#FiqueEmCasa, mas se mantenha ensinando-aprendendo: algumas questões educacionais em tempos de pandemia
Fonte: Ilustração de Monica Lopes (ver canal IlustrAqui)
Por: Mariano Pimentel e Renata Araujo (30/03/2020)
Escolas e universidades fechadas – uma medida para conter a velocidade da disseminação da COVID-19 e conscientizar a população sobre a gravidade do problema. Tomando a China como exemplo, podemos ficar em quarentena por diversos meses; nesse cenário, é desejável que nossas vidas, atividades e projetos continuem. Para mantermos as aulas em andamento mesmo com as escolas e universidades fechadas, o MEC apontou um caminho (ao menos para as instituições federais de ensino superior): “Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação.” (BRASIL, 2020) Essa portaria criou a oportunidade para considerarmos algumas alternativas de ensino-aprendizagem mediadas pelas tecnologias digitais em rede: Educação a Distância (EAD), Educação OnLine (EOL), Ensino Doméstico (homeschooling), Atividade Escolar Remota (JUNQUEIRA, 2020a), Ensino Híbrido, entre outras possibilidades. Neste artigo, queremos contribuir com algumas reflexões sobre os possíveis rumos da educação durante e após a pandemia que estamos vivendo.
Enquanto professores, temos sentimentos ambíguos em relação a essa situação. Por um lado, não nos parece razoável cruzar os braços e suspender por completo as aulas por vários meses. Por outro, nos causa apreensão migrar abruptamente a educação presencial de nosso país para modalidades não presenciais, pois há saberes pedagógicos típicos dessas outras abordagens que não são de domínio de todos os professores. Manter as aulas em que condições? Como os professores, que não têm formação ou experiência em modalidades não presenciais, irão atuar? Com que conteúdo? Como será a mediação docente? Por meio de que sistemas computacionais? Teremos suporte? Dará tempo para fazer um novo desenho didático para a disciplina? E as questões trabalhistas? Os alunos, que são de cursos presenciais, conseguirão se adaptar à interação não presencial? Como os alunos que não possuem adequada infraestrutura em suas casas participarão dessas aulas mediadas pelas tecnologias? Esses são alguns questionamentos e desafios que vários de nós precisamos enfrentar neste momento. Diante dessa situação, temos acompanhado, pelas redes sociais, algumas denúncias e também algumas anunciações de pesquisadores em Educação:
Cursos presenciais não se tornam a distância porque usamos a internet. Não é assim. Isso é enganação. (SÜSSEKIND, 2020)
Não se pode confundir educação a distância (EaD) com atividade remota pela internet em situação de crise grave. EaD é toda uma concepção didática e de estudo e aprendizagem que envolve estrutura, conteúdos, formação e que abrange desde o desenho didático inicial adequado às características da área do conhecimento específica até às avaliações da aprendizagem discente, executada por equipe multidisciplinar treinada. E existem diversos tipos, diversas concepções de EAD. Atividade remota é fazer alguma atividade temporária via internet, em situações precárias e emergenciais, para tentar reduzir danos de aprendizagem a partir de um sistema de ensino originalmente presencial. (JUNQUEIRA, 2020)
Não há dúvidas de que o caminho, ou pelo pelos um deles, da educação online será pelo celular. Isso mesmo, num país com altos índices de exclusão cibercultural, que é mais que exclusão digital, temos que contar com as tecnologias acessíveis a todos, todas e todes. Aquelas que estão nas palmas de nossas mãos. (SANTOS, 2020)
A autorização para que os cursos presenciais sejam ofertados de maneira não presencial, a partir do instante em que a portaria foi publicada, provocou um corre-corre para saber o que deveria ser feito, pois cada instituição teve de tomar decisões em caráter de urgência. A transposição didática do presencial para o não presencial apresenta muitos desafios. Por exemplo, com relação às tecnologias a serem empregadas, talvez o ambiente virtual de aprendizagem da instituição, usado como suporte às aulas presenciais, possa não ser o mais adequado para promover a interatividade desejada entre os alunos que já estão acostumados ao cotidiano escolar presencial, devendo ser consideradas alternativas como Zoom (ZOOM, 2020), Grupo de Aprendizado Social no Facebook (SOCIAL, 2020), Google Classroom (GOOGLE, 2000), entre tantas outras. Com relação ao conteúdo, alguns professores consideram gravar em vídeo a mesma aula que dariam no presencial; contudo, conteúdo online requer formato próprio, utilizando uma linguagem específica, e uma aula gravada em vídeo geralmente fica muito entediante para os alunos.
Fonte: Portal Odontologia
Uma repentina mudança para a educação não presencial requer nossa ação para enfrentarmos alguns desafios, como nos alerta a nota crítica sobre a Portaria nº343/2020 emitida pelo Grupo de Trabalho Educação e Comunicação (GT16-ANPED-CO, 2020):
Pontos já levantados por outros profissionais da educação e entidades demonstram os prejuízos desta Portaria para a educação pública, gratuita, de qualidade e inclusiva, tanto na educação presencial quanto a distância. Ao propor atividades a distância, em substituição às presenciais, assume ser medida emergencial, desconsiderando:
• necessidade de formação pedagógica específica para os docentes planejarem atividades online que garantam participação, diálogo, interação entre professores/as e estudantes;
• necessidade de orientações operacionais, comunicacionais e informacionais para todos/as discentes e docentes poderem interagir online de forma responsável, ética e equânime;
• necessidade de garantia de acesso domiciliar à equipamentos, softwares e internet de banda larga de elevado fluxo de dados para todas/os docentes e discentes;
• necessidade de servidores com ampla capacidade de armazenamento de dados na universidade.
• Além dos condicionantes técnicos, tecnológicos e de expertise de profissionais, não é levado em conta o contexto de isolamento social em que professoras, professores e estudantes precisam estar em casa, cuidando, física e emocionalmente de filhos/as menores, de familiares idosos, e dos trabalhos domésticos exigidos para tanto.
Em contrapartida, encontramos relatos que evidenciam a potência da educação online, especialmente quando o professor concebe um desenho didático que promova a interatividade entre os alunos, mantendo-os em contato frequente com os colegas por meio de videoconferência, discussões em grupo, bate-papo e outras estratégias, como ilustra o depoimento de um aluno de um professor que atualmente está lecionando numa universidade dos Estados Unidos:
Oi Marco, eu só queria que você soubesse que você fez da disciplina CS386 a minha favorita de todo este ano letivo. Devido à COVID19 e por eu ter vários membros da família em risco que não estão levando isso tão a sério como deveriam, tenho estado sob muito estresse e ansiedade ultimamente, especialmente agora que as férias de primavera terminaram. Esta é a minha única turma, desde a transição para o online, que, na verdade, está realizando reuniões interativas, e agradeço muito por essas sessões de aula do Zoom e, especialmente, pelos Break-out Groups [um serviço do Zoom]. É a única aula que me faz sentir que ainda faço parte da escola, e ter essas pequenas interações com outras pessoas via Zoom tem sido muito benéfico para minha saúde mental. Não apenas isso, mas você sempre se mostrou amável e atencioso durante suas aulas e talvez seja o professor mais acessível que já tive na NAU [Northern Arizona University]. Eu tenho sido um aluno muito mediano neste semestre e lamento não ter me esforçado mais na sua turma, mas daqui para frente as coisas vão mudar. A partir de agora, farei o meu melhor para ser mais interativo em sala de aula e fazer o meu melhor para entregar um trabalho da mais alta qualidade possível para lhe dar o respeito que você merece como educador. Mais uma vez obrigado por ser um excelente professor e por tornar o restante deste semestre mais gerenciável durante essa crise global. (GEROSA, 2020, tradução livre)
Gerosa tem experiência como professor online. O relato de seu aluno não nos surpreende, pois aponta para a importância da interatividade, do desenho didático contextualizado, da linguagem emocional própria para a mediação, entre outros saberes pedagógicos específicos da educação online. Ainda assim, esse relato é recebido como energizante “para continuar melhorando meu curso, ao mesmo tempo que o movo para o online”. Esse é um exemplo de movimento bem-sucedido que está sendo alavancado pelo momento conturbado que vivenciamos.
Reconhecemos que uma crise também é um momento revolucionário que possibilita processos formativos intensos. Esse momento cria uma oportunidade que, se abraçada, tem potencial para transformar as práticas de professores que enfrentarem os desafios que estão se apresentando, entre eles, buscar saberes docentes para o ensino no contexto não presencial, conhecer a experiência dos colegas, investigar as próprias práticas em experimentação etc.
Para apoiar a transformação de nossas práticas, a Sociedade Brasileira de Computação elaborou o Guia SBC-CEIE Ensino Remoto (GUIA, 2020) para “orientar educadoras(es) de todos os níveis de ensino a estruturar espaços e atividades de aprendizagem de maneira remota”.
As tecnologias digitais em rede estão revolucionando nossa sociedade e a Educação não está apartada; por exemplo, graças à popularização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) no Brasil, a educação a distância vem crescendo rapidamente desde o início deste século, aumentando a cada ano a quantidade de inscrições e de graduandos matriculados nessa modalidade, sendo que a partir de 2018 passaram a ser ofertadas mais vagas para cursos a distância do que para cursos presenciais (RODRIGUES, 2019).
Fonte: Dados obtidos de Censo da Educação Superior (INEP, 2020)
Se a educação não presencial têm potencial para transformar a prática dos professores que atuam no presencial, também é verdade que a atuação desses professores tem potencial para transformar as práticas da educação não presencial. Práticas que promovam o estudo isolado, em que prevalece a relação entre aluno e conteúdo, com pouca mediação docente e pouca interatividade entre os estudantes, parecem práticas ruins em tempos de isolamento social decorrente da quarentena. Alguns pesquisadores sinalizam a necessidade de mudança (SANTOS, 2009, p. 5660, 5665):
Avaliamos oito cursos online e constatamos que os ambientes virtuais utilizados poderiam potencializar um processo de ensino-aprendizagem mais interativo, por conta das potencialidades de suas interfaces de comunicação síncronas e assíncronas. Contudo, o paradigma educacional, na maior parte dos cursos, ainda centrava-se na pedagogia da transmissão, na lógica da mídia de massa, na auto-aprendizagem e nos modelos de tutoria reativa. Enfim, o “online” era só a tecnologia. A metodologia e a atuação docente ainda se baseavam nas clássicas lógicas da EAD de massa.
[…] Nas práticas convencionais de EAD, temos a auto-aprendizagem como característica fundante, ou seja, o cursista recebe o material do curso com instruções que envolvem conteúdos e atividades, elabora sua produção individual retornando-a, via canais de feedback, ao professor-tutor. Assim a aprendizagem é construída e mediada pelo material didático produzido à luz de um desenho instrucional. A instrução unidirecional é o centro do processo. O sujeito aprende solitário e no seu tempo e o material didático estático tem um papel muito importante.
O que muda então com a educação online? Além da auto-aprendizagem, as interfaces dos AVAs permitem a interatividade e a aprendizagem colaborativa. O cursista aprende com o material didático e na dialógica com outros sujeitos envolvidos – professores, tutores e outros cursistas, através de processos de comunicação síncronos e assíncronos. A cibercultura se constitui de novas possibilidades de socialização e aprendizagem mediadas pelo ciberespaço.
A migração urgente, de maneira contingencial, dos cursos presenciais para alguma modalidade não presencial está cercada de tensões nas relações entre os principais atores do sistema de educacional: governo, instituições, gestores, professores e alunos. Uma mudança assim tão drástica tem gerado conflitos políticos, sociais, econômicos e trabalhistas, ao desequilibrar o acordo de responsabilidades e direitos de cada ator envolvido. Já são conhecidos os casos de judicialização decorrentes dessa mudança. Até que ponto essas relações serão revistas após todo este período? Que novas relações entre os atores do sistema educacional se estabelecerão?
Em tempos de pandemia, precisaremos refletir sobre todas essas questões relacionadas ao sistema educacional, em que o uso das tecnologias digitais em rede tornou-se a única alternativa para mantermos as aulas.
Precisamos reinventar nosso cotidiano escolar.
Nos próximos meses, só vai ensinar-aprender quem estiver online.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus – COVID-19. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 mar. 2020. p. 39. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376. Acesso em: 27 mar. 2020.
GEROSA, Marco Aurélio. I’ve just received this anonymous feedback […]. Irvine, Califórnia, EUA, 26 mar. 2020. Facebook: marco.a.gerosa. Disponível em: https://www.facebook.com/marco.a.gerosa/posts/3611361178935672. Acesso em: 27 mar. 2020.
GOOGLE Classroom. In: Wikipedia, The Free Encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Google_Classroom. Acesso em: 27 mar. 2020.
GT16 ANPED-CO. Nota crítica. Disponível em: https://observatoriogeohistoria.net.br/nota-do-gt-16-educacao-e-comunicacao-da-anped-regional-centro-oeste/. 24 mar. 2020. Acesso em: 27 mar. 2020.
GUIA SBC-CEIE Ensino Remoto. SBC, 2020. Disponível online: https://www.sbc.org.br/noticias/2195-central-sbc-covid-19-material-de-apoio-as-atividades-a-distancia. Acesso em: 28 mar. 2020.
INEP. Sinopses Estatísticas da Educação Superior – Graduação. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas-da-educacao-superior. Acesso em: 27 mar. 2020.
JUNQUEIRA, Eduardo. Não se pode confundir educação […] . O Povo, 27 mar. 2020a. Disponível em: https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2020/03/27/eduardo-junqueira–atividade-escolar-remota-nao-e-ead.html. Acesso em: 27 mar. 2020a.
JUNQUEIRA, Eduardo. Não se pode confundir educação […] . Rio de Janeiro, 18 mar. 2020b. Facebook: ejunqueira. Disponível em: https://www.facebook.com/ejunqueira/posts/10223345672096526. Acesso em: 27 mar. 2020b.
RODRIGUES, Mateus. Ensino superior a distância ofertou mais vagas que o presencial em 2018, aponta Censo da Educação Superior. G1, 19 set. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/19/ensino-superior-a-distancia-ofertou-mais-vagas-que-o-presencial-em-2018-aponta-censo-da-educacao-superior-do-mec.ghtml. Acesso em: 27 mar. 2020.
SANTOS, E. Educação online para além da EAD: um fenômeno da cibercultura. Anais do Congresso Internacional Galego-Português de Psicopedagogia. Universidade do Minho, Braga, Portugal, 2009, p. 5658-5671. Disponível em: http://www.educacion.udc.es/grupos/gipdae/documentos/congreso/xcongreso/pdfs/t12/t12c427.pdf. Acesso em: 27 mar. 2020.
SANTOS, Edmea. Não há dúvidas de que o caminho […] . Rio de Janeiro, 25 mar. 2020. Facebook: edmea.santos. Disponível em: https://www.facebook.com/edmea.santos/posts/3201731026526463. Acesso em: 27 mar. 2020.
SOCIAL Learning no Facebook. Disponível em: https://www.desenhoinstrucional.com/post/social-learning-no-facebook. Acesso em: 27 mar. 2020.
SÜSSEKIND, Maria Luiza. Cursos presenciais não se tornam […]. Rio de Janeiro, 18 mar. 2020. Facebook: marialuiza.sussekind. Disponível em: https://www.facebook.com/marialuiza.sussekind/posts/3381520035196038. Acesso em: 27 mar. 2020.
ZOOM Video Communications. In: Wikipedia, The Free Encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Zoom_Video_Communications. Acesso em: 27 mar. 2020.