O amor nos tempos do like: é possível reconhecer uniões estáveis virtuais?

O amor nos tempos do like: é possível reconhecer uniões estáveis virtuais?

Por Letícia Lopes Borja.

(Especial GEDI-ERDITI2023)

Com o avanço tecnológico e o desenvolvimento de plataformas de interação virtual cada vez mais funcionais, testemunha-se uma verdadeira transformação na dinâmica dos relacionamentos interpessoais contemporâneos, a partir da possibilidade de criação de vínculos de afeto estáveis e duradouros em meios digitais, seja entre indivíduos que já se conhecem pessoalmente, ou mesmo entre aqueles que nunca conviveram de maneira presencial.

Diante desse cenário, pergunta-se: 

É possível que relacionamentos virtuais sejam juridicamente reconhecidos como uniões estáveis, à luz do ordenamento jurídico brasileiro? 

 

Para responder a essa pergunta, é importante explicar que, durante muito tempo, a ideia de família era entendida de uma única forma: baseada no casamento, com um foco no pai como chefe da família, em uma estrutura hierárquica e impessoal.

Contudo, com a promulgação da Constituição de 1988, a família passa a ser vista como um instrumento para a realização da felicidade individual de seus membros. Assim, longe de limitar as formas de configuração familiar, o legislador busca abraçar os mais diversos núcleos de afeto, conferindo-lhes reconhecimento e proteção jurídica. Nesse contexto, verificou-se que o ambiente on-line, de forma semelhante ao presencial, também pode configurar um espaço de construção e manutenção de vínculos amorosos sólidos e estáveis, abrindo margem para a tutela estatal por meio da configuração de uniões estáveis. 

A união estável é diferente do casamento, mas não é inferior a ele. Ela surge da convivência espontânea e informal entre duas pessoas, sem precisar de um reconhecimento oficial do Estado. Por ser uma situação baseada na realidade do dia a dia, a lei não a define de forma rígida, deixando para o juiz decidir caso a caso se deve reconhecê-la ou não. 

Para que um relacionamento seja juridicamente reconhecido como união estável, precisa preencher alguns requisitos:

  • Publicidade Os parceiros devem viver de forma pública, agindo como se fossem casados, sem esconder o relacionamento. Isso exclui relações secretas ou clandestinas, que mostram falta de interesse em viver como família (Farias; Netto; Rosenvald, 2020).
  • Continuidade Existência de uma convivência contínua e sólida, com intenção de permanência e definitividade, diferenciando-se de relações passageiras ou eventuais (Gagliano; Pamplona Filho, 2022). 
  • Estabilidade União duradoura, prolongada no tempo. Inicialmente, a Lei nº 8.971/1994 exigia uma convivência mínima de cinco anos ou existência de filhos para que houvesse o reconhecimento da união estável. A partir da Lei nº 9.278/1996, todavia, essa exigência foi removida, pois relacionamentos mais curtos também podem ser estáveis (Furlan, 2003).
  • Intuitu familiae (ânimo de constituir família) Elemento subjetivo e teleológico, O casal deve ter a firme intenção de viver como uma família, ajudando-se mutuamente e trabalhando juntos para alcançar objetivos comuns.

Além disso, de acordo com a Súmula nº 382 do STF, morar juntos não é mais um requisito para que a união estável seja reconhecida. Da mesma forma, o artigo 1.724 do Código Civil, que lista os deveres da união estável, não menciona a obrigação de coabitação, diferentemente do casamento.

Às vezes, os parceiros não podem morar juntos por razões pessoais ou profissionais. No entanto, isso não significa que falta amor ou a intenção de formar uma família. Os deveres da união estável, como lealdade, respeito, assistência mútua e cuidar dos filhos, continuam valendo (Gomes, 2017). Afinal, a distância física não implica em falta de afeto (Silva, 2020). 

Mas como preencher esses requisitos em relacionamentos à distância?

Aqui vão alguns exemplos:

Do ponto de vista processual, a internet pode ser utilizada como uma importante fonte de prova, facilitando a comprovação dos requisitos da união estável em eventual demanda judicial concernente a relacionamentos à distância (Rescheke, 2021).

Em face deste cenário, está claro que o simples fato da união ocorrer por meio virtual não impede a caracterização da união estável, desde que observado a configuração dos demais requisitos. Se nem mesmo o afastamento físico e as limitações da tecnologia impediram a manufatura fática e diária dos laços de afeto, por que a letra fria da lei deveria negar a estes o reconhecimento jurídico? 

Mais do que isso, o fato dos relacionamentos acontecerem na internet facilita e até mesmo potencializa tais requisitos legais, tendo em vista o alcance social das plataformas tecnológicas e a variedade de mecanismos de comprovação das mencionadas exigências.

REFERÊNCIAS

 

FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2021.

 

FURLAN, Melisa. Evolução da união estável no Direito Brasileiro. Cadernos de Direito (UNIMEP), Piracicaba, v. 2, n. 4, p. 167-183, 2003.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil: volume único. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

 

GOMES, Illana Cristina Dantas. A (des)necessidade de coabitação para configuração de união estável e o direito de viver só. Revista Eletrônica Jurídico-Institucional do Ministério Público do Rio Grande do Norte, v. 7, n. 12, p.1-14, 2017.

 

RESCHKE, Ana Júlia de Campos Velho. A possibilidade de reconhecimento de relações familiares virtuais: um olhar a partir do conceito instrumental da família contemporânea. 2021. 71 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público, Porto Alegre, 2021.


SILVA, Gilson Peres Tosta da. Possíveis contribuições das redes sociais mediadas pela internet para os relacionamentos amorosos. Revista Multiverso, [S.l.], v.1, n.2, p. 181-195, 2016.

Sobre a autora

LETÍCIA LOPES BORJA

Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), na linha de Direito Internacional e Jurisdição. Mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), na linha de Direito Internacional Público. Pesquisadora no Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6127647534294314.

Como citar esta matéria

Lopes Borja, Letícia. O amor nos tempos do like: é possível reconhecer uniões estáveis virtuais?. SBC Horizontes, SBC Horizontes, Julho 2024. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2024/07/o-amor-nos-tempos-do-like-é-possível-reconhecer-uniões-estáveis-virtuais?/>. Acesso em:<data>

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