Diálogos entre Literatura e Computação – possíveis entradas

Diálogos entre Literatura e Computação – possíveis entradas

Os avanços na área da Computação e o acesso a diferentes tecnologias digitais tem mudado paradigmas e hábitos em diferentes áreas. Na Literatura, há mudanças nas práticas de preservação, na produção e, também, na forma de acesso/consumo. Nessa edição da coluna Artigos o Prof. Dr. Vinícius Carvalho Pereira, da Universidade Federal de Mato Grosso, que em seu Grupo de Pesquisa atua, dentre outros interesses, com os temas Literatura, Mídia e Tecnologia e Literatura Eletrônica, apresenta aos leitores da SBC Horizontes conceitos e perspectivas sobre Literatura Eletrônica, convidando-nos ao conhecimento dessa área ressignificada pelas tecnologias digitais. Boa leitura!

Clodis Boscarioli – Editor da Coluna Artigos.


Diálogos entre Literatura e Computação – possíveis entradas

Por Vinícius Carvalho Pereira 

Diante da acelerada revolução técnico-científica dos últimos cinquenta anos, em que os dispositivos computacionais vão ganhando crescente participação nas relações entre o humano, o mundo que o circunda e os signos com que se comunica, o papel da tecnologia vai sendo ressignificado nas práticas culturais mais diversas.

No âmbito das artes plásticas e do audiovisual, são cada vez mais comuns as experiências estéticas em instalações ou exposições em galerias virtuais ou “físicas” que mobilizam recursos computacionais, a exemplo de iniciativas como o FILE – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica, o Electrofringe e a Zero – the Art and Technology Network. Seja em espaços específicos para práticas artísticas digitais, como o Ars Electronica Center, na Áustria, seja em instituições que eventualmente acolhem exposições itinerantes dessa natureza, como o Itaú Cultural, no Brasil, o público vem tomando contato com linguagens artísticas transformadas pelos recursos computacionais.

Orientadas pelo mesmo vetor, comunidades acadêmicas de todo o mundo têm se dedicado ao estudo das mudanças nas artes audiovisuais a partir do cruzamento cada vez maior entre as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e os processos de produção, circulação e recepção de obras. E, claro, não faltam artistas da multimídia investindo nas potencialidades da “computabilidade”, como Andrei Thomaz, Mez Breeze, ou tantos outros. Por outro lado, são menos conhecidos entre público geral, pesquisadores ou artistas projetos estéticos que coloquem em diálogo a literatura e a computação.

As causas para essa discrepância são várias, passando pelas tímidas linhas de fomento governamental a projetos na área; pelo imaginário em torno da palavra escrita e da literatura como instituição; pelas práticas socioculturais que tradicionalmente concebem o uso do computador ou de smartphones como apartado da leitura literária; entre tantos outros fatores.

Contudo, como provam as obras indicadas na Electronic Literature Collection, na ELMCIP – Anthology of European Electronic Literature, no projeto Cultura Digital Chile ou no Atlas da Literatura Digital Brasileira, há comunidades dedicadas à produção, preservação e divulgação de projetos estéticos de fôlego no âmbito da literatura e novas tecnologias.

 

É curioso ainda notar, no bojo dessa discussão, como não há consenso quanto à nomenclatura utilizada para se referir a produções literárias desenvolvidas no/para o digital: muitos utilizam de forma indistinta termos como “literatura eletrônica”, “literatura cibernética/ciberliteratura” e “literatura digital”. Ainda que se reconheça que cada um desses adjetivos atrelados ao substantivo “literatura” denota a especificidade do campo por uma associação particular (respectivamente, ao eletrônico, em oposição ao elétrico; ao cibernético, por referência à comunicação entre máquinas; e ao digital, em oposição ao analógico), o conjunto de obras recobertas pelos três termos é praticamente o mesmo, o que justifica seu uso intercambiável neste contexto.

Considerando tal variedade de nomenclaturas, talvez possamos aqui partir da definição de literatura eletrônica postulada pela Electronic Literature Organization (maior grupo mundial de estudos sobre o tema): textos que contêm “um aspecto literário importante que aproveita as capacidades e contextos fornecidos por um computador independente ou em rede” (HAYLES, 2009, p. 21).

No entanto, como não são poucas as “capacidades e contextos fornecidos por um computador independente ou em rede”, nem é muito fácil precisar o que seja um “aspecto literário importante”, essa definição acaba por recobrir um universo demasiado vasto de formas artísticas. Assim, a definição da ELO – ou qualquer outra – não deve nos servir aqui como camisa de força, mas sim como um indicador de possíveis percursos. De todo modo, em geral não são incluídos sob o rótulo de literatura eletrônica textos originalmente concebidos para o suporte impresso mas veiculados em meio digital, como em arquivos em formato .PDF, ou em volumes consumidos em tablets ou e-readers.

Dado esse breve panorama, e a fim de divulgar entre os leitores da Horizontes um pouco do que se tem produzido em língua portuguesa no âmbito da literatura eletrônica, apresento, neste artigo, algumas obras e artistas que talvez possam servir de porta de entrada a esse universo tão fascinante. No grupo de pesquisa que integro, o SEMIC – Semióticas Contemporâneas, temos desenvolvido estudos sobre algumas dessas obras (entre tantas outras) e as provocações estéticas, filosóficas e técnicas que elas colocam, percebendo que se trata de um campo em franca expansão no âmbito da interação humano-computador.

Ficção hipertextual

De Marcelo Spalding, Um estudo em vermelho é um hiperconto cuja arquitetura hipertextual conecta cenas de uma narrativa policial breve e páginas da Wikipedia, simulando pelas conexões entre links eletrônicos um pouco da lógica reticular subjacente a investigações detetivescas. Como em toda ficção hipertextual, o enredo se desenrola a partir de escolhas feitas pelo leitor/usuário, o qual vai clicando em âncoras na interface a apontar para possíveis desenvolvimentos da narrativa.

Se a quantidade de nós recombináveis é relativamente baixa, em comparação com outras obras do mesmo gênero, o trabalho de Spalding merece reconhecimento, nas palavras do autor, como “o primeiro hiperconto do Brasil”, em que se notam também relações com outros autores clássicos do gênero policial, como Edgar Allan Poe e Arthur Conan Doyle.

Poesia eletrônica

Na herança dos poetas concretistas, a poesia eletrônica brasileira tem entre seus mais conhecidos praticantes hoje André Vallias, que mantém parte da sua produção em site próprio, mas atualmente vem divulgando seus poemas em hipermídia com mais frequência em perfil no Instagram.

Vallias trabalha com recursos de imagem, animação e som em suas obras, realizando em mídia digital um pouco do que ficara conhecido como poema verbivocovisual desde os anos 50 em nosso país. Sua produção dialoga com grandes nomes da filosofia e da arte do século XX, como Bertold Brecht, Villém Flusser e Georg Trakl, convidando-nos a processos de recepção que estão a meio do caminho entre o ver e o ler e hoje se tornaram tão populares em redes sociais que associam a palavra e a imagem.

Também em diálogo com a tradição da poesia visual no Brasil, mas operando com outras tecnologias computacionais, merece destaque o trabalho de Arnaldo Antunes. Para além de sua atuação como letrista, cantor e escritor, o site do artista documenta também produções poéticas em GIFs animados, recorrendo a formatos em bitmap para garantir uma linguagem visual dinâmica às letras que se movimentam para (de)formar seus textos.

Do outro lado do Oceano Atlântico, o português Rui Torres é um dos maiores expoentes hoje na poesia generativa em nossa língua. Sua produção consiste no desenvolvimento de motores textuais que, a partir de regras sintáticas de combinatória e complexos bancos de dados, produzem automaticamente textos poéticos inéditos. Na página do projeto Telepoesis.net, podem ser acessadas obras de Torres que compõem poemas a partir do rearranjo de palavras e/ou versos de grandes nomes da literatura lusófona, como Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Sophia de Melo Breyner Adersen, Ana Hatherly, entre outros.

Muitos dos projetos torreanos são desenvolvidos no Poemário, “uma lib inicialmente programada em Actionscript 3.0, agora actualizada e melhorada em JavaScript, que permite a qualquer utilizador construir textos (poemas, narrativas, cartas, etc) seguindo procedimentos combinatórios” (TORRES, n.d.). O trabalho do artista mantém também relações com projetos anteriores em Portugal quanto à poesia generativa, em especial a de Pedro Barbosa, que em 1976 já desenvolvia trabalhos dessa natureza.

Arte & Computação

Se, do ponto de vista da pura fruição, todas essas obras já nos chamam a atenção, elas também convidam a parcerias entre artistas e profissionais da Computação para desenvolvimento de novos projetos estéticos mobilizando a palavra oral ou escrita, a imagem e recursos de programação, bancos de dados, hipermídia, interface, hardware, realidade virtual, inteligência artificial, games, ou o que mais a criação conjunta possa invocar. Ademais, colocam-se aí questões interessantíssimas para a crítica especializada e para a pesquisa científica, a serem enfrentadas em empreitadas de fato interdisciplinares.

Entre os pontos para os quais este debate abre caminhos destacam-se:

  • a preservação dessas obras em tempos de cada vez mais rápida obsolescência tecnológica;
  • a investigação sobre a interação humano-computador sob perspectivas estéticas;
  • as relações tensas entre mercado, desenvolvimento tecnocientífico, cultura digital e literatura/arte eletrônica; e
  • propostas educacionais que aliem as dimensões humanas e técnicas da vida social, preparando-nos para ler e produzir, criticamente, na tecnoesfera.

Como um campo crescente e promissor, a literatura eletrônica só tem a se beneficiar por contribuições de diferentes áreas, sobretudo ao desconstruir estereótipos e preconceitos sobre arte e tecnologia e retomar uma relação íntima entre essas duas formas de produção humana de saber. Fica aqui, pois, um convite para adentrar esse universo tão rico.

Referências

HAYLES, Katherine. Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Global, 2009.

TORRES, Rui. Introdução ao Poemário. n.d. Disponível em https://telepoesis.net/poemario/?page_id=2. Acesso em 15 mai 2020.

Como citar este artigo:

PEREIRA, Vinícius Carvalho. Diálogos entre Literatura e Computação – possíveis entradas. SBC Horizontes, maio 2020. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/05/25/dialogos-entre-literatura-e-computacao-possiveis-entradas/>. Acesso em: DD mês. AAAA.

Sobre o autor

Vinícius Carvalho Pereira é Doutor e Mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bacharel e licenciado em Letras Português-Inglês pela mesma instituição. É professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Nottingham (UoN), no Reino Unido. É líder do grupo de pesquisa SEMIC – Semióticas Contemporâneas, certificado pelo CNPq – dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4228875465821246. Atua principalmente nas seguintes áreas: Línguas Estrangeiras Modernas; Literatura Moderna e Contemporânea; Literatura, Mídia e Tecnologia; Literatura Eletrônica; Semiologia.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1844-8084. E-mail para contato: viniciuscarpe@gmail.com.

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