Empatia em ambientes culturais diversos: O desafio da imersão
Sob a perspectiva de pesquisadores e professores da área de Interação Humano Computador (IHC) e Experiência de Usuário (UX) do Brasil e México, este artigo fala de empatia com culturas diferentes. Os autores sugerem que experiências de imersão em outras culturas podem nos ajudar a desenvolver essa habilidade de reconhecer e entender diferenças, aspecto essencial ao projetar a interação com produtos e serviços. Além disso, eles ilustram essa idéia compartilhando uma deliciosa experiência cultural que contrasta culinária, música e outros tipos de arte nos dois países. Aproveite essa viagem cultural e boa leitura!
Empatia em ambientes culturais diversos: O desafio da imersão
Por Soraia Silva Prietch e J. Alfredo Sánchez
Os pesquisadores da área de Interação Humano-Computador (IHC) têm ponderado sobre a importância dos aspectos culturais no design de interfaces de usuário desde os primórdios deste campo multidisciplinar (YEO, 1996) (KHASLAVSKY, 1998). Estes estudos vêm tomando força cada vez mais na medida em que se tem evidenciado a influência do contexto e das interações sociais, associados aos valores individuais e coletivos, na experiência do usuário (SALGADO, LEITÃO & DE SOUZA, 2013); (PEREIRA & BARANAUSKAS, 2015). Devido a isso, projetar a Experiência do Usuário (UX) para diferentes culturas tem se mostrado um desafio elusivo.
Diversas metodologias atualmente em uso para design de UX contam fortemente com a noção de empatia com as pessoas envolvidas e interessadas, a fim de serem capazes de entender suas motivações e necessidades.
Neste sentido, questionamos: Como os designers de UX podem desenvolver empatia com as culturas e entender diferenças aparentemente sutis que impactam o design de UX de maneira crítica, uma vez que familiarizar-se com esses aspectos culturais pode exigir uma longa imersão?
Se mantivermos a mente aberta, a imersão de longo prazo nos permitirá conhecer e ser sensíveis aos aspectos culturais a serem considerados ao projetar experiências positivas para uma diversa gama de pessoas e contextos. Como nem todos os designers de UX poderiam morar em vários países por longos períodos antes de aplicar metodologias baseadas na empatia, a exposição a estudos culturais e relatos de experiências com outras culturas deveria ser útil nesse processo.
Além disso, as comunidades profissionais e acadêmicas podem ajudar seus membros a desenvolver a consciência da diversidade cultural por meio de diferentes formas existentes e novas de interação. Começamos a explorar esses meios informalmente neste artigo compartilhando experiências de imersão específicas, bem como sugerindo alguns meios para facilitar o acesso e desenvolver a sensibilidade às diferenças culturais.
Em tempos normais, sem pandemia, quando viajamos a passeio, de férias ou para participar de conferências, geralmente ficamos por um curto período de tempo, aproveitando as oportunidades para conhecer os pontos turísticos e lugares interessantes. No entanto, dificilmente é possível explorar todas as possibilidades. Esta perspectiva muda quando as pessoas migram ou permanecem por longos períodos em outro lugar onde a cultura é diferente daquela que estão acostumadas a vivenciar.
Compartilhamos a seguir casos específicos sobre algumas vivências dos autores.
Nós trazemos algumas características do Brasil e do México que podem não ser conhecidas, mas que podem ter impacto enquanto os designers de UX desenvolvem a empatia ou projetam a interação com produtos ou serviços.
A língua
Um aspecto pitoresco a respeito das línguas portuguesa e espanhola são os falsos cognatos, palavras de duas línguas que possuem grafia ou sonoridade semelhantes mas têm significados diferentes. Dentre muitos falsos cognatos, podemos lembrá-los de alguns exemplos mais conhecidos: embarazada (grávida), saco (casaco) e exquisito (delicioso). Ademais, existem outros que permitem uma sequência de percepções equivocadas. Por exemplo, “olvido” em espanhol significa “esqueço” (apesar de soar como “ouvido”) em português, por sua vez “esqueço” soa como “es queso” em espanhol, que significa “é queijo” em português.
Outro fato curioso, e muitas vezes frustrante, é quando usamos o Google Tradutor de português para espanhol ou vice-versa. Os resultados que recebemos são inusitados porque ele utiliza o inglês como língua intermediária para entregar a tradução. Por exemplo, se buscamos “extrañar” (sentir falta) em espanhol, o resultado é “senhorita” em português, uma vez que “miss” é o resultado intermediário em inglês.
Culinária
Com relação à culinária, não é frequente encontrar no México os pratos que a maioria dos chamados “restaurantes mexicanos” oferecem no Brasil (e em outros países). Similarmente, na maioria dos “restaurantes brasileiros” no México não é possível encontrar a grande riqueza da culinária brasileira, já que é comum associá-la somente com rodízios de carnes (chamados lá de espadas).
Sendo mais específicos, como exemplos de comida de rua, aqui definida como mais acessível e rápida para “fazer uma boquinha”, em Rondonópolis no Brasil, é muito comum encontrar espetinhos, lanches (x-bagunça, x-salada, etc.), variados tipos de salgados (coxinha, esfirra, etc.), tapioca, tigelas de açaí, pipoca, churros e raspadinhas. Em Puebla no México, as comidas de rua mais comuns estão relacionadas à famosa “vitamina T”: tortillas, tostadas, tacos, tlayoyos, tortas, tamales, tlayudas, totopos e por aí vai, bem como cemitas, jicaletas, gorditas, esquites e, é claro, tudo acompanhado de algo picante.
Também precisamos mencionar alguns pratos exquisitos – em espanhol – da culinária mexicana: mole poblano (“de Puebla”) – (Figura ao lado) -, chile en nogada, pipián verde, mixiotes, dentre outros e, para acompanhar, um bom mezcal, pulque ou água de sabor.
No entanto, estes são considerados “platos fuertes”, ou seja, pratos principais de uma refeição que, geralmente, tem três momentos: entrada, prato principal e sobremesa. Apesar da culinária do México ser muito rica, quando estamos longe de nossa terrinha, de vez em quando bate aquela vontade de comer uma suculenta moqueca de pintado acompanhada de uma deliciosa farofa de banana da terra, pratos típicos cuiabanos (Figura 1b), acompanhados de um copo de garapa com limão.
Brasil e México: o quanto conhecemos uns aos outros?
Para ilustrar o quão próximos e distantes os brasileiros e os mexicanos podem estar em termos de cultura e conhecimento um do outro, mas também para fundamentar nossa postura com instâncias além de nossa experiência e ponto de vista pessoal, realizamos entrevistas informais com amigos e familiares, sendo onze participantes do Brasil e sete participantes do México. Perguntamos sobre música, geografia e tradições.
A partir das entrevistas, criamos dez listas de vídeos musicais para ouvir, curtir e compartilhar o que descobrirmos. Cada lista consiste no somatório de músicas ou cantores: mais ouvidos atualmente pelos entrevistados (MX e BR), que resgatam memórias de alguém da família ou de pessoas amadas (MX e BR), sobre empoderamento LGBT ou das mulheres (BR e MX), de povos originários (BR e MX), com engajamento sócio-político-cultural (BR), e de outros países lusófonos (BR). Apesar do número reduzido de participantes e do viés nas preferências musicais devido às afinidades e convergências na vida, foi possível notar alguns aspectos que chamaram atenção e que podem ser aprofundados em investigações futuras formais.
Notamos que as pessoas no México ouvem mais músicas em espanhol de outros países hispanofalantes do que as pessoas no Brasil ouvem músicas em português de outros países lusófonos. As músicas e cantores indígenas brasileiros foram indicados por uma historiadora. Por outro lado, várias pessoas no México souberam indicar artistas dentre os povos originários. Com relação às músicas de engajamento sócio-político-cultural (de lutas relacionadas à classes sociais e opressão política), só no Brasil diversas canções foram identificadas. Essa questão foi abordada de modo separado ao empoderamento LGBT e de mulheres, que em ambos os países apresentaram diversas referências musicais. Algo interessante que observamos são os motivos pelos quais determinadas músicas são escolhidas para tocar em ambos os países: estado emocional, atividade a ser realizada e recordações de alguém ou situação especial.
Ampliando a discussão sobre belas artes, vamos apenas deixar o gostinho de “quero mais” com alguns exemplos. Quando se pensa em México, as primeiras imagens sobre arquitetura que nos vêm à cabeça são as pirâmides. E estas são monumentais, sendo muitas situadas em zonas arqueológicas em toda a extensão do país. Alguns exemplos são: Teotihuacán, Monte Albán, Chichén Itzá. Em ambos países, no centro de cidades grandes mais antigas, se vê arquitetura com igrejas e prédios com arquiteturas inspiradas em países europeus (Figura 2 e Figura 3), tais como o Palácio Nacional na Cidade do México ou o prédio do Centro Cultural do Branco do Brasil em São Paulo.
Não vamos entrar na disputa para saber qual dos dois países têm mais museus, então vamos nos concentrar na pintura e na escultura. Algo impressionante no México são os murais, pinturas que tomam metros e metros de paredes, tais como os murais de Diego Rivera, José Clemente Orozco e Rufino Tamayo. Outros pintores mexicanos são Rafael Coronel, Frida Kahlo, Remedios Varo, Francisco Toledo, e escultores como Javier Marín, Leonora Carrington, José Luis Cuevas e Sebastián. No Brasil, podemos apreciar as instalações em azulejos de Athos Bulcão e de Adriana Varejão, as pinturas de Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Anita Mafaltti, as esculturas de Aleijadinho e de Felícia Leirner, e as obras de Rubem Valentim.
Prosseguindo para dança e teatro, um dos espetáculos no México de arrepiar e de instruir visitantes de outro país, é o Ballet de Amalia Hernández. Este Ballet é orquestrado com músicas, danças e encenações tradicionais de vários estados do país em um único show. Entrando na viagem literária mexicana, destacamos Carlos Fuentes, Juan Rulfo, José Emilio Pacheco, José Agustín, Jorge Ibargüengoitia, Octavio Paz. No Brasil, recomendamos os livros de Rubem Fonseca, Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro, Monteiro Lobato e Jorge Amado. Por fim, a sétima arte! O cinema brasileiro reflete muito sobre a diversidade sócio-cultural de seu povo, assim como em Dona Flor e seus dois maridos, O auto da compadecida, e Bacurau. Por meio do cinema mexicano também conhecemos essa diversidade, que coincide nas distantes diferenças sociais, na beleza natural e na criatividade, podendo ser vista em El laberinto del fauno, Roma, e filmes da Época de Oro.
No México, ao longo do ano muitas das tradições são cultivadas para que se propaguem de geração em geração, tais como a rosca de reyes dos três reis magos no dia 6 de janeiro, os calendários anuais com os dias dos santos (ex., 12 de dezembro é o dia de Nossa Senhora de Guadalupe), a música de parabéns nos aniversários com “Las Mañanitas”, e “El Grito” proferido pelo Presidente no Palácio Nacional a cada 15 de setembro para celebrar a Independência do país. Uma data típica é o Dia dos Mortos com as “ofrendas” para homenagear entes queridos, as calaveras em forma de poemas de humor sombrio ou feitas de açúcar e o saboroso “pan de muerto”. Nas festas de final de ano é costume realizar as “posadas”, romper as “piñatas”, cantar “villancicos” e, entregar e receber “aguinaldos”.
No que se refere à geografia, brasileiros e mexicanos em geral não estão familiarizados com muitos lugares importantes do outro país. Os brasileiros associam México à Cancún, Cidade do México e Acapulco (devido às férias do Chaves em um dos episódios do programa de TV), mas não evocam, por exemplo, Oaxaca, Guadalajara ou Veracruz, cidades fundamentais em termos da história, culinária, música e artes mexicanas. Do mesmo modo, é comum para os mexicanos associarem o Brasil ao Rio de Janeiro e São Paulo, mas Salvador, Natal, Brasília ou Belo Horizonte não se encontram no imaginário da maioria deles.
Sugestões para promover a imersão
Quando fora do nosso ambiente, naturalmente, tendemos a nos reunir em torno de pessoas que compartilham nossa cultura, idioma ou valores.
Em reuniões de trabalho, conferências acadêmicas ou passeios pela cidade, a maioria dos participantes que se comunicam usando a mesma língua materna ou que são conterrâneos formarão grupos para trabalhar juntos, almoçar ou tomar um cafézinho. Devido a isso, oportunidades de aprender sobre as perspectivas, línguas e culturas de outros são frequentemente perdidas. É necessário um esforço consciente coletivo para tornar um ambiente mais confortável e aproximar diversos indivíduos e grupos.
Transformando eventos em computação, IHC e UX em oportunidades de “quase imersão”
Eventos internacionais na área de computação, IHC e UX podem ser transformados em terrenos férteis para promover o interesse pela diversidade e aumentar a consciência e a empatia. O Congresso Latino Americano de Interação Humano-Computador (CLIHC) é um deles. O CLIHC reúne pesquisadores e profissionais da área de IHC de países da América Latina e aqueles interessados ou relacionados com a região.
Por exemplo, o evento poderia incluir uma trilha paralela tipo “alt-CLIHC” para oferecer experiências de imersão aos participantes. Além das sessões técnicas, seria possível agendar eventos explícitamente para que os participantes possam aproveitar a oportunidade para ter uma experiência “quase imersiva”, na qual possamos aprender sobre diversos aspectos culturais de onde outros participantes vêm. Esses eventos podem incluir, por exemplo, palestras sobre folclore, narração informal de histórias, discussão de música e de filmes, aulas de culinária, competições de gírias e de expressões idiomáticas, e escrita de narrativas por coautores de diferentes países.
Estas experiências de imersão permitiriam aos participantes aprender sobre suas diferenças e semelhanças culturais, o que os ajudará a se tornarem mais conscientes e sensíveis e, em última análise, mais capazes de empatizar ao projetar a experiência do usuário para uma diversa gama de pessoas e contextos.
Referências
Centro Cultural Banco do Brasil. In: Tripadvisor. Disponível em:. t.ly/PhbS. Acesso em: 12/02/2021.
KHASLAVSKY, J. Integrating culture into interface design. In CHI 98 conference summary on Human factors in computing systems. pp. 365-366, 1998.
Palácio Nacional (México). In: Wikipedia. Disponível em: t.ly/E8o2. Acesso em: 12/02/2021.
PEREIRA, Roberto; BARANAUSKAS, Maria Cecília Calani. A value-oriented and culturally informed approach to the design of interactive systems. International Journal of Human-Computer Studies, Volume 80, 2015, Pages 66-82, https://doi.org/10.1016/j.ijhcs.2015.04.001.
SALGADO, Luciana C. de C.; LEITÃO, Carla Faria; DE SOUZA, Clarisse Sieckenius. A Journey Through Cultures: Metaphors for Guiding the Design of Cross-Cultural Interactive Systems, Human–Computer Interaction Series, DOI 10.1007/978-1-4471-4114-3_1, Springer-Verlag London, 2013.
SÁNCHEZ, J. Alfredo. Calaveras 2007. Disponível em: http://www.jalfredosanchez.com/calaveras-2007/, acesso em: 12/02/2021.
SÁNCHEZ, J. Alfredo. Falsos Cognados. 2020. Disponível em: http://www.jalfredosanchez.com/falsos-cognados/, acesso em: 12/02/2021.
YEO, A. Cultural user interfaces: a silver lining in cultural diversity. ACM SIGCHI Bulletin, 28(3), 4-7, 1996.
YIZREEL, Gustavo. 3 canciones para conocer la comida mexicana. Aprendamos Español, 04/01/2016. Disponível em: t.ly/qg7G, acesso em: 12/02/2021.
Sobre os autores
Soraia Silva Prietch é doutora em Sistemas Digitais, professora da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), Mato Grosso, Brasil, e recentemente concluiu um estágio de Pós-doutorado na Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, México, com tema voltado para estudos com usuários no design de sistemas de processamento automático de língua de sinais. Realiza pesquisas na área de Interação Humano-Computador, Tecnologia Assistiva e Informática na Educação (Currículo Lattes). Atualmente, é presidente do Capítulo Brasileiro da ACM SIGCHI (BR-CHI), Research chair da Comunidade Latino-americana de IHC (LAICH) e Adjunct Co-Chair for Accessibility da ACM SIGCHI.
Alfredo Sánchez é pesquisador do Laboratório Nacional de Informática Avançada (LANIA), membro do Sistema Nacional de Pesquisadores do México e diretor cofundador do NEUX Lab, consultoria em experiência do usuário. Ele obteve mestrado e doutorado em ciência da computação pela Texas A&M University. Tem trabalhado nas áreas de tecnologias assistivas e novos paradigmas de interação. Na Universidad de las Américas Puebla, ele fundou e coordenou o Laboratório de Tecnologias Interativas e Cooperativas. Ele foi pesquisador visitante no Instituto de Cidades Inteligentes da Universidade de Xangai, na Universidade de Waikato (Nova Zelândia) e no Jardim Botânico do Missouri. Foi presidente da Sociedade Mexicana de Ciência da Computação, bem como co-fundador da Associação Mexicana de Interação Humano-Computador (IHC) e do Congresso Latino-Americano de IHC (CLIHC).