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EDIÇÃO Abril 2012

Existe Sistema Inteligente (e vários!)

Este artigo defende, através de exemplos concretos, que é possível criar sistemas/máquinas inteligentes. Com os resultados recentes obtidos pela comunidade, é perfeitamente razoável acreditar que logo teremos sistemas inteligentes que nos ajudam a decidir e agir em qualquer situação de nossas vidas.

O Artigo entitulado “Não existe sistema inteligente”[1] escrito pela professora Doutora Cristina Duarte Murta, publicado no Jornal do Estado de Minas em 30/7 e, posteriormente, replicado no Jornal da Ciência da SBPC, gerou grande polêmica e algum descontentamento da comunidade de Inteligência Artificial (IA) no Brasil[2]. Algumas críticas mostram o descontentamento devido às previsões/promessas que foram feitas e não cumpridas. Outras são meramente filosóficas, o que é comum nesta área desde sua criação devido, principalmente, ao termo Inteligência utilizado para definir o comportamento “esperto” dos sistemas desenvolvidos. Tais críticas apontam o uso equivocado (errôneo?) do termo “inteligência”, pois a semântica da palavra está fortemente associada ao ser vivo, ou ao ser pensante. Este texto não tem como objetivo aprofundar diálogos nesta direção. Pretende-se mostrar, através de alguns exemplos concretos, que os avanços na área de IA em conjunto com outras áreas (da computação, engenharia, etc.) são importantes e tem ajudado a desenvolver sistemas/máquinas capazes de resolver problemas que antigamente eram ditos como insolúveis ou que apenas pessoas com inteligência poderiam solucionar.

Apesar das críticas à área de IA, podemos utilizar o texto escrito pela Dra Murta de maneira construtiva para explicar melhor a área tanto para o público externo à Computação quanto para os profissionais que trabalham ativamente no tema de forma a iniciar discussões positivas dentro da comunidade e, assim, pavimentar os rumos da IA para as próximas décadas.

Vamos começar a partir das duas premissas utilizada pela Dra Murta em seu artigo retiradas do texto “Discurso do Método” escrito por Descartes sobre a construção de máquinas inteligentes:

1) “Descartes argumenta que […] as máquinas jamais poderão usar palavras e outros sinais da mesma forma que fazemos para expressar nossos pensamentos. Uma máquina pode até proferir palavras e reagir a algumas ações mas não é possível imaginar uma máquina respondendo com sentido a tudo que é dito em sua presença, tal como pode fazer o mais obtuso dos homens”.

O argumento acima é muito perigoso, pois embora verdadeiro atualmente, ele pode se tornar falso em algumas décadas. Nossa História mostra isso com frequência. Na idade média acreditava-se na teoria Geocêntrica (na qual a terra era o centro do universo), mas pesquisadores desafiaram o senso comum com a teoria do Heliocentrista. Nos anos 60 os telefones celulares faziam parte apenas dos filmes de ficção (e.g. Star Trek) e, hoje, eles fazem parte do nosso cotidiano. Nos anos 80 seria impossível para pessoas comuns enviarem e receberem mensagens instantaneamente, agora todos nós temos emails, chats, skype, etc. Até esse ano acreditava-se que nenhuma partícula poderia viajar mais rápido que a velocidade da luz, mas um resultado recente sugere que isso pode não ser verdade[3]. Ou seja, em 1637 quando Descartes escreveu seu texto, não era possível imaginar muitas coisas, inclusive o surgimento de laptops, rede wireless, internet, celulares, e outros equipamentos eletrônicos.

A concepção sobre o que é possível ou impossível depende dos avanços da tecnologia. Hoje, com os avanços da Computação, Física, Matemática e Engenharia, não é difícil imaginar que logo teremos tecnologias que permitirão uma máquina responder perguntas com perfeição. Veja o caso do super computador Watson[4] criado pela IBM que consegue responder perguntas em linguagem natural de maneira ágil. O mais interessante é que quando a pergunta é muito difícil (para ele), assim como uma pessoa, Watson cria conjecturas para dar a resposta mais adequada (similar a um aluno dando um “chute” para responder uma questão de prova).

Mas será que Watson pode ser considerado inteligente? Como bem destaca a Dra Murta em seu texto, Alan Turing, conhecido como o pai da computação moderna, propôs em 1950 com a publicação “Computing Machinery and Intelligence” o conhecido Teste de Turing, cujo objetivo é demonstrar se as máquinas podem ser consideradas inteligentes. Em essência, Turing argumenta que se uma máquina conseguir enganar um observador experiente se passando por uma pessoa então certamente essa máquina deveria ser considerada inteligente. Neste contexto, Watson se saiu muito bem em 2011 quando participou do mais famoso programa de perguntas e respostas dos EUA, conhecido como Jeopardy!. Neste programa Watson competiu com dois dos melhores jogadores dos EUA respondendo perguntas não triviais que requerem mais do que conhecimento, mas alguma forma de cognição e confiança sobre a resposta de uma pergunta. E segundo um dos jogadores, “a ilusão é que Watson estava se comportando da mesma forma que um ser humano; mas ele não estava”[5]. De fato, Watson estava realizando processamentos computacionais que simulavam o comportamento humano. Portanto, apesar do processo ser diferente, o resultado é similar. Ou seja, levando em consideração o teste de Turing neste domínio em particular, Watson poderia ser considerado uma máquina inteligente.

Um outro exemplo de máquina inteligente é o robô cientista, Adam, criado pelo Professor Ross King e sua equipe na universidade de Aberystwyth, UK[6]. Adam foi concebido para simular o processo de descoberta científica na área de seqüenciamento genômico e testes de novas drogas (remédios) para tratamento de doenças. Adam demonstrou ser capaz de realizar todo o processo científico por conta própria: formular hipóteses, conceber e executar experimentos, analisar os dados obtidos e decidir quais experimentos devem ser executados na próxima interação para confirmar (ou descartar) as hipóteses propostas inicialmente. Os resultados obtidos pelos inventores de Adam indicam que ele é capaz de gerar suas próprias hipóteses e tirar suas próprias conclusões e, dessa forma, gerar (e utilizar) conhecimentos (resultados cientificamente comprovados) que não existiam anteriormente. Esse resultado põe em cheque um dos argumentos encontrados no Artigo da Dra Murta:

“Máquinas e sistemas inventados pelo homem não tem ideias, não fazem conexões novas entre objetos e saberes (além das que já estão programadas), não geram novas compreensões, não estabelecem nem reveem fundamentos.[…] Ser inteligente é surpreender, é receber e responder ao novo. Trata-se de razão e entendimento, capacidades que definitivamente não existem nos computadores digitais”.

O robô cientista, Adam, consegue ter suas próprias ideias (hipóteses), fazer a conexão entre o que se sabe e o que é possível saber no futuro, gerar resultados e aplicá-los em novos testes e hipóteses, além de fazer a revisão de suas crenças para replanejar/repensar suas ações. Dessa forma, é plausível pensar que Adam é inteligente ao ponto de aprender com seus próprios erros e acertos tomando decisões importantes para a realização de novas descobertas científicas que surpreendem até seus criadores.

Assim como Watson e Adam, diversas outras máquinas (e sistemas) podem ser consideradas inteligentes em um domínio específico. Mais importante ainda são as aplicações e possíveis implicações desses avanços para a sociedade.

A Segunda premissa utilizada pela Dra Murta pode ser dividida em duas partes:

2.1) “[…] embora as máquinas possam fazer muitas coisas muito bem, e possivelmente até melhor do que nós, infalivelmente fracassariam em outras. Isso comprovaria que não agem por entendimento e sim porque são arranjadas para aquela tarefa específica.”

2.2) “[…] é impossível construir uma máquina com capacidade para agir em todas as situações da vida, tal como é a razão humana.”

A interpretação da primeira parte da segunda premissa (2.1) é capciosa. Pois imagine uma criança que estudou durante anos a escrita de poemas em Português, mas não teve contato nenhum com Matemática. Seria essa criança capaz de resolver um problema matemático adequadamente? Provavelmente não. E por não conseguir, seria correto julgá-la e taxá-la de burra ou pouco inteligente? Acredito que não. E porque utilizar essa mesma interpretação errônea para definir se uma máquina é inteligente? Assim como uma pessoa pode ser boa em uma tarefa, mas ruim em outras, uma máquina pode ser projetada para executar bem uma determinada tarefa, mas não executar outras tarefas. Ou seja, no meu ponto de vista, julgar uma pessoa ou máquina por suas ações em contextos adversos, não me parece uma boa prática para verificar inteligência. A grande diferença é a capacidade do cérebro humano aprender diversas atividades e conhecimentos rapidamente. Para uma máquina, aprender, ainda é um grande desafio. Isso ocorre porque não se sabe como o cérebro funciona e como ele aprende. Por causa disso, não é possível simular tal atividade e, como consequência, atualmente é improvável que qualquer máquina consiga replicar com fidelidade o comportamento humano para qualquer domínio de conhecimento. Mesmo assim, diversas pesquisas demonstram que é possível criar máquinas que aprendem ao longo do tempo. Pesquisadores da Universidade de Carnegie Mellon, EUA, coordenados pelo Professor Tom Mitchell, têm trabalhado no NELL - Never-Ending Language Learning system[7,8]. NELL é um sistema que percorre milhares de páginas na Web, 24 horas por dia, para aprender de forma autônoma, fatos, dados, procedimentos e categoria de objetos. Ao percorrer essas páginas na Web NELL relaciona o que aprendeu com o que está sendo aprendido, gerando uma semântica própria e reinterpretando seu conhecimento caso necessário. Assim como qualquer pessoa, NELL comete erros e aprende com suas experiências passadas. Essas experiências fazem com que as interpretações do conhecimento na Web também sejam diferentes ao longo da aprendizagem. Neste contexto, NELL poderá no futuro responder em linguagem natural questões sobre qualquer conteúdo (desde que informações relacionadas estejam disponíveis na Web).

Acreditar que a segunda parte da segunda premissa (2.2) será sempre verdade é um tanto ingênuo. Principalmente com os avanços da computação distribuída e nas nuvens. Por exemplo, vamos supor que é possível construir máquinas que conseguem executar uma atividade muito bem, como indicado na premissa 2.1. Digamos que para cada situação de nossas vidas seja também possível criar uma máquina específica para agir da melhor maneira possível. Assim, ao somarmos as capacidades de milhões de maquinas teríamos um sistema capaz de lidar com milhões de situações diferentes tomando as melhores decisões para cada situação de nossas vidas. Criar uma máquina dedicada para resolver problemas para um pequeno domínio não é um problema com a tecnologia atual, o problema é gerenciar essas máquinas de forma eficiente. Mas não é difícil imaginar que essa barreira será quebrada em questão de décadas.

Concluindo, os argumentos de Descartes utilizados como premissas para sustentar a inexistência de máquinas inteligentes se tornaram fracos com o passar dos anos e, provavelmente, se tornarão falsos em um futuro próximo. Apesar das premissas serem errôneas, é muito construtivo pensar nestas afirmações que Descartes e a Dra Murta defendem. É importante que a comunidade de IA esteja ciente da expectativa do público em relação à área e trabalhe para desenvolver tecnologias que possam ser aplicadas para resolver problemas do cotidiano como saúde, transporte, sustentabilidade e educação.

O principal problema do artigo não foi sua narrativa baseada nas premissas acima, mas o comentário pejorativo e infeliz que encerrou o artigo:

“[…] Dizer que um sistema é inteligente é equivalente a dizer que um boneco, destes que encontramos em lojas de brinquedo, está vivo porque mexe os braços e fala algumas frases. Coisa de criança.

Enquanto alimentamos a fantasia da construção de sistemas inteligentes, gerações de profissionais e cientistas estão sendo formadas sob essa falsa bandeira. Os algoritmos estudados sob o rótulo de IA são importantes para a computação, mas não produzem sistemas inteligentes.”.

É evidente que os sistemas inteligentes citados neste texto são muito mais do que bonecos animados. São autônomos, capazes de responder a situações complexas tão bem ou, às vezes, melhor que nós em um domínio específico. Também são capazes de gerar novos conhecimentos, analisar suas ações e tomar decisões baseado em suas próprias experiências sem o auxílio humano. Uma máquina inteligente não é aquela que pode imitar o comportamento humano; atribuímos o termo inteligente às máquinas e sistemas que conseguem transformar os conhecimentos contidos nelas (base de dados) em ações úteis para resolver problemas complexos que requerem respostas não triviais.

Minha opinião é completamente oposta ao da Dra Murta. Após lecionar no Brasil e no exterior, vejo que nossos alunos precisam sonhar e fantasiar mais. As fantasias geram idéias que são as sementes da inovação tecnológica[9] . Sem motivar os alunos a imaginar o inimaginável, criar o que ainda não existe, sonhar com um mundo melhor e fantasiar com a possíveis tecnologias que irão desenvolver estaremos formando profissionais despreparados para produzir inovação como aquelas que têm sido geradas pelos profissionais que trabalham em empresas como a Google, IBM, Microsoft, Facebook, Apple, entre outras. Dizer que algo é impossível de se realizar (e.g. criar um máquina tão inteligente quanto nós) é desistir de resolver um problema complexo apenas porque não vemos uma solução simples em um curto prazo. Se nós, educadores da nova geração de profissionais, cairmos na tentação de deixar de fazer o que é difícil ou “impossível”, como podemos esperar que nossos alunos produzam inovação tecnológica? Será que queremos criar uma geração de profissionais e cientistas que fazem apenas o que é possível fazer e não o que poderia (e deveria) ser feito para darmos um salto tecnológico que levaria nossa nação a se tornar o país da tecnologia e da inovação? As pesquisas em IA vão exatamente nesta direção. Inspiram os jovens a pensar no impossível. Provocam nossas mentes para gerar produtos que vão estar no mercado nos próximos 10, 50 ou 100 anos.

Ao longo dos anos, a área de IA cresceu, se ramificou e se juntou com outras áreas dando origem a diversas áreas de pesquisa multidisciplinares como: Mineração de Dados, Engenharia de Ontologias, Web Semântica, Agentes e Multiagentes, Aprendizado de Máquina, Processamento de Linguagem Natural, Planejamento, Cibernética, Sistemas de Recomendação, Sistemas Adaptativos, Sistemas Tutores, além de outras. Cada uma destas áreas gera produtos inovadores que são utilizados constantemente sem que o usuário perceba da sua existência.

Apesar das críticas ao texto da Dra Murta, tenho que concordar com seu último parágrafo:

“Redefinir o conceito de inteligência para acomodar sonhos e fantasias é um enorme equívoco científico. No desenvolvimento da ciência, ocasionalmente é preciso romper para avançar, e esse é o caso. Abandonar o rótulo é avanço, não retrocesso”.

Atualmente existem alguns pesquisadores que defendem que a área de IA precisa evoluir. Segundo Mizoguchi[10] grande parte das aplicações na área de Inteligência Artificial são desenvolvidas para aumentar ou melhorar a capacidade humana para viabilizar e facilitar a tomada de decisões críticas. Portanto, IA está se tornando a área dos Amplificadores da Inteligência (AI), pois o que mais se deseja atualmente é criar sistemas que estão conosco a todo instante oferecendo ajuda efetiva quando necessário de forma a amplificar nossas capacidades de agir, pensar, lembrar e decidir rapidamente e adequadamente.

Referências

[1] Cristina Duarte Murta. Não Existe Sistema Inteligente., http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=78657

[2] Pita, M. & Buarque, F. (2011) Não existe sistema inteligente? Jornal da Ciência (JC). Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=79652

[3] The OPERA Collaboration. Measurement of the neutrino velocity with the OPERA detector in the CNGS beam. http://arxiv.org/abs/1109.4897

[4] IBM Watson. http://www-03.ibm.com/innovation/us/watson/index.html

[5] IBM Watson: Final Jeopardy! and the Future of Watson http://youtu.be/lI-M7O_bRNg

[6] King et al. (2009) The Automation of Science. Science, Vol. 324 no. 5923, 85-89. Disponível em: http://www.sciencemag.org/content/324/5923/85.abstract

[7] Aiming to Learn as We Do, a Machine Teaches Itself http://www.nytimes.com/2010/10/05/science/05compute.html

[8] Carlson, A., Betteridge, J., Kisiel, B., Settles, B., Hruschka Jr, E.R. & Mitchell, T.M. (2010) Toward an Architecture for Never-Ending Language Learning. In Proceedings of the Conference on Artificial Intelligence (AAAI). Disponível em: http://rtw.ml.cmu.edu/papers/carlson-aaai10.pdf

[9] Carnegie Mellon Star Trek Tech http://youtu.be/T0bAHqOYANY

[10] Mizoguchi, R. (2003) Tutorial on Ontological Engineering: Part 1. New Generation Computing, 21(4): 365-384. Disponível em: http://www.springerlink.com/content/m62217704273h017/

Sobre o autor

Seiji Isotani é Professor Doutor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP). Possui Bacharelado e Mestrado em Ciência da Computação pela Universidade de São Paulo (IME-USP). Concluiu seu doutorado em Engenharia da Informação na Universidade de Osaka (Japão). Realizou seu pós-doutorado na Universidade de Carnegie Mellon (EUA) onde foi contratado e permaneceu no quadro docente até 2011. Tem experiência na área de Ciência da Computação e desenvolvimento de software educacional, com ênfase em sistemas colaborativos e sistemas educacionais inteligentes. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3030047284254233


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