O OUTRO LADO DO METAVERSO: desafios éticos da Realidade Estendida (XR) em contextos educacionais

O OUTRO LADO DO METAVERSO: desafios éticos da Realidade Estendida (XR) em contextos educacionais

Quando Mark Zuckerberg subiu ao palco do Meta Connect em 2021 para anunciar os ambiciosos planos da sua empresa no desenvolvimento do chamado “Metaverso”, grande parte da atenção do público se voltou para a promessa de avanços tecnológicos em ambientes imersivos baseados em Realidade Estendida (XR), um conjunto de tecnologias que inclui Realidade Virtual (RV), Realidade Aumentada (RA) e Realidade Mista (RM). 

Nesse contexto, torna-se essencial diferenciar dois conceitos que costumam ser tratados como sinônimos, mas que possuem escopos distintos. A XR refere-se ao conjunto de tecnologias que permite criar experiências imersivas, como RV, RA e RM. O Metaverso, por sua vez, é uma proposta mais ampla e ainda em construção. Ele propõe a criação de espaços digitais persistentes, compartilhados e interconectados, geralmente habitados por avatares e sustentados por estruturas de sociabilidade e economias virtuais. Embora possa se apoiar em XR como base tecnológica, o Metaverso não se limita a ela.

Essa visão ampliada foi justamente o foco da apresentação de Mark Zuckerberg no evento Meta Connect (Figura 1). Em meio a promessas futuristas e demonstrações técnicas, ele dedicou alguns minutos para destacar o papel estratégico da educação nesse novo cenário digital.

Figura 1 – Apresentação de Mark Zuckerberg no Meta Connect 2021

Figura 1 – Apresentação de Mark Zuckerberg no Meta Connect 2021
Fonte: Meta Connect (2021). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Uvufun6xer8. Acesso em: 19 abr. 2025.

Nos vídeos de demonstração, assistimos uma garota, acompanhada de uma mulher
com mais idade, aprendendo sobre o sistema solar, utilizando óculos de RA (Figura 2). Com
simples gestos manuais elas exploram a Via Láctea, acessando informações sobre os astros de
maneira interativa e envolvente. A cena ilustra o tipo de envolvimento sensorial que a XR
promete trazer à sala de aula, transformando o conteúdo em experiência. Em outra
demonstração, uma jovem utiliza um headset de RV para navegar em uma simulação
altamente detalhada da Roma antiga (Figura 3). Esse tipo de imersão pode despertar
curiosidade, promover a aprendizagem por descoberta e permitir o contato com contextos
históricos inacessíveis no ensino tradicional.

Figuras 2 e 3 – Educação no Metaverso

Fonte: Meta. Education in the Metaverse. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KLOcj5qvOio. Acesso em: 19 abr. 2025.

Embora a Meta tenha desempenhado um papel importante na popularização recente
do Metaverso, o uso de tecnologias imersivas na educação já era tema de pesquisa e
desenvolvimento muito antes do interesse comercial das grandes corporações. Há décadas,
educadores e cientistas da computação vêm explorando o potencial da XR para enriquecer
metodologias pedagógicas e transformar a experiência de aprendizagem. De acordo com uma
revisão de literatura conduzida por Guo et al. (2021), da Shanghai Maritime University, que
catalogou 4.729 artigos publicados entre 1991 e 2021, as pesquisas sobre XR na Educação
abrangem múltiplas formas de aplicação, incluindo diferentes estratégias de design de
ambientes de aprendizagem virtuais (Figura 4). Conforme destacado pelos autores, o uso de
XR no ensino tem o potencial de tornar o aprendizado mais envolvente e memorável,
facilitando a visualização de conceitos abstratos e promovendo a aprendizagem baseada em
experiências práticas e simulações.

Figuras 4 – Uso do HoloLens 2 em contexto educacional

Fonte: MICROSOFT (2019).

Segundo Logeswaran et al. (2021), a XR também permite que os usuários explorem conhecimentos e ambientes de formas que não seriam possíveis por métodos convencionais. Além disso, oferece ferramentas e mecanismos de feedback que tornam o processo de aprendizagem mais dinâmico e interativo.

Apesar de tantos benefícios, as tecnologias de XR não podem ser encaradas apenas como soluções mágicas para os desafios da educação contemporânea. Como qualquer recurso tecnológico, elas demandam uma análise crítica, com atenção especial às suas implicações éticas.

Desafios éticos no desenvolvimento e aplicação da XR

A virtualização da educação tem avançado de forma acelerada, impulsionada por experiências imersivas proporcionadas por dispositivos como Meta Quest, HoloLens, PICO e Vision Pro vêm sendo incorporadas por escolas, museus, indústrias e empresas de treinamento corporativo. No entanto, o fascínio gerado por essas tecnologias pode ofuscar questões éticas fundamentais, como privacidade, consentimento, representatividade e impactos psicológicos, fisiológicos e sociais sobre os usuários.

A mesma tecnologia que permite “visitar” a Roma Antiga ou manipular moléculas em 3D também é capaz de coletar dados sensíveis, como padrões de movimento, expressões faciais e até reações emocionais. Embora essas informações possam ser úteis para personalizar o ensino, também estão sujeitas a usos invasivos, especialmente quando monetizadas por grandes corporações. Esses dados têm alto valor comercial e analítico, mas nem sempre está claro para os usuários de que forma são coletadas, processadas ou monetizadas. À medida que os dispositivos se tornam mais sofisticados, também aumenta a capacidade de rastrear comportamentos com precisão, o que eleva significativamente o risco de vigilância invasiva.

Um exemplo claro dos riscos envolvidos é o escândalo da Cambridge Analytica, em 2018, quando dados de milhões de usuários do Facebook foram usados para fins políticos sem consentimento explícito. Embora o caso não esteja diretamente relacionado à XR, ele evidencia a fragilidade ética das plataformas digitais.

A reflexão ética sobre tecnologias imersivas não é recente. Sherman e Craig (2003) destacaram os impactos psicológicos e sociais da RV, argumentando que a imersão em ambientes virtuais pode moldar a percepção e o comportamento dos usuários. Boellstorff (2008) expandiu essa discussão ao abordar questões de identidade e privacidade em contextos digitais, ressaltando a complexidade das interações humanas nesses ambientes.

Entre os diversos desdobramentos éticos, a exclusão digital se destaca como um dos mais urgentes. Muitas aplicações em RV, como jogos, exigem equipamentos caros ou carecem de recursos de acessibilidade para pessoas com deficiências visuais, auditivas ou motoras. Ainda estamos longe de garantir o direito universal à participação em ambientes imersivos, como destacam Pimentel et al. (2021).

Além disso, a imersão intensa pode afetar a percepção de realidade dos jogadores. Estudos recentes discutem como a identificação com avatares pode influenciar decisões morais, induzir sentimentos de culpa ou até confundir as fronteiras entre o real e o virtual (Ahn & Noh, 2024). A capacidade de moldar comportamentos de forma sutil e invisível exige atenção redobrada de designers e educadores.

Por fim, é fundamental falar dos efeitos fisiológicos da RV. Fenômenos como o cybersickness — um tipo de enjoo causado por inconsistências entre os movimentos percebidos no ambiente virtual e os sentidos do corpo físico — têm sido cada vez mais relatados. Além disso, usuários podem enfrentar desorientação, fadiga ocular e até distúrbios do sono, aumento da irritabilidade e lesões físicas causadas por uso prolongado ou inadequado dos dispositivos. Ignorar esses efeitos compromete o bem-estar dos usuários e a qualidade da experiência educacional.

Diretrizes éticas

A boa notícia é que a literatura já oferece caminhos para tornar as experiências em XR mais éticas, inclusivas e seguras. Quatro grandes eixos se destacam: privacidade, acessibilidade, usabilidade e bem-estar.

  • Privacidade: a principal recomendação é evitar a coleta de dados desnecessários e garantir a anonimização das informações. Em contextos educacionais, isso se torna ainda mais essencial.
  • Acessibilidade: Tecnologias imersivas precisam ser desenhadas para todos. Isso inclui comandos por voz, leitores de tela, legendas, ajustes de contraste e interfaces adaptadas. O padrão não pode ser a exclusão.
  • Usabilidade: Design centrado no usuário implica clareza visual, personalização e ergonomia. Uma boa experiência de XR não deve causar sobrecarga sensorial ou frustração cognitiva.
  • Bem-estar: algumas medidas simples durante a aplicação fazem grande diferença: permitir pausas, ajustar ritmos e evitar estímulos agressivos são práticas simples, mas essenciais. Também é essencial considerar os efeitos emocionais dos conteúdos, além de sua estética ou interatividade.

Ética não é opcional

As tecnologias de XR representam uma fronteira promissora para a educação. Elas têm o potencial de expandir os limites da sala de aula, transformando conteúdos abstratos em experiências sensoriais capazes de engajar aprendizes e criar conexões com realidades antes inacessíveis. Mas inovação vem acompanhada de responsabilidade.

Não basta que experiências imersivas sejam tecnicamente sofisticadas — elas precisam ser eticamente sustentáveis. Ignorar aspectos como privacidade, acessibilidade e bem-estar é comprometer justamente aquilo que torna a XR promissora: sua capacidade de ampliar ou modificar a realidade.

É preciso ir além do deslumbramento tecnológico e adotar uma postura crítica, responsável e inclusiva desde o design até a implementação. Desenvolvedores, educadores, pesquisadores e tomadores de decisão têm um papel fundamental na construção de um futuro onde a ética não seja opcional — mas indispensável

Referências
Ahn, C; Noh, G. Eliciting guilt in virtual reality games: interplay of self-attribution,
presence, and morality. Front. Psychol. 15:1416258. doi: 10.3389/fpsyg.2024.1416258. 2024.
Boellstorff, T. Coming of Age in Second Life: An Anthropologist Explores the Virtually
Human. Princeton: Princeton University Press, 2008.
Guo, X.; Guo, Y.; Liu, Y. The Development of Extended Reality in Education: Inspiration
from the Research Literature. Sustainability, v. 13, n. 24, p. 13776, 2021. DOI:
https://doi.org/10.3390/su132413776. Disponível em: https://www.mdpi.com/2071-
1050/13/24/13776. Acesso em: 16 abr. 2023.
Logeswaran, A. et al. The role of extended reality technology in healthcare education:
Towards a learner-centred approach. Future Healthcare Journal, v. 8, n. 1, p. e79–84, 2021.
DOI: 10.7861/fhj.2020-0112. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33791482/.
Acesso em: 16 abr. 2023.
Pimentel D, Foxman M, Davis Dz And Markowitz Dm. Virtually Real, But Not Quite
There: Social and Economic Barriers to Meeting Virtual Reality’s True Potential for Mental
Health. Front. Virtual Real. 2:627059. doi: 10.3389/frvir.2021.627059. 2021.
Sherman, W. R.; Craig, A. B. Understanding Virtual Reality: Interface, Application, and
Design. San Francisco: Morgan Kaufmann, 2003.

Lucas Vale

LinkedIn / Currículo Lattes

Professor de História e Cultura Digital, doutorando em Inovação
em Tecnologias Educacionais (UFRN). Pesquisa Realidade
Estendida e jogos educacionais. Atua no ensino básico e articula
História Cultural, Antropologia Social e tecnologia.

 

Arlete Petry

LinkedIn / Currículo Lattes

Doutora pela PUC-SP, professora da UFRN e pesquisadora em jogos digitais, arte e educação. Autora de Jogo, Autoria e Conhecimento, atuou como visitante na USP e em Toronto, e participa de projetos financiados pelo CNPq.

 

Ezequiel Roberto Zorzal

LinkedIn / Currículo Lattes

Professor associado na UNIFESP, pós-doutor em Tecnologias Interativas pela ULisboa. Atua nas áreas de Realidade Estendida, Inteligência Artificial e Experiência do Usuário. Pesquisador no INESC-ID Lisboa, orienta em programas de pós-graduação e desenvolve soluções inovadoras para educação, saúde e ambientes corporativos.

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