Esta é uma publicação eletrônica da Sociedade Brasileira de Computação – SBC. Qualquer opinião pessoal não pode ser atribuída como da SBC. A responsabilidade sobre o seu conteúdo e a sua autoria é inteiramente dos autores de cada artigo.
v02n01/17.txt · Última modificação: 2020/09/22 02:31 (edição externa)

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