Game Talk #2: Stardew Valley, saúde mental e escapismo em jogos
Por: Ticianne Darin
Eu comecei a jogar Stardew Valley nessas últimas férias, de tanto ouvir falar sobre dar nome às galinhas. Não sabia explicar, mas a ideia de criar galinhas e morar numa fazenda na praia me parecia aleatoriamente satisfatória. Especialmente porque eu sentia que não estava conseguindo aproveitar de verdade, agora que eu podia afinal ter férias decentes, após dois anos cansativos e intensos de trabalho quase ininterrupto, porém necessário, na Universidade.
Ouvi críticas de quem dissesse: “Mas você vai gastar dinheiro comprando Chrono Trigger?” (noventistas entenderão). E eu não sabia explicar, nem defender o jogo. Só sabia que queria jogar e isso tinha a ver com as galinhas. Pela primeira vez, em muito tempo, não li sobre o jogo e todo seu conceito antes de começar a jogar – e acredite, isso muda tudo. Achei que, como qualquer “jogo de fazendinha”, eu ia enjoar relativamente rápido.
Mas, isso não aconteceu. O efeito foi o contrário. Comecei a fazer planos para minha personagem – Donna Sue – quando não estava jogando. Daí eu comecei a me perguntar o que tinha nesse jogo que tinha me causado tanto interesse? Concluí que não era esse jogo em específico. Era, de certa forma, o escapismo que ele me proporcionava. Aí fiquei reflexiva: o que isso queria dizer? Apesar de Stardew Valley oferecer uma experiência de jogo única, o que me atraiu de verdade foi poder mergulhar de verdade em uma realidade absolutamente diferente da minha. E é sobre isso que vamos conversar um pouco hoje: escapar da realidade com um jogo é bom ou ruim? Como, na prática, os jogos podem proporcionar isso?
Primeiro, conheça Stardew Valley
Stardew Valley é um jogo indie desenvolvido por apenas uma pessoa, Eric Barone, e lançado em 2016. É um RPG de vida rural de mundo aberto, em que você herdou o velho terreno agrícola de seu avô em Stardew Valley e quer começar uma nova vida, fugindo das pressões da vida na cidade – apelativo, não? Ele foi inspirado em jogos clássicos como Harvest Moon e tem como objetivo principal fazer o jogador se sentir como um fazendeiro virtual, administrando sua própria fazenda, plantando e colhendo culturas, criando animais e interagindo com personagens da cidade.
Até aí, nenhuma grande diferença de outros jogos, certo? Mas, o que mais me atrai em Stardew Valley, é a sua jogabilidade relaxante, que permite que o jogador faça tudo no seu próprio ritmo, sem que as coisas fiquem monótonas. Não há um objetivo principal a ser alcançado, você pode simplesmente jogar por horas a fio, construindo sua fazenda e explorando tudo o que a cidade tem a oferecer – e há muita coisa! Além disso, o jogo tem um sistema de relacionamento com personagens não jogáveis que é simplesmente fascinante. É possível conversar com os personagens, dar presentes, completar missões e até mesmo casar com um deles!
Outro aspecto que chama a atenção em Stardew Valley é a sua trilha sonora, que é simplesmente maravilhosa. Ela é composta pelo próprio Eric Barone e se encaixa perfeitamente no clima do jogo, criando uma atmosfera aconchegante e acolhedora.
Para quem gosta de jogos de simulação, Stardew Valley é definitivamente uma ótima opção. Mas não se engane, apesar de sua jogabilidade tranquila, o jogo também tem seus desafios. É preciso gerenciar bem o tempo e os recursos, além de enfrentar eventos aleatórios que podem colocar em risco a sua fazenda. Confesso que gerenciar o tempo me deu um pouco de gatilho com meu gerenciamento de tempo do mundo real, mas aceitei. Porém, apaguei no meio da cidade e das minas às 2h da manhã dezenas de vezes. Não recomendo.
Enfim, eu poderia falar muito mais sobre Stardew Valley, mas quero apenas destacar sua beleza, simplicidade e, ao mesmo tempo, complexidade. É um jogo que eu recomendo a todos os amantes de jogos de simulação e que com certeza vai proporcionar muitas horas de diversão.
Qual a relação entre jogos, escapismo e saúde mental?
Até certo ponto, o escapismo pode ser uma estratégia eficaz para lidar com o estresse e outras pressões da vida cotidiana. Isso mesmo! Embora muitas pessoas possam pensar que jogos digitais ou outras formas de entretenimento podem ser prejudiciais para a saúde mental, a ciência discute que não é necessariamente assim.
O escapismo geralmente tem uma conotação negativa na pesquisa de jogos, por exemplo, vício em jogos online, uso problemático e jogo excessivo. Mas, existe um lado do escapismo que também pode ser benéfico. Por exemplo, o desengajamento mental que um jogo proporciona, ajuda a pessoa a diminuir seus níveis de estresse após uma atividade estressante (por exemplo, o trabalho) e a melhorar seu humor (Kosa & Uysal, 2020). Isso é chamado de escapismo não-subversivo.
Escapismo não-subversivo ou não-prejudicial é escapismo, mas não com a intenção de o indivíduo conduzir qualquer atividade que seria vista como danosa. Já o escapismo subversivo ou escapismo prejudicial é quando um indivíduo está conduzindo uma forma de escapismo que é desfavorável a ele e tem um resultado afetivo negativo ou a fuga de problemas (Kosa & Uysal, 2020).
Estudos mostram evidências de que há uma forma de escapismo saudável em jogos quando as motivações de quem joga não são fugir do mundo real, mas sim:
- regulação emocional: quando a pessoa joga na tentativa de modificar a trajetória das emoções, de emoções negativas para positivas, ou de agitadas para calmas, por exemplo. Kosa & Uysal (2020) discutem como jogar dá aos indivíduos um benefício emocional não somente regulando as emoções negativas, mas também ampliando e realçando as emoções positivas;
- gerenciamento do humor: quando a pessoa joga para manter seu humor positivo ou tentar acabar com seus estados afetivos negativos. A gestão do humor é vista como uma das abordagens para estudar o escapismo positivo (Hagstrom & Kaldo, 2014). Estudos têm mostrado que à medida que a atuação do jogador aumenta no jogo, o humor de um indivíduo entediado ou estressado também melhora. Esse efeito também é capaz de reduzir a hostilidade e aumentar os efeitos positivos (Rieger et al, 2014);
- mecanismo de enfrentamento (coping): coping é a tentativa de minimizar problemas e estresse, que pode ocorrer por meio de diferentes estratégias (Lazarus & Folkman, 1984). Uma delas é o enfrentamento baseado na emoção, na qual os indivíduos regulam seus sentimentos sobre o problema, distraindo-se com atividades e relaxamento – neste caso, o jogo. Kosa e Uyusal (2020) sugerem que o jogo pode ser visto como uma estratégia de enfrentamento ao invés de um comportamento compulsivo. No entanto, eles implicam que o jogo excessivo implica em um problema à parte que está separado do conteúdo do jogo e da atividade;
- recuperação: quando a pessoa joga para tentar se recuperar da exaustão cognitiva e emocional. Ela se caracteriza pelo desapego psicológico, relaxamento, domínio e controle (Reinecke, 2009). A pessoa se concentra em recuperar as energias e nos efeitos a longo prazo.
Ou seja, o escapismo dos jogos pode ajudar as pessoas a lidar com o estresse e outras pressões da vida cotidiana, proporcionando uma forma de alívio temporário. Eles ainda sugerem que, quando usado de forma equilibrada e saudável, o escapismo dos jogos pode até mesmo promover sentimentos de relaxamento, felicidade e bem-estar – e por isso que me fez tão bem criar galinhas e vacas, alimentar Donna Sue de coisas achadas no chão (sou dessas) e aprender a pescar.
Mas, é tudo sobre equilíbrio!
Não ser capaz de lidar com as emoções e ter uma conduta geral baseada em escapismo pode causar estados afetivos negativos. Entretanto, há sim benefícios na regulação das emoções por meio de jogos, uma vez que eles podem ajudar a administrar o humor, e que o enfrentamento baseado nas emoções pode ajudar na busca temporária de alívio de estados afetivos.
Por exemplo, o estudo de Kirby et al. (2014) mostra que o número de horas que alguém gasta jogando MMO pode se correlacionar o bem-estar psicológico e o escapismo. Mas, o jogo começa a se tornar problemático quando a pessoa imerge nele de forma a causar um estado afetivo negativo, prejudicando sua própria vida – por exemplo, isolamento social, e ignorar necessidades básicas como comer e dormir apenas para ficar todo tempo possível jogando.
Em resumo, o escapismo pode ter conseqüências tanto negativas quanto positivas, dependendo de como ele ocorre e da motivação de quem joga. Conseqüentemente, é importante analisar se aquele jogo – e as suas motivações para jogá-lo – trazem um escapismo saudável ou um escapismo subversivo.
Como Stardew Valley proporciona um escapismo não prejudicial?
Tudo bem, já entendemos que os jogos digitais oferecem uma forma de escapismo muito eficaz, permitindo que as pessoas se desconectem do mundo real e se envolvam em um mundo virtual completamente diferente. Mas como exatamente os jogos digitais conseguem nos proporcionar esse escapismo? Bem, eles oferecem uma variedade de experiências que muitas vezes não são possíveis na vida real.
Se o escapismo vai ser prejudicial ou não depende, principalmente, de duas coisas: por quê o jogador está buscando a atividade de jogar (e os quatro pilares listados acima indicam uma motivação saudável) e quais as mecânicas apresentadas pelo jogo para engajar e divertir, sem induzir o jogador a um estado negativo ou vicioso.
Bem, vamos analisar um exemplo concreto de como o escapismo não-subversivo pode ser estimulado pelas mecânicas e narrativa de um jogo digital, sem induzir a estados negativos e vícios.
Em Stardew Valley, os jogadores assumem o papel de um personagem que herda uma fazenda de seu avô e deve cultivar a terra, criar animais, interagir com os habitantes locais e explorar uma variedade de ambientes. Não há pressões para que o jogador cumpra um certo objetivo de forma insistente, faça login todos os dias, compartilhe seu status, convide amigos do mundo real, compre itens que vão lhe dar vantagens extra, ou realize tarefas que, se não forem feitas agora, nunca mais poderão ser feitas. (Estratégias assim são chamadas de Dark Game Patterns e podem ser extremamente danosas para os jogadores – mas isso fica para outro post.)
Ao contrário, experiência de jogo é altamente personalizável, permitindo que os jogadores sejam criativos em suas escolhas e estratégias, ao mesmo tempo em que proporciona uma sensação de domínio e controle tanto em termos de gerenciamento da fazenda quanto na exploração do mundo do jogo. Stardew Valley é um jogo que ilustra bem como as mecânicas e a narrativa podem contribuir para a gratificação do jogador e, consequentemente, para o escapismo saudável. O jogo tem como objetivo principal gerenciar uma fazenda e interagir com a comunidade local, mas também oferece uma variedade de outras atividades, como pesca, mineração e exploração de cavernas. A possibilidade de escolher como gastar o tempo e os recursos dentro do jogo, bem como de decidir com quem interagir e como construir as relações sociais, oferece uma sensação de autonomia que pode ser recompensadora para o jogador.
A narrativa do jogo também contribui para a gratificação e o escapismo. A narrativa em si é imersiva e envolvente, permitindo que o jogador mergulhe em um mundo fictício onde ele é o protagonista. O enredo não é extremamente complexo, mas oferece uma história coerente que se desenrola gradualmente, à medida que o jogador avança no jogo. A interação com personagens não jogáveis (NPCs) permite que o jogador construa relações sociais e crie uma conexão emocional com o mundo do jogo, o que pode aumentar a sensação de envolvimento e imersão.
Além disso, Stardew Valley oferece uma variedade de atividades que podem ser relaxantes e prazerosas para o jogador, como pesca e coleta de recursos. A música do jogo também é uma parte importante da experiência, contribuindo para a sensação de imersão e bem-estar.
A jogabilidade é gratificante em diferentes níveis, oferecendo recompensas imediatas e a longo prazo para as ações do jogador. O cultivo bem-sucedido da terra, por exemplo, traz benefícios econômicos e melhora a saúde e a energia do personagem, enquanto a interação positiva com os habitantes locais pode levar a amizades, casamentos e outras formas de relacionamentos. Essas recompensas incentivam os jogadores a continuarem jogando e se envolvendo no mundo do jogo.
Então, vamos fugir dos problemas jogando?
Bem, eu não recomendo (e nem é esse o ponto desse artigo). Falamos que escapismo não é algo necessariamente negativo, pelo contrário, pode ser uma forma saudável de lidar com as pressões do dia a dia. No entanto, é importante usar essa estratégia com moderação e equilíbrio.
Os jogos digitais nos permitem ser quem quisermos ser e nos levar a lugares que nunca imaginamos. E isso é especialmente importante em tempos como os que estamos vivendo, onde muitas vezes nos sentimos sobrecarregados ou presos em nossas próprias vidas e rotinas. Além disso, os jogos digitais também podem ajudar a aliviar o estresse e a ansiedade, proporcionando uma distração saudável que ajuda a melhorar o humor (Granic et al. 2014).
Mas é claro que, como tudo na vida, é importante equilibrar o nosso investimento emocional e o tempo que passamos jogando com outras atividades. Jogar jogos digitais não deve ser uma forma de escapar da realidade, mas sim uma forma de complementá-la e enriquecê-la.
Em resumo, os jogos digitais oferecem uma forma muito eficaz de escapismo que pode ser benéfica para nossa saúde mental e emocional. E, se jogados com moderação, podem ser uma forma saudável e divertida de explorar novos mundos e desafiar nossas habilidades e limites.
Se você quiser experimentar essa sensação, a combinação das mecânicas e da narrativa de Stardew Valley pode ser altamente gratificante e oferecer um escapismo saudável para o jogador. A sensação de controle, autonomia e envolvimento emocional, bem como as atividades relaxantes e agradáveis, podem contribuir para uma experiência positiva e benéfica para a saúde mental, de quem busca jogar com a motivação certa. E, se você ainda não experimentou jogar Stardew Valley, eu recomendo que você pratique o escapismo “do bem” com esse jogo incrível.
Como citar este artigo:
Darin, T., 2023. Game Talk #2: Stardew Valley, saúde mental e escapismo em jogos SBC Horizontes. ISSN: 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2023/02/game-talk-2-stardew-valley-saude-mental-e-escapismo-em-jogos/
Sobre a autora:
Ticianne Darin é professora adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde ministra disciplinas e realiza pesquisas nas áreas de Interação Humano-Computador e Design e Jogos Digitais. Seus atuais interesses de pesquisa envolvem: experiência do usuário e do jogador, avaliação da qualidade de uso de sistemas interativos (por exemplo, usabilidade e acessibilidade) em diferentes domínios, design de interação e interação jogador-jogo, com foco em engajamento, motivação e bem-estar. Ticianne é idealizadora da Célula de Design e Multimídia, no curso de Sistemas e Mídias Digitais (UFC), que desenvolve pesquisas nessas áreas. Atualmente, é membro do Programa de Mestrado e Doutorado em Computação (MDCC-UFC) e pesquisadora do GREat (Grupo de Redes de Computadores, Engenharia de Software e Sistemas, onde desenvolve projetos de Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação (PD&I) em parcerias entre Indústria e Universidade.
Referências
Kosa, M., & Uysal, A. (2020). Four pillars of healthy escapism in games: Emotion regulation, mood management, coping, and recovery. Game user experience and player-centered design, 63-76.
Hagström, D., & Kaldo, V. (2014). Escapism among players of MMORPGs—conceptual clarification, its relation to mental health factors, and development of a new measure. Cyberpsychology, Behavior, and Social Networking, 17(1), 19-25.
Reinecke, L. (2009). Games and recovery: The use of video and computer games to recuperate from stress and strain. Journal of Media Psychology, 21(3), 126-142
Rieger, D., Wulf, T., Kneer, J., Frischlich, L., Bente, G. (2014). The winner takes it all: The Effect of in-game success and need satisfaction on mood repair and enjoyment. Computers in Human Behavior, 39, 281-286.
Gan, Y., & Hansen, A. (2022). An Analysis of The Impact of Escapism on Players.
Kirby, A., Jones, C., Copello, A. (2014). The impact of massively multiplayer online role-playing games (MMORPGs) on psychological well-being and the role of play motivations and problematic use. International journal of mental health and addiction, 12(1), 36-51.