Educar (em Computação) para a Guerra ou para a Paz?

Educar (em Computação) para a Guerra ou para a Paz?

Por: Renata Araujo e Mariano Pimentel (01/05/2020)
Imagem de abertura: Pintura do personagem Ishaan no filme Como Estrelas na Terra.

O quanto estamos formando nossos alunos para os desafios do futuro (que sequer sabemos quais serão)? Essa foi a pergunta que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou ao apresentar suas discussões sobre a educação até 2030 (OCDE, 200-?.). Esse futuro já chegou. Estamos, por exemplo, vivendo um desafio de proporções globais provocado por um dos elementos mais simples da natureza – um vírus. Que humanidade prepotente a nossa, que acredita ser capaz de dominar este mundo, principalmente com uso da tecnologia, mas é freada e abatida por um vírus insignificante! Esse momento nos lembra o clássico filme da década de 1950 – A guerra dos mundos (tantas vezes refilmado, baseados no romance homônimo de H. G. Wells, publicado em 1987) –, em que uma espécie alienígena dotada de alta tecnologia e decidida a dominar o planeta se coloca prestes a extinguir a raça humana (a despeito de toda a sua tecnologia também disponível) e é vencida por seres invisíveis a olho nu.

De quais competências precisamos para enfrentar novos desafios? Frequentemente, em nossos processos de aprendizagem, usamos palavras como “eficiência”, “eficácia”, “empregabilidade”, “competitividade”, “retorno de investimento”, “transformação”, “digitalização”, “clientes”, “emprego” e outras que as empresas estão querendo que você saiba. Mas somente estas palavras são as que nos interessam agora?

A Organização das Nações Unidas (ONU) traçou dezessete áreas como fundamentais para a sustentabilidade da vida humana e orientou nações a unirem esforços nesse sentido. A computação é chave para todas elas. Não por acaso, o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) se associou à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para criar o MOOC Tech for Good: The Role of ICT in Achieving the SDGs. Quantas vezes mencionamos conscientemente esses desafios em nossas aulas como alvos de propósito para nossos alunos?


Os 17 Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável até 2030
Fonte: Organização das Nações Unidas

Estamos vivenciando um momento de intensa mudança de modelos de viver e pensar (AHMAD, 2020). Vivenciamos não uma era de mudança, mas talvez uma mudança de era. Seria este um momento importante para revermos nossos modelos educacionais, mudanças estas já tão propagadas e discutidas por professores, educadores e pesquisadores?

Na década de 1980, o filme The Wall já nos havia chocado (e até hoje ainda nos choca) com cenas sobre violências simbólicas exercidas por meio de sarcasmo e bullying, culminando na violência física com palmatórias e palmadas, que já foram práticas do cotidiano escolar. No filme, a escola é representada por um espaço de formação de indivíduos sem rosto e emoções, moldados e triturados em um processo fabril, sob os olhares e falas ameaçadoras de um professor incapaz de compreender seus alunos como sujeitos singulares, obcecado pela ideia de reproduzir em cada um deles expectativas sociais impostas, por sua vez, a ele mesmo. A escola como um grande moedor de carne humana é a metáfora da música tema do filme.

Sistema educacional representado como moedor de carne utilizado pelo capitalismo
Fonte: filme The Wall (cena retirada da faixa Another Brick in The Wall, do grupo Pink Floyd)

Convenhamos, mesmo alguns jovens já se deixaram embalar por este som forte, crítico e envolvente: 

We don’t need no education
We don’t need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers, leave them kids alone
Hey! Teacher! Leave them kids alone!
All in all, it’s just another brick in the wall
All in all, you’re just another brick in the wall

https://www.youtube.com/watch?v=6vNEtPE7xWE

Apresentação ao vivo da banda Pink Floyd interpretando a música Another Brick in the Wall 
Fonte: Golden Oldies

O documentário A educação proibida (de Germán Doin, 2012) – assista, vai mudar sua forma de pensar a educação – apresenta questionamentos importantes sobre o quanto ainda é necessário provocar rupturas no modelo escolar atual para que possamos realmente educar e não “processar” indivíduos. Ainda vivemos um modelo de centralidade do professor, de desconhecimento ou mesmo desrespeito sobre as singularidades dos alunos, com conteúdos fragmentados, baseado em uma avaliação que classifica alunos em ganhadores e perdedores, gerando competição e frustração. 

Educação ProibidaA Educação Proibida (2012)
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=hr6Q5hQdqLo

As crianças são muito estimuladas a competir entre elas. Os melhores alunos recebem reconhecimentos, prêmios. Crianças que não vão bem nas provas… são chamadas à atenção. Em muitos casos nem sequer são levadas em conta. Todo mundo fala de paz, mas ninguém educa para a paz. As pessoas educam para a competição e a competição é o princípio de toda guerra.

(Pablo Lipnizky (Colegio Mundo Montessori, Colombia), do filme “A Educação Proibida”)

A propósito, se quiser se comover profundamente sobre isso, assista ao filme Como estrelas na Terra (Aamir Khan, 2007), disponível na Netflix, de onde tiramos a bela imagem de abertura desta matéria.

Ainda no documentário “A Educação Proibida”, é apontado que a estrutura educacional, como ainda temos hoje, tem suas inspirações na disciplinarização dos exércitos de Esparta e sua consolidação na Prússia, ao final do século XVIII, com uma visão voltada à formação de súditos dóceis, disciplinados e capazes de enfrentar guerras entre as nações, muito comum naquela época. Esse modelo se expandiu por várias nações em todo o mundo e foi sendo intencionalmente transformado com o seguir dos anos em formação de trabalhadores úteis ao sistema. E o que vemos hoje em nossas universidades como reflexo dessas ideias seculares? Autoritarismo, disciplina, a expectativa de alunos cordatos e uma divisão de castas baseada em mecanismos de avaliação classificatórios, visando à criação de um exército de soldados para o mercado.

Desde a educação básica, insistimos em perguntar para as crianças: o que você vai ser quando crescer? Desde a mais tenra idade, os sujeitos começam a construir um entendimento de que suas ações precisam corresponder a fatores externos de aceitação e credibilidade, fazendo com que seja estranho que alguém queira aprender por outro propósito, por exemplo, pelo prazer de conhecer, de se superar, de contribuir para o mundo em que vive.

A criança começa a entender que as ações do ser humano não começam tanto de uma forma interna, de uma conexão com a natureza, de uma percepção, de uma sensibilidade diante da vida, mas sim que são motivadas por alguma coisa exterior. Eu estudo para passar na prova, não leio para aprender… eu ajo porque se eu agir assim eu vou ganhar uma recompensa, vou comprar um carro, e por aí vai. E se isso significa que eu tenho que especular ou que eu tenho que passar por cima de quem quer que seja,  que eu tenho que mentir, que eu tenho que pisar em quem está do meu lado, aí dá no mesmo. E a que tipo de relação educacional isso leva? A um tipo de relação educacional que nos motiva ao resultado.

(Depoimento de Jordi Mateli [Xell Red de Educación Libre, Espanha] no documentário “A Educação Proibida”)

Perpetuamos essa dinâmica em nossas universidades, classificando sujeitos em suficientes e insuficientes de acordo com a sua capacidade de assimilar e reproduzir o que acreditamos ser importante para ele e, por diversas razões, deixando de olhar sua identidade, seus potenciais, seus desejos, seus sonhos. Classificamos rapidamente os alunos em bons e maus com base em escalas padronizadas que, em geral, atendam à nossa própria necessidade de controle e aceitação, todos nós manipulados por um medo sistêmico: o medo da pobreza, o medo da perda de poder e aceitação, o medo da mudança e progresso, o medo da morte, o medo de revelar a si próprio ao mundo.

Recompensas e castigos agem manipulando as necessidades básicas. Quando não recebemos amor ou proteção, fazemos de tudo para obtê-los gerando mecanismos de conduta e comportamentos que nos permitem sobreviver. Nos condicionamos. Essa criança não estuda para aprender, não trabalha por prazer nem para se realizar. Faz isso porque senão perde a segurança, o amor, sente que morre. Todas as suas ações passam a ser controladas pelo medo.

(Narrador do documentário “A Educação Proibida”)

Tenho um diploma de, tenho um título de, tenho… é o ter que nos separa de vez de nossa identidade. É o que nos leva de novo ao medo. Tenho que aparentar que eu sou.

(Depoimento de Helen Flix [terapeuta, Espanha] no documentário “A Educação Proibida”).

O medo e a guerra têm sido motores do desenvolvimento tecnológico. Muitos dos avanços da Computação, por exemplo, surgiram por necessidades de guerra: Turing decifra a Enigma durante a 2ª Guerra Mundial; a Engenharia de Software avança sob demanda da corrida espacial militar; e a Internet surge como solução para riscos de ataques bélicos. Ao longo dos anos, a Computação avança também movida pela guerra econômica e pelas disputas de competitividade entre empresas, cada vez mais acirradas em tempos de profusão de startups e de inovação aberta.

Estamos em 2020 e a pergunta que fazemos é o quanto conseguimos realmente nos distanciar dos cenários descritos acima em nossas universidades, sobretudo em nossos cursos na área de Computação.

A Computação é, atualmente, uma das áreas mais atraentes em termos de empregabilidade. A Associação Brasileira de Empresas de Tecnologia da Informação – Brasscom – estima que o mercado de TI no Brasil exigirá a formação de mais de 400 mil profissionais no setor até o ano de 2024 (logo ali, hein?) (BRASSCOM, 2019). Ter um emprego é uma das grandes ansiedades de nossos jovens e muitos se submetem ao ensino superior em uma universidade buscando essa conquista. As universidades, cientes dessa demanda e preocupadas em cumprir seu papel social de também formar para o mercado de trabalho, projetam seus cursos e estratégias curriculares voltados a formar seus alunos para se adequarem profissionalmente a um mundo empresarial que os aguarda com avidez.

A atual crise no sistema educacional, deflagrada pela pandemia, está nos dando oportunidades de repensar tudo. Diga-se de passagem, esses questionamentos têm estado em pauta há bastante tempo, mas agora ganharam proporções significativas, pois estamos todos obrigados a repensar nossas formas de ser e agir, incluindo nossas práticas pedagógicas. Seria o momento de mudarmos nossa forma de educar, frequentemente ainda baseada em ameaças e penalidades de reprovação e desemprego, para fomentarmos algo muito importante para qualquer ser humano que é atenção, escuta e amor? Seria o momento de desenvolvermos novas formas de facilitar aos alunos a possibilidade de descobrirem suas potencialidades e sua importância na sociedade em que vivem? Seria o momento de mudar os relacionamentos entre professores e alunos e dos alunos entre si? Seria o momento de revermos nossas estruturas de poder e construirmos espaços para que os alunos desenvolvam novos processos de descoberta de conhecimento? Seria o momento de aprimorarmos nossas relações? O que é a paz senão o aprimoramento das relações?

Não raro ouvimos relatos de professores que enfrentam cotidianamente a apatia, a falta de interesse (dos alunos e do próprio professor), o imediatismo dos alunos como obstáculos para repensarem suas formas de educar. Tendo, por tanto tempo, incentivado o individualismo, vemos hoje, com frustração, como é difícil para os estudantes (e os professores?) conviverem no coletivo, colaborarem, ser autores e se autorizarem. O coletivo é um ideal difícil de praticar. Precisamos recomeçar.


Referências:

A Educação Proibida. Documentário. 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OTerSwwxR9Y. Acesso em: 27/04/2020.

A Guerra dos Mundos. Filme. 2005. Disponível em: https://www.netflix.com/title/70021644. Acesso em: 27/04/2020.

AHMAD, A. S. 2020. Why You Should Ignore All That Coronavirus-Inspired Productivity Pressure. The Chronicle of Higher Education. Disponível em: https://www.chronicle.com/article/Why-You-Should-Ignore-All-That/248366?fbclid=IwAR0uiigq05kzYSBXBoCgZ-XwgF8SGn8u_HicnTqM9v8865N1vM2atcRHcak. Acesso em: 27/04/2020.

BRASSCOM. 2019. Relatório Formação Educacional e Empregabilidade em TIC. BRI2-2019-010. Disponível em: https://brasscom.org.br/wp-content/uploads/2019/09/BRI2-2019-010-P02-Forma%C3%A7%C3%A3o-Educacional-e-Empregabilidade-em-TIC-v80.pdf Acesso em: 27/04/2020.

Como Estrelas na Terra. Filme. 2007. Disponível em: https://www.netflix.com/title/70087087 Acesso em: 27/04/2020.

CETIC.BR. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. Disponível em: https://cetic.br/ Acesso em: 27/04/2020.

OECD. OECD Learning Compass 2030. Disponível em: http://www.oecd.org/education/2030-project/teaching-and-learning/learning/learning-compass-2030/ Acesso em: 27/04/2020.

Pink Floyd – The Wall. Filme. 1982. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pink_Floyd_%E2%80%93_The_Wall Acesso em: 27/04/2020.

UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/unesco/ Acesso em: 27/04/2020.


Como citar esse artigo:
 
Araujo, R.M e Pimentel, M. 2020. Educar (em Computação) para a Guerra ou para a Paz? SBC Horizontes. ISSN: 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/05/01/educar-em-computacao-para-a-guerra-ou-para-a-paz/(abrir em uma nova aba)
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