Vamos falar sobre a formação na pós-graduação em Computação?
Por: Renata Araujo e Mariano Pimentel
Seja muito bem-vindo(a) à nossa coluna “Educação” da SBC Horizontes.
Neste primeiro artigo, trazemos um tema que tem nos preocupado como docentes, orientadores e gestores em programas de pós-graduação e como debatedores de políticas públicas para a pós-graduação no Brasil, no âmbito da Sociedade Brasileira de Computação e da CAPES. Queremos problematizar a formação na pós-graduação em Computação e seus impactos nos indivíduos e no papel social, intelectual e econômico da pós-graduação brasileira.
Começamos contando uma situação significativa do que queremos abordar. No encerramento deste semestre letivo, um dos autores estava conversando com um colega professor que disse, com certo orgulho, que havia aprovado apenas quatro alunos e reprovado aproximadamente 80% da turma.
Não é chocante? Não para todos. Afinal, muitos passam pelo processo formativo como aluno e depois seguem na experiência como professor de Computação acreditando que essa situação é normal e até desejável para a manutenção de uma cultura que entende a Computação como um curso difícil em que só os fortes sobrevivem.
Ao ser questionado se ele reconhecia aquela situação como um fracasso pessoal como professor, o jovem doutor argumentou:
— Estou com a consciência tranquila, pois quem estudou e fez todas as listas de exercícios, passou.
Talvez pela falta de base teórica e de discussões sobre práticas docentes, esse jovem pode não se dar conta de que o objetivo dele não deveria ser “ficar com a consciência tranquila”. Talvez ele não compreenda que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”, como nos ensinou Paulo Freire (1996, p. 21). Se os alunos não estão estudando, talvez seja porque a exposição de conteúdo não seja efetiva para que eles produzam significações, ou, talvez, as listas de exercícios não lhes façam muito sentido e assim eles acabem desistindo de estudar. Mas são apenas “talvezes”. Seja como for, em tal situação seria importante para um professor investigar os porquês dos fracassos e melhorar suas práticas pedagógicas. Reprovar muitos alunos não deveria ser motivo de orgulho, mas pode ser sinal de problema relacionado com a docência. Contudo, sem uma formação específica para a profissão, aquele professor seguirá com sua “consciência tranquila” sem problematizar e repensar suas práticas pedagógicas.
Essa situação ocorre porque, ao terminar o doutorado em Computação, o jovem passou no concurso para uma universidade pública, principalmente em função de seu conhecimento e desempenho em uma área específica da Computação e por seus indicadores de produção intelectual e científica. Ao ser aprovado no concurso, foi declarado professor e teve de exercer a docência sem profissionalização no campo educacional. Provavelmente esse jovem não estudou Didática, Currículo, História e Filosofia da Educação, como possivelmente também não teve contato com noções de Sociologia ou Psicologia.
O fato é que ser doutor em Computação não nos faz necessariamente entender sobre docência. E o jovem professor doutor a que estamos nos referindo não é uma exceção; tem uma história de formação parecida com a maioria de nós, professores de Computação que atuamos no ensino superior. Aliás, não somente na Computação:
Grande parte dos professores universitários não possui uma visão clara das teorias que fundam suas concepções pedagógicas. Concepções pedagógicas que reúnem fundamentos didáticos da prática docente, a saber: compreensões sobre os processos de ensinar e aprender, objetivos educativos e didáticos, organização e mediação de conteúdos, métodos e avaliação da aprendizagem. Muitos professores ensinam sem o devido conhecimento dos saberes que sustentam sua própria prática – saberes pedagógico-didáticos. […] A maior parte dos professores universitários não realizou cursos de licenciatura, são bacharéis que assumem a docência sem um preparo pedagógico prévio. […] Por detrás desse modelo, reside um conceito de docência como ofício e não como profissão (D’ÁVILA; FERREIRA, 2018, p. 21-23).
Os egressos da pós-graduação que irão trabalhar em universidades, além da atuar como docente, serão orientadores de alunos na elaboração de TCCs, Dissertações e Teses. A formação acadêmica é ainda mais deficiente em relação às competências necessárias para realizar o trabalho de orientação. Um pós-graduando geralmente teve a experiência de ser orientado por apenas um, dois ou três orientadores ao longo de seu processo formativo, e esses poucos exemplos se tornam suas principais referências de como orientar. A falta de formação específica para o trabalho de orientação talvez seja um dos motivos para nos depararmos com as frequentes denúncias de problemas na relação entre orientandos e orientadores, como apontado em diversos textos: “O que aprendi com meu orientador”; “Estudantes de mestrado e doutorado relatam suas dores na pós-graduação”; “Um terço dos alunos de pós-graduação têm depressão ou ansiedade”. Em conversas com orientadores, já escutamos a caracterização do aluno como um “recurso”, “mão de obra” e até “escravo”, num conflito entre as perspectivas da pós-graduação como produção ou como formação. Essa mal definida relação entre orientando e orientador, com frequente não cumprimento das expectativas não compartilhadas por ambas as partes, chega a ser caracterizada, em alguns memes e tirinhas, como uma relação de opressão, desrespeito, omissão e outras mazelas.
(Fontes: link nas próprias figuras)
Além da atuação como pesquisador, professor e orientador, atualmente há uma crescente demanda pela atuação de pós-graduandos no mercado de trabalho e nas empresas, haja vista que a competitividade, a economia global e a solução dos complexos problemas organizacionais e sociais demandam por indivíduos com competências muito próximas à de um pesquisador: gerir e gerar conhecimento, identificar problemas, refletir, validar e analisar os impactos de soluções. Isso exige (re)pensar os conhecimentos, habilidades e atitudes que devem ser objetivados nos cursos de pós-graduação, sendo necessário promover competências relacionadas a inovação, produção tecnológica e empreendedorismo.
A efetiva formação do egresso passa por ações articuladas nos programas, envolvendo atividades curriculares e extracurriculares, além de alterações nas posturas e cobranças. Fazem-se essenciais mudanças estruturais, com a discussão de um modelo de formação mais amplo e a definição de critérios objetivos relacionados à inserção dos egressos considerando as múltiplas possibilidades de sua atuação – docência, pesquisa, extensão e inovação tecnológica – no cenário nacional. Também se torna fundamental desenvolver novos projetos curriculares, com competências necessárias para esta atuação, levando em consideração as estratégias específicas para a formação de mestres e doutores em Computação para o País (SIMÃO et al., 2018).
As definições quanto aos objetivos da pós-graduação stricto sensu no Brasil remontam ao Parecer CFE n. 977/65, aprovado em 3 de dezembro de 1965 (ALMEIDA JÚNIOR et al., 1965). Nesse parecer, é dado enfoque à necessidade de formação para a docência na graduação e para a importância de uma formação científica e cultural ampla e aprofundada, considerando os modelos internacionais à época. A visão dos objetivos da pós-graduação foi sendo continuamente detalhada para abranger outras dimensões. A Capes, em seu primeiro Plano Nacional de Pós-Graduação (1975-1979), já destacava como objetivo “formar em volume e diversificação – pesquisadores, docentes e profissionais”, o que se repetiu nos planos subsequentes, com adaptações e recomendações para enfrentar os desafios nacionais de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico e inovação (CAPES, 2014), culminando com a criação dos cursos profissionais (CAPES, 2019).
Contudo, a pós-graduação no Brasil sempre deu mais ênfase à formação do pesquisador e uma menor atenção à preparação do pós-graduando para a docência no ensino superior (VIEIRA; MACIEL, 2010) e para as atividades no mercado e outras dimensões desejáveis na formação desses indivíduos. Em parte, pela cultura subliminar passada de geração a geração de elitização das atividades do mestre e em especial do doutor como um pesquisador, reforçada pelas políticas públicas nacionais de acompanhamento e avaliação de resultados da pós-graduação. Como resultado, temos visto a própria Capes atualmente sinalizar a necessidade de detalhar a formação de egressos como critério de avaliação dos programas de pós-graduação nos próximos anos.
Com o objetivo de promover a (re)valorização da dimensão formativa da pós-graduação em Computação, a SBC elaborou o documento “Referenciais de formação para os cursos de pós-graduação stricto sensu em Computação 2019” (ARAUJO et al., 2019). Esse documento indica algumas “competências gerais para a formação de egressos dos cursos de pós-graduação stricto sensu na área de Computação no Brasil” (p. 2), visando a: rever a característica de ensino e formação da pós-graduação; servir de base para que os programas reflitam sobre os projetos pedagógicos dos cursos de mestrado e doutorado e reelaborem seus currículos; e servir de referência para a avaliação de cursos na área.
Em linhas gerais, os Referenciais de Formação estabelecem como objetivo dos cursos de pós-graduação:
Proporcionar a formação de profissionais na área de Computação, com conhecimento científico e visão acadêmica e cultural amplos e aprofundados, atuando no desenvolvimento da capacidade de pesquisa científica, na transferência de conhecimento para a sociedade, na solução de problemas em organizações públicas ou privadas, na geração e aplicação de processos de inovação e nas demandas e melhorias da qualidade do ensino, contribuindo para a agregação de qualidade, competitividade, produtividade e bem-estar de instituições e da sociedade (ARAUJO et al., 2019, n. p.).
A partir desse objetivo, definem, para o perfil esperado do egresso de cada curso – Mestrado Acadêmico, Doutorado Acadêmico e Mestrado Profissional –, sete diferentes eixos de formação que agrupam competências a serem desenvolvidas e apropriadas pelos alunos ao longo do curso:
(Fonte: próprios autores)
Independentemente de determinações oficiais, identificamos que alguns programas de pós-graduação já incluem o desenvolvimento dessas competências nos cursos por meio de disciplinas como Metodologia de Pesquisa Científica, Comunicação Científica, Docência (além do “estágio em docência”), Inovação, entre outras. No entanto, um desafio que ainda se apresenta é vencer a cultura preexistente e mudar a percepção de professores e alunos para que considerem essas disciplinas como tão importantes no currículo como as disciplinas específicas da Computação e as atividades que levam o aluno logo para a pesquisa e a produção científica.
A pós-graduação em Computação cresceu e se fortaleceu nos últimos anos. A nosso ver, ela agora se depara com novos desafios, sendo um deles a questão da formação. Várias são as iniciativas já em curso. O presente texto tem por objetivo estimular essas iniciativas e direcionar nossa discussão para o compartilhamento de experiências e o direcionamento para a necessária mudança de cultura de formação na pós-graduação em Computação no país. Vamos falar sobre isso.
Referências
ALMEIDA JÚNIOR, A; SUCUPIRA, N.; SALGADO, C.; BARRETO FILHO, J.; SILVA, M. R.; TRIGUEIRO, D.; LIMA, A. A.; TEIXEIRA, A.; CHAGAS, V.; MACIEL, R. CAPES. Parecer CFE nº 977/65, aprovado em 3 dez. 1965.
ARAUJO, R. M.; SIMÃO, A.; MALUCELLI, A.; ZORZO, A. F.; MONTEIRO, J.A.S.; CHAIMOWICZ, L.; Referenciais de formação para os cursos de pós-graduação stricto sensu em Computação. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação (SBC), 2019.
CAPES. Mestrado e Doutorado, o que são?, 2014.
CAPES. Portaria CAPES 60/2019: Dispõe sobre o mestrado e doutorado profissionais, no âmbito da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, 2019.
D’ÁVILA, C.; FERREIRA, L.G. Concepções pedagógicas na educação superior: abordagens de ontem e de hoje. In: D’ÁVILA, C.; MEDEIRA, A. V. (org.). Ateliê Didático: uma abordagem criativa na formação continuada de docentes universitários. Salvador: EDUFBA, 2018. p. 21-46.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. [Coleção Leitura]
SIMÃO, A.; ARAUJO, R.M.; MALUCELLI, A; VOSGERAU; D. Pós-graduação em Computação: muito além de publicações. Computação Brasil, n.38. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, novembro 2018. p. 39-42.
VIEIRA, R. A.; MACIEL. L. S. B. Estágio de docência prescrito pela CAPES: tensões e desafios. Quaestio-Revista de Estudos em Educação, v. 12, n. 2, p. 47-64, 2010.