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EM SOCIEDADE

EDIÇÃO AGOSTO 2009

DOSVOX: a História de uma Revolução entre os Cegos

Este artigo examina a história de uma tecnologia chamada Dosvox, fruto de um projeto brasileiro desenvolvido no NCE/UFRJ, Brasil, a partir de 1993, permitindo que portadores de deficiência visual acessem e utilizem o computador.

O presente artigo foi elaborado com base no Histórico do DOSVOX, escrito pelo Prof. José Antônio Borges e exibido no site do Dosvox [2]. Aqui, descreve-se a história da criação do sistema operacional Dosvox, uma tecnologia social [1] que permite a inclusão dos deficientes visuais (DVs) ao mundo dos computadores. Este sistema operacional para microcomputador, baseado no DOS e no uso intensivo de síntese de voz e navegação via teclado, foi desenvolvido no Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NCE/UFRJ), com a finalidade de facilitar o acesso de deficientes visuais aos microcomputadores. Segundo o coordenador do projeto Dosvox, Prof. José Antônio Borges, “o sistema é um ambiente desenvolvido especialmente para cegos e permite uma interatividade constante entre o computador e o deficiente visual. Através de seu uso é possível observar um aumento muito significativo no índice de independência e motivação das pessoas com deficiência visual, tanto no estudo, trabalho ou interação com outras pessoas” [2]. Estatísticas demonstram que atualmente a tecnologia já conta com mais de 20 mil usuários espalhados pelo Brasil, Portugal e América Latina. Mostra-se, então, a importância desse projeto tecnológico brasileiro para a inclusão digital de pessoas com deficiência visual.

Origem da Criação do Dosvox

De acordo com Lívia Oliveira [3], embora a constituição brasileira de 1988 já previsse que todo cidadão brasileiro tem direito à educação, o número de estudantes com deficiência que conseguem concluir o ensino médio e chegar à universidade é baixo. Isto pode ser explicado pelo fato de a maioria dos professores não estar capacitada adequadamente para educar alunos deficientes visuais, somado à escassez de material didático em Braille e áudio. Assim, a educação básica a tais alunos acaba por ser insatisfatória. Uma vez impedidos de terem acesso a uma educação básica com nível semelhante ao dos demais alunos, os DVs passam a ter menos chances no vestibular. Considerando o contexto no qual viviam os estudantes DVs até o início dos anos 90 - em que o material didático destes constituía-se basicamente de impressos em Braille (que são raros e caros) e fitas de áudio com textos lidos em voz alta e gravados por pessoas que enxergam - havia de fato uma enorme barreira para o ingresso e permanência dos DVs nas escolas e universidades. A legislação que obriga as universidades a estarem preparadas para receberem alunos com deficiências físicas surgiu apenas em 2003, com a Portaria MEC No 3.284 [5], e vem sendo lentamente atendida pelas universidades.

Há ainda um outro problema: mesmo quando o DV tem equipamentos de uso individual para escrita Braille, o fato de ele ler e escrever em um sistema com simbologia diferente do alfabeto comum acaba dificultando sua comunicação escrita com as pessoas normovisuais que os rodeiam, tais como os colegas de turma ou os professores. Como Joyce Fernanda, uma DV, nos conta, “Sempre houvera uma barreira entre as coisas que ele [um deficiente visual] queria escrever e o fato das pessoas que enxergam não poderem ler” [4]. Por isso, antes de existir a tecnologia dos leitores de telas em português, praticamente somente outros cegos entendiam o que era escrito (em Braille) pelos primeiros, impossibilitando o intercâmbio de textos escritos com os segundos, sem a necessidade de mediadores e leitura em voz alta. (São raros os normovisuais que sabem Braille). Uma conseqüência negativa do uso do Braille é a dependência dos DVs em relação aos “ajudantes”, pois aumenta-se a demanda de mão-de-obra para atender aos cegos (transcrevendo textos para Braille), que costuma ser escassa.

Em suma, o contexto do aluno DV no processo educacional, antes da criação e distribuição de programas leitores de tela, assinalava a extrema dependência do DV no que se refere a mediadores do processo de produção e recepção de textos escritos dos estudantes DV, caso o professor não concordasse em aplicar provas e trabalhos orais. Devido a essas dificuldades, não raro ocorria a evasão escolar de um aluno DV.

A Criação do Vox

Em 1993, Marcelo Pimentel, deficiente visual, ingressou no curso de Informática na UFRJ. No início de seu curso, Marcelo não teve muitos problemas com as matérias teóricas, pois colegas e seu pai o ajudavam. Para escrever, ele utilizava uma máquina especial de datilografia em Braille. As provas eram realizadas oralmente com as respostas transcritas para Braille. No entanto, a parte prática do curso de Computação, que envolve o trabalho direto com o computador, na criação e execução de programas e aplicativos, era por demais complexa para Marcelo, que era, e é, totalmente cego.

Quando Marcelo descobriu que no SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados) existiam cegos que trabalhavam com informática, soube então dos equipamentos tecnológicos que eles usavam: “um terminal de vídeo 3270 conectado a um mainframe IBM, conectado a um sintetizador de voz (equipamento que custava alguns milhares de dólares), uma impressora Braille e um scanner de mesa. A síntese de voz deste sistema era toda em inglês e a voz produzida era de difícil entendimento” [2]. Foi então que o professor de Geometria Analítica, Mário de Oliveira, sugeriu a Marcelo que, diante da inexistência de um programa para microcomputadores que lesse o que estava escrito na tela, reproduzindo uma voz em português no computador, ele próprio desenvolvesse um projeto de iniciação científica cujo objetivo seria exatamente o de criar essa tecnologia. Mário solicitou então à Reitoria da UFRJ a instalação dos equipamentos necessários para que Marcelo pudesse trabalhar no projeto, em uma sala reservada para isso. Marcelo usava o antigo sistema operacional DOS (Disk Operating System) utilizado nos microcomputadores pessoais (IBM PC compatível), mas dependia inteiramente da ajuda de colegas para ler todo o conteúdo que aparecia na tela. Possuía também uma outra alternativa, que consistia em um pequeno programa que produzia um feedback sonoro através do auto-falante do computador, mas o som era de péssima qualidade.

Quando Marcelo iniciou o segundo período de seu curso, deparou-se com uma disciplina obrigatória: Computação Gráfica (CG). Essa disciplina exige altas habilidades visuais para a sua aprendizagem e conseqüente aprovação. Antônio Borges, professor de CG, orientou Marcelo a se dedicar a aprender os aspectos teóricos da disciplina, “e que substituísse os exercícios gráficos do curso por alguma coisa que fosse mais útil para ele” [2]. Antônio testemunhou o uso dos equipamentos eletrônicos de Marcelo, bem como o funcionamento do programa de feedback sonoro, com sua péssima qualidade sonora, constatando a precária situação de seu aluno DV. O professor pensou então em desenvolver algo mais aprimorado que permitisse uma melhor interação entre Marcelo e o computador. Descartou de imediato a idéia do 'Displays Braille', caríssimos na época; deveria ser usado apenas software e hardware de baixo custo. Conforme Antônio, “Não se dominava ainda a tecnologia de síntese de voz no Brasil, a não ser em pesquisas avançadas que eram realizadas apenas nas grandes empresas de telefonia, ou no Centro de Pesquisa da Telebrás (CPqD)” [2], respeitado centro de pesquisas situado em Campinas, São Paulo.

Primeiramente, pensou-se em utilizar a técnica CVSD para possibilitar a interação entre um DV e o computador. Esta técnica é uma aplicação do processo de codificar sinais de áudio digitais que contém fala usando uma quantidade menor de bits do que a quantidade que estas informações apresentavam originalmente [2]. Porém, esta técnica não pôde ser usada para auxiliar Marcelo quando ainda cursava a disciplina CG: o desenvolvimento da técnica CVSD era demorado. Veio então outra idéia: poderiam usar uma das Workstations Sun (um mini-computador), que o Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ (NCE/UFRJ) possuía na época, já que neste computador existia a possibilidade de reprodução de som. Era uma solução interessante em termos de tecnologia, mas havia um problema: conseguir reservar tempo para que Marcelo pudesse usar os equipamentos já que elas eram muito utilizadas para atividades de pesquisa e por diversas pessoas.

Diante desse fato, eles tiveram que pensar em outra alternativa. Antônio Borges tentou a utilização de um pequeno circuito, denominado R-2R (usado para reprodução de música). Caso fosse possível, ele usaria voz gravada, em vez de sons musicais digitalizados, e os sons em seqüência seriam produzidos pela mesma técnica. A solução seria a soletração de arquivos com o som de cada letra e a produção de feedback das teclas do computador. Dois anos antes, em 1991, havia sido lançada no mercado, nos Estados Unidos, uma placa de som chamada Sound Blaster Pro. Quando um dia Antônio viu um anúncio desse item de hardware num jornal carioca de classificados, ele viu o seu preço de cerca de 300 dólares na época, um pouco caro. Mesmo assim Antônio a comprou, sem saber se serviria ou não para gravar som. Serviu, e dois anos depois ele pode utilizá-la! Dessa forma, Antônio pôde montar um circuito com uma placa de som que gravava a voz e que reproduzia a voz gravada. Porém, faltava ainda fazer a leitura de um texto da tela em tempo real (o que permitiria a soletração dos sons, guardados em arquivos). Esse último passo foi realizado por Orlando José Rodrigues Alves, um estudante de Informática da UFRJ que estava já em um período mais avançado. Orlando desenvolveu o programa Vox, montando rotinas consideradas sofisticadas com a linguagem de programação Assembly. Pelo Vox, ao serem pressionadas ao mesmo tempo as teclas Alt e Esc, produzia-se uma parada momentânea - fração de segundos - do programa que estivesse sendo executado na máquina naquele momento, e então uma rotina do Vox era acionada, permitindo que o conteúdo exibido na tela fosse “lido em voz alta” no alto falante do computador, conteúdo este escolhido por meio do movimento do cursor, através das teclas de setas. Ou seja, quando as teclas de setas moviam o cursor (da tela preta DOS), a letra em que o cursor estivesse apontando no momento seria “pronunciada” no alto falante do computador. Marcelo movia o cursor para direita, por exemplo, e apertava as teclas Alt e Esc, e então o programa Vox identificava a letra apontada pelo cursor, digamos 'M', e a transformava no som de 'M'. Movendo novamente o cursor para a direita com a seta, o Vox “lia” a letra seguinte, digamos 'a', e depois 'r', assim sucessivamente, de acordo com a movimentação que Marcelo imprimia ao cursor, com o auxílio das setas. Assim, ele podia “ouvir” a palavra 'Marcelo' a partir da soletração de cada letra de seu nome, caso ela estivesse escrita na tela do DOS, e ele movesse o cursor da esquerda para direita sobre a palavra 'Marcelo'. E, seguindo princípio similar, as teclas das letras que o DV digitasse também poderiam acionar rotinas do Vox e serem “lida em voz alta” pelo computador, no momento em que fossem digitadas. Por exemplo, Marcelo apertava a tecla 'd' e o computador imediatamente “falava” o som da letra em “voz alta”: “Dê!”, dando um feedback sonoro a Marcelo de que ele havia digitado a letra 'd'.

Enfim, eles conseguiram construir então o núcleo do sintetizador de voz (o Vox), sem o qual o sistema Dosvox não poderia ter sido posteriormente desenvolvido e aprimorado. É importante notar que o programa Vox então criado era ainda bastante rudimentar, diante do que veio a se tornar o Dosvox alguns anos depois.

Difusão do Dosvox para Além da Universidade

Constatando o grande interesse de outras pessoas cegas sobre o projeto que desenvolviam, Antônio e Marcelo, bem como várias pessoas do NCE/UFRJ, tiveram a idéia de criação de um curso sobre tais ferramentas computacionais, para divulgá-las, já que elas poderiam melhorar a produtividade e a qualidade de vida de inúmeras pessoas cegas em suas atividades de estudo, trabalho e entretenimento. Os alunos deste curso poderiam posteriormente tornar-se não apenas usuários do Dosvox, mas também futuros instrutores e divulgadores do projeto que estavam desenvolvendo. Mas surgiram questionamentos: como fabricar o circuito sintetizador se não tinham recursos financeiros para tal? E a questão da inicialização do computador por uma pessoa cega, para que pudesse ser realizada de forma independente da ajuda de uma pessoa normovisual? Havia dúvidas quanto à possibilidade do usuário DV, sem conhecimentos de informática, ligar o computador, esperar pelo tradicional boot, e então usar os comandos do sistema DOS, que não são triviais para pessoas leigas.

Antônio, então, “comprou o material suficiente para fabricar 20 unidades do circuito, foi à empresa de uma pessoa amiga e conseguiu que fosse fabricado um circuito impresso em quantidade pequena; conseguiu a doação, por uma outra empresa, de pequenas caixas que eram usadas para outra finalidade, mas cujo tamanho era similar ao do circuito, e pagou a um técnico para montar. A idéia foi que a de que os alunos que fizessem o curso poderiam comprar, pelo valor de custo, este hardware, ressarcindo assim Antônio pelo gasto” [2]. Era preciso, também, desenvolver uma interface operacional pela qual o usuário DV pudesse orientar-se no menu e encontrar as funções e aplicativos mais usados, dispensando-o da interação direta (e penosa) com o DOS. Daí a criação do Gerenciador do Dosvox, que, baseado em menus com mensagens gravadas, permitiria a ativação dos programas a serem executados, bem como algumas funções de arquivamento e que também economizaria o uso de teclas: uma ou duas já eram suficientes para acionar as operações mais comuns. Nele, a tecla F1 ativava uma ajuda online “falada”, de forma que o DV poderia ouvir as opções sem ter que memorizá-las previamente, e as escolher usando algumas poucas teclas. Por exemplo: uma das opções do Dosvox é a de editar um arquivo de texto; então a ajuda online “fala em voz alta” as várias opções, entre elas a de: “É para editar um arquivo de texto!”, e o usuário cego poderia então apertar a tecla 'E' para acionar a opção e iniciar a edição de um texto. A única memorização realmente necessária para o usuário DV era a da posição das letras e demais símbolos no teclado. Como isso já é feito nos tradicionais cursos de datilografia, então tal memorização não representava nenhuma barreira intransponível aos cegos.

A 1a versão do Dosvox era composta pelos seguintes programas: gerenciador do sistema (com os menus); programa que ajudava a aprender e memorizar as posições das teclas; editor de textos Edivox; gerenciador de arquivos e discos; programa impressor de textos; opção para digitar diretamente comandos do DOS.

Curso de Dosvox como Impulsionador de Modificações e de Novas Idéias

O primeiro curso de Dosvox foi finalmente ministrado em 1994, durando uma semana. No curso, Marcelo e Antônio observavam constantemente seus alunos, bem como suas habilidades e limitações, durante a aprendizagem do Dosvox no uso do computador. Essa observação foi importante pois puderam verificar e descobrir o que poderia ser melhorado no sistema.

E os resultados do curso foram animadores, porém ficaram evidentes alguns problemas no sistema, que não eram simples de resolver. O mais grave deles era a dificuldade na audição de um texto “falado” em voz alta pelo computador através da pura soletração. Ou seja, se estivesse escrito a palavra 'soletração' na tela,ouvia-se: 's', 'o', 'l', 'e', 't', 'r', 'a', 'c', 'a', 'o'. Melhor seria se lesse a palavra toda junta: “so-le-tra-ção”! Por isso, Antônio criou, “com base em um projeto de tradução fonética para português, (…) um programa tradutor, capaz de realizar a tradução de um texto em português para os fonemas correspondentes” [2]. Assim, a partir desses fonemas era possível fazer o programa identificar as sílabas da palavra, faltando apenas gerar o som de cada sílaba de forma digitalizada. Essa geração foi feita gravando, através de um microfone, o som de todas as possíveis sílabas da língua portuguesa, que posteriormente eram tocadas em sequência, gerando então a voz digitalizada. A qualidade sonora não era boa, mas já era possível compreender o que o computador “falava”.

Ampliando a Equipe de Desenvolvedores e Colaboradores: o "Mutirão VOX"

Os usuários tiveram papel fundamental no aprimoramento do sistema. À medida que encontravam dificuldades ou tinham novas sugestões, isso era relatado aos desenvolvedores do sistema, de modo que estes puderam gradualmente aperfeiçoar o sistema, algo similar ao que ocorre no desenvolvimento de software livre [6].

Antônio convocou os seus alunos de CG, colegas de Marcelo, a participarem de um “mutirão vox”, onde esses alunos se engajariam no desenvolvimento de outros aplicativos para o ambiente. A partir deste mutirão inicial, professores e alunos do Curso de Informática da UFRJ se empenharam no esforço de criação de programas para compor o Dosvox, que foi gradualmente incorporando novos aplicativos e funcionalidades até se transformar no que é hoje: um sistema operacional completo, complexo e extremamente rico em aplicativos (como calculadora, agenda, utilitários de acesso à internet,etc) e jogos. O Dosvox possui hoje quase uma centena de programas.

Distribuindo o Dosvox

Cursos de Dosvox continuaram a ser oferecidos por Marcelo e Antônio, por alguns anos, e a procura pelo Dosvox cresceu gradativamente. O programa era vendido quase a preço de custo, para cobrir as despesas de produção de cópias e distribuição (feita em disquetes de 5 ¼ polegadas - hoje obsoletos -, que seriam enviados pelo correio). A partir de 2002, com a internet e as placas de som se tornando acessíveis para boa parte das pessoas, o Dosvox passou a ser disponibilizado através de download gratuito na página do NCE/UFRJ.

Com a necessidade de oferecimento de suporte aos usuários de Dosvox e de todas as pessoas cegas, criou-se o CAEC - Centro de Apoio Educacional ao Cego. Antônio continua até hoje como coordenador do projeto Dosvox. Para quem deseja conhecer melhor o sistema Dosvox - atualmente na na versão 4.1 e compatível com vários outros sintetizadores de voz do mercado - basta visitar o seu site oficial em http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox, de onde se pode baixar gratuitamente o sistema operacional.

Concluindo

Neste artigo, examinamos a história do desenvolvimento de um sistema operacional voltado para pessoas portadoras de deficiência visual. A partir da percepção da situação precária em que se encontravam os estudantes DVs - em particular do aluno Marcelo Pimentel -, professores e estudantes do Curso de Informática do NCE/UFRJ, liderados pelo Prof. Antônio Borges, foram gradualmente elaborando e construindo um sistema operacional de computador pessoal para DVs, tomando como base o DOS. Uma tecnologia é sempre o resultado de um projeto e de seu gradativo desenrolar, normalmente envolvendo muitas pessoas, entre cientistas, engenheiros, projetistas, consumidores, pessoas leigas (deficientes visuais, por exemplo); todas elas contribuindo de diversas formas para a construção tecnológica. Toda tecnologia é uma construção social, em que diferentes atores buscam gradualmente mobilizar e negociar recursos técnicos e sociais disponíveis e, assim, montar a nova tecnologia (no caso visto aqui, a do Dosvox). Além disso, quando elaborada com a finalidade de beneficiar as pessoas promovendo inclusão digital, educacional, profissional e social, ela pode produzir efeitos positivos surpreendentes. O impacto positivo do Dosvox na sociedade é inegável, já que contribuiu muito para impulsionar a inclusão digital de DVs, uma vez que, quando criado em 1994, não existiam programas similares em língua portuguesa.

Cabe destacar o grau da importância do computador para os DVs, que é muito maior para estes que para as pessoas normovisuais - o que vem causando uma verdadeira revolução entre os cegos, já que permite que estes realizem boa parte das tarefas de uma pessoa que enxerga. Além disso, quando se trata de navegação na internet, um mundo inteiro se abre para os DVs, como Joyce Fernanda[4] testemunha: “Eu pude conhecer pessoas e interagir com videntes e cegos, ampliando meu leque de amizades e de experiências. (…) Pela primeira vez, um vidente pôde conversar comigo sem prestar atenção mais à deformidade dos meus olhos que a mim; pela primeira vez, eu podia ter a certeza de que as minhas idéias valiam mais que a minha aparência. Partilhar experiências, sair do meu casulinho, descobrir que cada pessoa era um mundo e que o tratamento ao cego variava de região para região, só não foi mais mágico que a possibilidade de fazer amizades sólidas e duradouras através destas ferramentas tão úteis”. Sem dúvida, a tecnologia Dosvox não apenas melhorou a qualidade de vida dos DVs em termos de ampliação de suas capacidades, mas também aumentou a auto-estima destes.

É importante, por último, chamar a atenção para a forma com que foi criada a tecnologia Dosvox, que é aberta, livre e includente, desenvolvida com a contribuição de uma comunidade de programadores, professores, alunos e DVs. Tecnologias fechadas podem por vezes até beneficiar muitas pessoas, mas em geral elas acabam sendo caras e restritas somente aos que podem pagar, transformando-se em tecnologias excludentes [7].

Recursos e Referências

[1] Dagnino, Renato (org.) (2009) “Tecnologia Social - ferramenta para construir outra sociedade”, Editado pela Companhia de Comunicação, Brasília/DF, Brasil. Versão online.

[2] Site do Dosvox

[3] Oliveira, Lívia C. P. (2007) “Trajetórias Escolares de Pessoas com Deficiência Visual: da Educação Básica ao Ensino Superior”, Dissertação de Mestrado, PUC-Campinas, SP, defendida em novembro de 2007. Versão online

[4] Site pessoal de Joyce Fernanda, “O Sistema Dosvox e a revolução por ele causada entre os cegos”,

[5] MEC Portaria No 3.284

[6] Alkmim, G. P. & Monserrat N., J. (2009) “Software Livre: O que é isso?”, In: SBC Horizontes - Revista eletrônica sobre carreira em computação da SBC, Edição de Abril. Link.

[7] Monserrat N., J. (2008) “Economia da Exclusão vs. Economia da Inclusão”, In: V Encontro Latino-Americanos de Cooperativismo, FUNDACE/ USP, 6, 7 e 8 de agosto de 2008, Ribeirão Preto, Trabalho apresentado oralmente. Link.

Sobre os Autores

Débora Rossini M. Cardoso é estudante do curso de Química (Licenciatura), da Universidade Federal de Lavras. Possui experiência prática em metodologias de ensino de Química para deficientes visuais e, entre suas áreas de interesse, incluem-se as tecnologias assistivas, destacando-se os softwares de auxílio educacional a portadores e deficiência visual.
Iúna Fricke D'Ascenzi é estudante do curso de Ciência da Computação, na Universidade Federal de Lavras; Membro do Pólo Regional de Lavras da SBEM-MG; Membro do Grupo GEEMA-?. Suas principais áreas de interesse são: educação matemática, informática na educação e síntese de imagens.
José Monserrat Neto é professor de Computação do DCC/UFLA - Lavras/MG; Doutor em Engenharia de Sistemas e Computação - COPPE/UFRJ; Membro da Sociedade Brasileira de Computação (SBC); Membro da Associação dos Pesquisadores de Economia Solidária (ABPES); Membro da Incubadora de Cooperativas Populares da UFLA (INCUBACOOP); e Membro da TecnoLivre - Cooperativa de Tecnologia e Soluções Livres.


»Esta é uma publicação eletrônica da Sociedade Brasileira de Computação – SBC. Qualquer opinião pessoal não pode ser atribuída como da SBC. A responsabilidade sobre o seu conteúdo e a sua autoria é inteiramente dos autores de cada artigo.

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