GameTalk #1: Papo & Yo, violência doméstica e design de jogos críticos
Por: Rebeca Haddad e Ticianne Darin
Sabe quando você assiste um filme ou ouve uma música que fala profundamente com você? Daqueles que te obrigam a parar, um minuto que seja, para pensar sobre a vida? Essa é a experiência única de jogar Papo & Yo (Minority Media). Lançado em 2012, o jogo para PC e PS3 foi desenvolvido por Vander Caballero, um líder estabelecido em inovação de jogos canadense. Quando era Diretor de Criação da Electronic Arts (EA), Vander participou de equipes que criaram títulos icônicos da cultura dos jogos: Army of Two e FIFA, entre outros.
Papo & Yo é um jogo de aventura e fantasia – mas que trata de um tema inesperado em um jogo – o medo e a dor de crescer com um pai alcoólatra e abusivo.
Papo & Yo é um impecável exemplo de Jogo Crítico que, de maneira simples, podemos enteder como jogos que dialogam com uma situação da realidade humana e estimulam a conscientização ou nos permitem (re)pensar nossa vida.
O conceito de Papo & Yo
Você lembra de Procurando Nemo? Que história terrível! Cinco minutos de história e você perde a sua mãe, perde os seus irmãos. Dez minutos de história e você se perde. Mas eles são capazes de trazer estas histórias realmente pesadas e imergir você nelas, sem te fazer sentir medo. É isso que eu quero fazer. – Vander Cabellero
Quando começamos a jogar Papo & Yo não sabemos exatamente o que encontraremos, além de um jogo indie com uma alegoria sobre traumas familiares. Ao jogar, nos deparamos com uma forma ainda mais sensível de construir esse cenário, pois ele é montado sob a ótica de alguém que já sofreu abuso doméstico. Augusto dos Anjos disse, em 1912, que a mão que afaga é a mesma que apedreja, e é nessa citação de Versos Íntimos que encontramos uma boa síntese para o que o jogo, de fato, representa.
Quando Vander Caballero concedeu uma entrevista sobre Papo & Yo para o Giant Bomb, ele revelou que o jogo retrata sua própria infância sobrevivendo ao pai alcoólatra. Vander enfatizou, também, a relevância de pessoas que passaram por traumas desenvolverem projetos artísticos como um espaço para que crianças e adolescentes possam encontrar resoluções para seus conflitos. Ou, pelo menos, compreensão em relação ao que estão passando.
Queremos sempre dar aos nossos filhos a infância que não tivemos. Mas também é crucial transmitir a sua aprendizagem a eles. Quando era criança, eu jogava Nintendo e era mais sobre as coisas serem “boas” ou “más”. Você é Mario e o resto é mau. A vida não é assim. O que eu quero fazer no jogo é: o teu Monstro é teu amigo, você vai amá-lo, mas ele também pode tornar-se mau. Ele pode ser maligno. É isso que eu quero: quero que a criança que jogue este jogo obtenha um pouco mais de satisfação e crescimento do que obteria de outra maneira. É esse o meu objetivo. – Vander Caballero
O conceito crítico na jogabilidade
O jogo se passa em um ambiente metafórico baseado em uma favela que é alterado por Quico – o protagonista – de acordo com sua imaginação. O monstro é um amigo que o ajuda a resolver puzzles. Porém, ele possui um vício por sapos, que podem o deixar violento.
O jogo traça, assim, uma narrativa entre a relação passivo-agressiva que Quico desenvolve com o monstro, além de flashbacks baseados na realidade cruel do menino convivendo com um pai que se torna violento ao beber. É encantador no jogo como o monstro é a chave principal da maioria dos puzzles. Passamos a enxergá-lo como uma criatura irracional que pode ferir Quico mas, ao ser usada com inteligência, o ajuda a se deslocar pela cidade e descobrir suas passagens secretas.
Essa perspectiva de jogabilidade não deixa de ser reconfortante. Ser vítima de violência doméstica é, de fato, sobre encontrar no seu trauma a passagem para os problemas que você desenvolve por causa dele. Não podemos apagar a dor vivida, mas podemos nos preparar parar viver nossas oportunidades da melhor forma e usar essa lembrança difícil como instrumento de mudança social.
Jogos críticos e o game design reflexivo
A expectativa de senso comum exclui a possibilidade de reflexão através dos jogos por entender que eles têm a função básica de entreter, o que não acontece com livros e filmes (Frasca, 2003). Você não acha estranho quando lê um livro ou vê um filme que veicula conteúdos mais sérios e levam à reflexão, acha? Da mesma forma, nada impede que jogos também possam promover o engajamento de jogadores com determinados assuntos mais reflexivos!
O design de jogos críticos tem como tema as maneiras pelas quais o design reflete características sociais específicas. Em termos de sociedade, todo objeto projetado – seja um jogo ou uma cadeira – serve como um tipo de medidor de ansiedade social, preconceito e valor. Assim, o design fornece uma resposta à “temperatura ou pressão” social (Grace, 2014).
O design crítico é, nessa perspectiva, um meio de crítica social e, como a maioria das críticas, precisam de um assunto para ser analisado. Para que a crítica seja efetiva, é preciso que o jogo crie tensão entre as normas sociais vigentes e as reivindicações feitas pelo jogo quanto ao assunto escolhido (Grace, 2014).
Por exemplo, um jogo racista em uma cultura racista tem menos chance de ser um design crítico, porque não fornece contraste. Esse é o dilema dos jogos críticos – eles devem se basear na reflexão.
O foco pode ser tanto desconstruir visões estabelecidas da realidade, quanto promover o contato com culturas alternativas, com outros grupos e povos (reais ou imaginários), apresentando ao jogador a possibilidade de viver a partir de outros conjuntos de valores e práticas sociais (Magnani, 2007).
Nesse sentido, o design de jogos críticos é um reflexo das mudanças na sociedade em que foram produzidos, podendo abordar a crítica política, estética e social (Flannagan, 2009). Esses jogos podem criar espaço para que o jogador se deparasse com idéias e discursos que coloquem em questão o senso comum ou discursos naturalizados dentro do universo social em que está inserido (Magnani, 2007).
Outros exemplos de jogos críticos para você explorar:
Among the Sleep | È uma aventura de terror em primeira pessoa, na qual o personagem do jogador é uma criança de dois anos, que sofre abusos da mãe. Depois de ser colocado na cama uma noite, eventos misteriosos começam a se desenrolar e o jogador começa a explorar a escuridão em busca de conforto. O jogador se percebe vulnerável, assustado e tentando entender o mundo. A perspectiva de primeira pessoa de uma criança permite que o jogador mergulhe na imaginação ilimitada de uma criança também, uma perspectiva com a qual todos podemos nos relacionar, mas poucos se lembram claramente. |
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Phone Story é um jogo para smartphones que tenta provocar uma reflexão crítica sobre sua própria plataforma tecnológica. O jogo retrata o dispositivo celular como o produto de uma preocupante cadeia de suprimentos que se estende por todo o globo. Phone Story representa esse processo com quatro jogos educacionais que tornam o jogador simbolicamente cúmplice na extração de coltan no Congo, mão de obra terceirizada na China, lixo eletrônico no Paquistão e consumismo de gadgets no Ocidente. |
SUS, the game |
Permite ao jogador experimentar como seria estar em um hospital público no Brasil (e provavelmente em quase qualquer país com más condições hospitalares / administração). No jogo, só há um médico para tratar o jogador, e o desafio é encontrá-lo antes que seja tarde demais. A descrição do jogo diz: Ninguém se importa ou quer te ajudar, então boa sorte! |
É um jogo de terror psicológico inspirado na luta real do desenvolvedor contra a doença mental. O jogador assume o papel de de um jovem que acorda de um pesadelo para descobrir que ainda está sonhando. À medida que se aprofundanas camadas do pesadelo, ele deve se esconder de aparições horríveis e fugir de seus demônios internos. Ele precisa, ainda, descobrir quais deles são uma manifestação de seu próprio estado psicológico e descobrir qual será a realidade, quando ele finalmente acordar. |
https://www.youtube.com/watch?v=tttNDbQ65jE&feature=emb_title
Ending game…
É claro que seria simplista esperar que somente jogar um jogo garanta que alguém, cujos modelos mentais e interpretativos estão já estabelecidos, analise de forma totalmente diferente sua própria vida, suas escolhas, aspectos éticos ou relações sociais. Porém, da mesma forma, é contestável ir para o extremo oposto e pensar que a reflexão proposta por jogos críticos seria infrutífera.
Papo & Yo é um bonito exemplo disso. Segundo o Resource Center on Domestic Violence, 4 milhões de queixas referentes a maus tratos foram feitas por órgãos que protegem crianças (U.S. Department of Health and Human Services, 2015). Inclusive, segundo o World Health Organization, 35% dos casos de abuso infantil relatados, pelo menos nos Estados Unidos, revelam que os agressores estavam consumindo álcool ou outras drogas durante o acidente.
Realidades como essa nos fazem querer ver mais jogos digitais se inspirando no projeto de Vander e disponibilizando para tantas pessoas no mundo uma possibilidade de identificação. Afinal, vemos na voz ativa uma das maneiras mais poderosas que temos de mudar o mundo e torná-lo um lugar seguro para todos que habitam nele.
O que queremos que novas gerações reverberem no futuro é delicadeza e paciência. Queremos crianças não ansiosas que possam falar sobre seus sentimentos e queremos que nossas crianças sejam felizes. Os jogos estão cada vez mais populares entre elas e, por isso, é tão oportuno tornar esse meio de entrenimento um exercício para que elas possam desenvolver empatia, consciência social e uma identidade que busca ajudar ao próximo.
Encontramos em Papo & Yo uma inspiração para usar experiências passadas como motor de protesto e mudanças. A arte pode mover o mundo e transformar um processo fatal em uma fase, com possíveis saídas. Acreditamos que os jogos agora tem novas responsabilidades: a de comunicar esperança e desafiar a mudança.
Como citar este artigo
Haddad, R., Darin, T. 2020. GameTalk #1: Papo & Yo, violência doméstica e design de jogos críticos. SBC Horizontes. ISSN: 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/12/gametalk-1-papo-yo-violencia-domestica-e-design-de-jogos-criticos/
Sobre as autoras:
Rebeca Haddad, é graduanda em Sistemas e Mídias Digitais na Universidade Federal do Ceará. Sonha em mostrar para as pessoas como as mídias podem disseminar arte, cultura e mudança social para o nosso mundo, principalmente jogos.
Ticianne Darin é professora adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde ministra disciplinas e realiza pesquisas nas áreas de Interação Humano-Computador e Design e Jogos Digitais. Seus atuais interesses de pesquisa envolvem: experiência do usuário e do jogador, avaliação da qualidade de uso de sistemas interativos (por exemplo, usabilidade e acessibilidade) em diferentes domínios, design de interação e interação jogador-jogo, com foco em engajamento, motivação e bem-estar. Ticianne é idealizadora da Célula de Design e Multimídia, no curso de Sistemas e Mídias Digitais (UFC), que desenvolve pesquisas nessas áreas. Atualmente, é membro do Programa de Mestrado e Doutorado em Computação (MDCC-UFC) e pesquisadora do GREat (Grupo de Redes de Computadores, Engenharia de Software e Sistemas, onde desenvolve projetos de Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação (PD&I) em parcerias entre Indústria e Universidade.
Referências
FLANAGAN, Mary. Critical play: Radical game design. MIT press, 2009.
FRASCA, G. (2001). Videogames of the opressed: Videogames as a means for critical thinking and debate. Master Thesis, Georgia Institute of Technology
MAGNANI, Luiz Henrique. Por dentro do jogo: videogames e formação de sujeitos críticos. Trab. linguist. apl., Campinas , v. 46, n. 1, p. 113-125, June 2007 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132007000100009&lng=en&nrm=iso>. access on 08 Dec. 2020.