Instrução (re)programada, máquinas (digitais em rede) de ensinar e a pedagogia (ciber)tecnicista
Por: Mariano Pimentel; Felipe Carvalho (26/7/2021)
Revisão: Alvanisio Damasceno
Ilustração de abertura: Monica Lopes (do canal IlustrAqui)*
Nós, autores, voltamos a estudar; estamos fazendo uma segunda graduação, agora na modalidade a distância. Um dos autores, após pagar a matrícula e obter o acesso ao ambiente virtual de aprendizagem, entusiasmado e com o frisson do seu “primeiro dia de aula”, preparou um cafezinho para dar ânimo e coragem para o recomeço, acomodou-se no sofá e abriu o laptop. Optou por começar pela disciplina que mais lhe interessava entre as que lhe foram determinadas para o 1º período: Filosofia da Educação. Abriu a primeira webaula daquela disciplina e, para a sua surpresa, se deparou com isto:
Instrução programada operacionalizada no ambiente virtual de aprendizagem
Fonte: Conteúdo da disciplina Filosofia da Educação de um curso a distância
Isso tem um nome: instrução programada. O conteúdo é desenvolvido para a autoinstrução, sem um professor. Após a apresentação de uma parte do conteúdo, é realizada alguma atividade de (auto)avaliação para verificar se o estudante apre(e)ndeu-memorizou o que foi apresentado.
Mamífero é todo animal que mama quando é filhote. |
Instrução programada operacionalizada em um livro didático
Esse tipo de atividade de recuperação de informação do texto nos fez lembrar de nossos primeiros anos de alfabetização-letramento quando tínhamos de responder a perguntas de “interpretação”, feitas para o professor verificar se havíamos entendido o texto lido: Qual é o nome da mãe da Chapeuzinho Vermelho? O que a Chapeuzinho Vermelho levava na cesta para a vovó? Quem matou o Lobo Mau? Ficamos indignados por reencontrar esse tipo de atividade no ensino superior, e decidimos escrever sobre isso.
A instrução programada encontra-se reprogramada nas atuais plataformas digitais de aprendizagem. O processo de formação encontra-se reduzido a mera instrução de conteúdos simplificados: webaulas, videoaulas de 5 minutos e apostilas em PDF. O ensino objetiva preparar o estudante para passar em uma prova no final do período que visa a quantificar o que foi assimilado-memorizado em termos de conteúdos. Gamificaram o estudo com atividades-testes de (auto)avaliação por meio de questões de múltipla escolha, preenchimento de lacunas e variações. Implementaram agentes inteligentes para tirar dúvidas simples por meio de bate-papo (chatbot). Passaram a monitorar o comportamento do estudante pela análise de dados produzidos pelo uso/não uso das plataformas, visando a evitar a evasão (da mensalidade) do estudante. Essa instrução reprogramada na nova máquina (digital em rede) de ensinar está promovendo a pedagogia cibertecnicista por meio da plataformização-gamificação-algoritmização-dataficação-uberização da educação, entre outros termos correlatos (youtuberização etc.).
O sistema educacional está sendo reconfigurado para se tornar um negócio cada vez mais lucrativo, de acordo com a tendência neoliberal, neotecnicista digital (FREITAS, 2021). Para reduzir os custos do processo, retirou-se o professor e, em seu lugar, foi posto um profissional da educação que chamam de “tutor” para não reconhecê-lo como professor, porque também não irá realizar a mediação docente tradicional, mas sim supervisionará centenas de estudantes ao mesmo tempo, irá tirar as dúvidas que não puderem ser respondidas pelo chatbot, e corrigirá as poucas atividades avaliativas que ainda requerem alguma atuação humana (parece haver ainda algum receio ou desconfiança em realizar todas as avaliações de forma automatizada). Esses professores-tutores realizam uma mediação docente precária, resultado de um processo de precarização do trabalho docente que vem ocorrendo há anos, principalmente na modalidade a distância do ensino superior (LAPA; PRETTO, 2010).
Nessa reconfiguração do processo de ensino-aprendizagem, o estudo se tornou individualista, pois o estudante interage com conteúdos, raramente com um professor-tutor e com os colegas de turma (ou interage pontualmente). O estudante não se percebe sequer como parte de uma turma, exceto em algum encontro ocasional ou quando faz alguma prova presencial. Há pouca ou nenhuma situação de conversação e de autoria, não convive com a diversidade nem com o pensamento diverso. Essa crítica já era feita há mais de 50 anos!
[Críticas ao método de Instrução Programada] Problema do individualismo: O processo de socialização dos grupos, que tanto interessa ao professor na metodologia moderna, de fazer com que os educandos aprendam a viver e trabalhar juntos, em equipe, neste método não se verifica, pois os indivíduos aprendem sozinhos, consequentemente marginalizando-se do resto do grupo.” (BARBATO, 1968, p.33)
Os processos que estamos vivenciando nos diferentes cursos, nas diferentes instituições de ensino a distância, estão nos dando uma nova compreensão das potencialidades e também das precariedades, pois materializam a abordagem instrucionista-massiva que temos combatido (PIMENTEL; CARVALHO, 2020a), nos fazem entender que realmente estamos remando contra a maré, a tendência, um sistema que se agiganta velozmente a cada ano.
Não estamos aqui fazendo um ataque direcionado à modalidade a distância, até porque sabemos que nessa modalidade também é possível empregar outras abordagens didático-pedagógicas como a que temos praticado e teorizado (PIMENTEL, 2018; CARVALHO, 2015). Também não é um ataque às tecnologias digitais em rede, porque elas também potencializam práticas alternativas à abordagem instrucionista-massiva. Tampouco este texto é um ataque à Didática ou à Pedagogia. O que estamos aqui denunciando é a abordagem instrucionista-massiva. Essa denúncia não é nova, já foi feita por Paulo Freire há 50 anos e por tantos outros, estamos apenas a revisitando e atualizando.
Ilustração da educação bancária (por Merwin Pérez, 2012)
(Obs.: essa ilustração serviu de base para a concepção da ilustração da abertura do presente artigo, uma atualização da concepção bancária de educação efetivada pelas plataformas computacionais de educação)
Fonte: internet
Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. (…) Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. (FREIRE, 1970, p.33, grifo nosso)
A novidade é que a instrução programada se encontra revigorada, reprogramada, em pleno uso por alguns cursos a distância de nosso país. A pedagogia tecnicista não “está de volta” porque nunca foi embora; encontra-se agora atualizada, com novas técnicas e tecnologias, uma pedagogia cibertecnicista. Como chegamos a esse ponto?
Analisamos a situação aqui apresentada, que estamos vivenciando hoje em um curso a distância, partindo da perspectiva sociotécnica, compreendendo que as tecnologias estão atreladas às práticas educacionais de modo interdependente, apoiando-se mutuamente, se retroalimentando, uma impulsionando a outra. Optamos, contudo, começar este texto fazendo uma genealogia (FOUCAULT, 1979) dos desenvolvimentos tecnológicos que confluíram na instrução programada na plataforma computacional de educação, para depois, na parte 2 deste texto [ver artigo “Cibertecnicismo” (PIMENTEL; CARVALHO, 2022)], historicizarmos a cultura educacional que lhe deu suporte e foi impulsionada por esses desenvolvimentos tecnológicos.
Marcos técnico-tecnológicos (em escala logarítmica) da atual máquina de ensinar: instrucionista, massiva, algoritmizada, plataformizada, gamificada, dataficada, uberizada…
Fonte: dos autores
Instrução programada e as máquinas (mecânicas) de ensinar
Antes de pesquisarmos sobre os marcos históricos que queríamos trazer para refletir sobre as técnicas e tecnologias educacionais contemporâneas que estamos vivenciando em um curso a distância (situação disparadora do presente artigo), achávamos que a primeira “máquina de ensinar” havia sido desenvolvida por B. F. Skinner na década de 1950. Essa informação precisa ser corrigida na página em português da Wikipédia: as máquinas de ensinar NÃO são do Skinner. Certamente o Skinner contribuiu para teorizar o método educacional instrucionista e aperfeiçoar a máquina de ensinar, como documentado em seu livro Tecnologia do ensino (SKINNER, 1972) e também neste videodocumentário performando como garoto-propaganda dessa máquina. Naquela época, a instrução encontrava-se programada em máquinas mecânicas, movidas à manivela:
Aprendizagem programada e máquina de ensinar, por Skinner (~1960)
Fonte: YouTube
Esses jovens estão estudando de uma forma nova. Pode ser tanto aritmética, ou álgebra, ou gramática, ou, de fato, qualquer coisa envolvendo o uso de palavras ou símbolos. Eles estão usando a máquina de ensinar, um equipamento que cria condições rápidas e aperfeiçoadas para um estudo efetivo. […] Os estudantes veem um pouco de texto ou outro material impresso em uma janela; pode ser uma frase ou duas, ou uma equação aritmética. Alguma parte pequena está faltando e o estudante deve completá-la escrevendo a resposta em uma tira de papel. Pode ser a resposta para uma questão ou a solução de um problema, mas geralmente é apenas um símbolo ou uma palavra que completa o material que ele acabou de ler. Assim que o estudante tiver escrito sua resposta, ele opera a máquina e verifica imediatamente se estava certo ou errado. Essa é uma grande melhoria sobre o sistema em que um professor corrige no papel, em que o estudante precisa esperar talvez até o dia seguinte para aprender se o que havia escrito estava certo ou não. Esse conhecimento imediato tem dois principais efeitos. Leva mais rapidamente à formação do comportamento correto – o estudante aprende rapidamente a ser correto. Mas há também um efeito motivador: o estudante está livre da incerteza ou ansiedade sobre seu sucesso ou falha, seu trabalho é prazeroso, ele não tem que se forçar a estudar. As turmas em que as máquinas são usadas geralmente apresentam uma cena de concentração intensa. Uma função da máquina de ensinar, portanto, é dar ao estudante um relatório rápido da adequação de sua resposta. Isso é importante não apenas para a aprendizagem eficiente, mas gera um alto nível de interesse e entusiasmo.
Máquina de ensinar de Skinner e suas patentes registradas em 1955 e 1957
Fonte: (Wikipedia; WATTERS, 2015)
Diferente do que imaginávamos, são reconhecidas como sendo as primeiras máquinas de ensinar as máquinas de (auto)teste desenvolvidas na década de 1920 pelo psicólogo Sidney Pressey. Essas máquinas foram desenvolvidas para possibilitar uma autoavaliação com base em questões de múltipla escolha e foram utilizadas como base para o desenvolvimento da máquina de ensinar de Skinner (1972).
Fonte: (BENJAMIN, 1988, p.707) | Fonte: (WATTERS, 2015) |
Fonte: (SKINNER, 1958, p.970) | Fonte: (WATTERS, 2015) |
As máquinas de ensinar/testar de Sidney Pressey, exibidas na reunião da Associação Americana de Psicologia em 1924, e as patentes registradas em 1926 e 1928.
Contudo, muito antes de Pressey, o desejo de criar uma máquina de ensinar que substituísse o trabalho do professor, automatizando o processo de instrução, se materializou em diversas patentes: “máquina de ensinar”, “máquina de testar”, “dispositivo educacional”, “aparelho de ensino” e variações:
A primeira patente conhecida, concedida pelo Escritório de Patentes dos EUA, foi para H. Chard em 1809 para um “Modo de Ensino para Ler”. No ano seguinte, S. Randall registrou uma patente intitulada “Modo de Ensino para Escrever”. Halcyon Skinner recebeu uma patente em 1866 para o aparelho “Ensinando Ortografia” (WATTERS, 2015, n.p., tradução nossa).
Máquina para ensinar ortografia
Fonte: WATTERS, 2015 e WATTERS, 2014
Apesar do mesmo sobrenome, não são a mesma pessoa; a máquina de ensinar ortografia de Halcyon Skinner foi criada quase um século antes da máquina de ensinar de Burrhus Frederic Skinner. “Entre a máquina de ensinar de Halcyon Skinner em 1866 e a década de 1930 havia cerca de 600 a 700 patentes depositadas sobre o assunto de ensino e escolaridade.” (WATTERS, 2014, n.p.). Diversos esforços estavam em curso para desenvolver uma máquina que possibilitasse a automação do ensino de instruções: que apresentasse o conteúdo em pequenas unidades testáveis, que desse feedback imediato ao estudante a partir da realização de um teste sobre o que havia apre(e)ndido e que possibilitasse ao estudante estudar no seu próprio ritmo. No início do século XX, Thorndike, psicólogo precursor da teoria comportamentalista que influenciou B. F. Skinner, já vislumbrava a possibilidade de a instrução ser dada por um livro-texto impresso manipulado por máquinas:
“Se, por um milagre da engenhosidade mecânica, um livro pudesse ser estruturado de forma que, apenas para aquele que fez o que foi ordenado na página um, pudesse tornar a página dois visível, e assim por diante, muito do que agora requer instrução pessoal poderia ser conduzido pelo [livro] impresso.” (THORNDIKE, 1912, p.165 apud McNEIL, 2007, n.p., tradução nossa)
O tal “milagre da engenhosidade mecânica” resultou na máquina de ensinar (PROGRAMMED LEARNING, 2021). Essa engenhosidade foi impulsionada pelo desejo de automação generalizada que caracterizou a Revolução Industrial, em que os métodos de produção artesanal estavam sendo transformados pela produção por máquinas mecânicas, inicialmente movidas pela energia a vapor e depois pela energia elétrica. Eram “máquinas musculares”, como explica Santaella em sua história sobre “O homem e as máquinas” (SANTAELLA, 1997).
Deve haver uma “revolução industrial” na educação, na qual a ciência educacional e a engenhosidade da tecnologia educacional se combinem para modernizar os procedimentos grosseiramente ineficientes e desajeitados da educação convencional. Trabalhar nas escolas do futuro será maravilhoso, um trabalho organizado com simplicidade de modo a se ajustar quase automaticamente às diferenças individuais e às características do processo de aprendizagem. Haverá muitos esquemas de trabalho e dispositivos, e até mesmo máquinas – de forma alguma para a mecanização da educação, mas para libertar professor e aluno do trabalho enfadonho e da incompetência educacional (Sidney Pressey apud WATTERS, 2014, n.p., tradução nossa).
É claro que a origem da história das máquinas é bem anterior à Revolução Industrial, sendo a invenção da máquina geralmente atribuída ao grego Arquimedes que estudou, no século III a.C., as máquinas “arquimedianas”: alavanca, polia e parafuso. Se considerarmos a máquina como sendo um artefato, uma ferramenta feita pelo homem, então essa história encontra suas raízes no surgimento do “humano habilidoso”, quando os humanos começaram a produzir artefatos em pedra lascada, ferramenta-máquina extensora de nossos braços-músculos-dentes.
“Os robôs irão ensinar seus filhos?
Os próprios educadores estão dando uma boa segunda olhada na ‘aprendizagem programada’. Surpreendentemente, eles preveem uma revolução na educação de massa.”
Fonte: (WATTERS, 2014, n.p., tradução nossa)
A automação da instrução, o ensino sem professores, encontrou outro tipo de máquina aliada, as “máquinas sensórias” (SANTAELLA, 1997) – fotografia, rádio, cinema, telefone e televisão –, que possibilitaram a reprodução de signos diversos para além do alfabeto, tornaram possível reproduzir a imagem estática e em movimento, como também a voz e o som. As possibilidades de uma educação massiva foram ampliadas muito além do que já era possível com o livro impresso, ou mesmo antes deles com os textos didáticos que haviam sido desenvolvidos na Idade Média (LIVRO, s.d.). Filmes educativos se popularizaram poucos anos depois do desenvolvimento do cinema. Não demorou muito para o rádio e a televisão também se tornarem meios de tele-educação. Os meios de comunicação de massa mostraram-se potentes tecnologias para efetivar uma educação de massa, em larga escala, sonhada desde o início da Idade Moderna.
A educação audiovisual foi um conceito introduzido na década de 1930. O movimento começou com o surgimento de informações de que o aprendizado é mais eficaz quando apresentado de maneiras mais concretas. Durante esse tempo, a mídia incluía fotos, filmes e apresentações de slides. A comunicação audiovisual, “o ramo da teoria e prática educacional que se preocupa principalmente com o projeto e o uso de mensagens que controlam o processo de aprendizagem”, nasceu desse movimento. A mídia apela aos sentidos da audição e da visão. Isso ajuda a tornar as aulas mais interessantes, além de permitir que os alunos se lembrem das informações por mais tempo. A mídia continua a dominar a entrega de material educacional (MADDOX, s.d., n.p., tradução nossa).
O desenvolvimento dos meios de comunicação é outra história longa, que passa pelo desenvolvimento tecnológico da escrita que marca o início da nossa História, podendo ser estendida até a arte rupestre de nossa pré-História, chegando à origem da linguagem em nossos ancestrais pré-humanos. Não nos cabe (re)contar todas essas histórias, mas trazemos esses marcos para afirmar que os desejos de massificação da educação (educação para todos, e com todos sabendo a mesma coisa) e de automação da instrução (por meio de máquinas, sem a mediação de professores humanos) são bem anteriores ao nosso tempo, foram alimentados pelos desenvolvimentos tecnológicos de automação durante a Revolução Industrial em confluência com os desenvolvimentos da telecomunicação audiovisual. Precisamos considerar essas duas histórias interseccionadas, a do desenvolvimento das máquinas e a dos meios de comunicação de massa, para darmos sentido à atual situação com que nos deparamos em um curso a distância. Não podemos culpar simploriamente as atuais tecnologias digitais em rede, nem a educação a distância, nem uma tecnologia educacional específica, nem uma técnica específica de ensino. Precisamos reconhecer a rede de desejos e de desenvolvimentos técnico-tecnológicos que nossa sociedade vem perseguindo há muito tempo, empreendendo esforços para operacionalizar a automatização da instrução e a massificação da educação há décadas, há mais de um século.
Uma visão no século XIX sobre a escola do ano 2000
Fonte: https://publicdomainreview.org/collection/a-19th-century-vision-of-the-year-2000
Como será a vida daqui a cem anos? Esse foi o tema de uma série de ilustrações realizadas em torno do ano de 1900 por artistas franceses que retrataram as práticas de cultura sonhadas para o ano 2000: as profissões, o lazer, o urbanismo, o transporte, o vestuário e outros aspectos da vida em sociedade. A ilustração acima retrata a educação-escola sonhada para o nosso século. Desejava-se uma máquina de ensinar, dinamizada por um aluno-tutor, alimentada por um professor-curador de conteúdos, uma máquina que efetivasse a transmissão de conteúdos dos livros para os cérebros humanos. Respeitando as tecnologias que eram imagináveis à época, considerando-as como metáforas do que se desejava em termos de educação, será que podemos dizer que esse desejo-objetivo se tornou uma realidade cem anos depois?
Instrução Assistida por Computador (CAI)
A instrução programada encontrada na situação aqui analisada está no formato de webaula na plataforma computacional utilizada pelo curso a distância, o que nos possibilita afirmar que a instrução programada não ficou no passado, nas máquinas mecânicas de ensinar.
Com o desenvolvimento dos computadores – as “máquinas cerebrais” (SATAELLA, 1997) ou “tecnologias da inteligência” (LÉVY, 1993) –, rapidamente as máquinas de ensinar deixaram de ser mecânicas e se tornaram digitais. Poucos anos depois do desenvolvimento dos computadores, a instrução programada já foi reprogramada e passou a ser chamada de instrução assistida por computador (CAI), uma técnica interativa de instrução.
Estação de inquérito da IBM
Fonte: IT History Society
Os primeiros usuários da CAI foram membros da indústria de computadores que, no final da década de 1950, usaram os programas CAI para treinar seu próprio pessoal. Máquinas de escrever elétricas e teletipos foram ligados a computadores, e módulos instrucionais foram apresentados aos alunos que responderam com respostas monossilábicas (SUPPES; MACKEN, 1978, p.9, tradução nossa).
A estação de inquérito da IBM é uma máquina de escrever e um console capazes de transmitir informações digitadas para o computador e receber informações do computador. O aluno senta-se à estação de inquérito. O programa de instruções no computador apresenta o problema ao aluno por meio da máquina de escrever. O aluno, por sua vez, digita suas respostas, que são transmitidas ao computador para verificação. A IBM também desenvolveu um programa chamado COURSEWRITER, a primeira linguagem de computador dedicada à programação CAI (MCNEIL, 2007, n.p., tradução nossa).
O desenvolvimento da CAI foi impulsionado pela parceria entre universidades e empresas de computador. Em 1963, na Universidade de Stanford, foi elaborado o primeiro currículo de ensino fundamental com base na instrução programada em computadores da IBM, implementado em escolas na Califórnia e no Mississippi:
O primeiro programa de instrução que era operacional e disponível de alguma forma era um programa em lógica matemática elementar. Esse programa foi demonstrado pela primeira vez em 12 de dezembro de 1963, e duas aulas consistindo de 23 problemas foram realizadas com quatro alunos da sexta série em 20 de dezembro de 1963. […] Ao longo do ano de 1964, os membros da equipe trabalharam para escrever e codificar os programas CAI de computador para matemática de primeira e quarta séries e para lógica matemática. Durante o ano escolar de 1964-65, dois grupos de seis crianças da primeira série receberam uma versão preliminar do programa de aritmética da primeira série durante o ano escolar regular (14 de setembro de 1964 a 11 de junho de 1965). Duas crianças do jardim de infância receberam uma revisão do programa da primeira série na primavera (15 de março a 25 de junho de 1965). Controladas remotamente, 41 crianças da quarta série recebiam aulas diárias de exercício-e-prática de aritmética em uma máquina de teletipo em sua sala de aula na Escola Grant no distrito escolar de Cupertino Union [Califórnia-EUA] (19 de abril a 4 de junho de 1965). Essa instalação constituiu um primeiro passo importante na mudança de terminais do campus de Stanford para escolas básicas, com conexão direta do computador aos terminais por linhas telefônicas (SUPPES, 1971, p.2, tradução nossa).
Outro famoso projeto foi o sistema computacional Plato (Lógica Programada para Operações Automáticas de Ensino), lançado em 1960, rodando num computador da Universidade de Illinois-EUA, considerado o primeiro sistema computacional genérico de instrução assistida por computador. Incluía uma série de recursos, como feedback para respostas a questões de múltipla escolha, avaliação de respostas em texto-livre (dependendo da inclusão de palavras-chave), entre muitos outros. “Se a automação computadorizada aumentou a produção nas fábricas, então o mesmo poderia ocorrer no ensino superior.” (PLATO, s.d., n.p., tradução nossa)
Simulação de destilação fracionada no sistema Plato
Fonte: Wikipedia
O sistema Plato foi revolucionário para a sua época, tanto em termos de hardware quanto de software. Utilizava um aparelho de televisão como tela e um teclado especial para navegar nos menus de funções do sistema. Na versão Plato III, lançada ainda na década de 1960, tinha uma linguagem de programação chamada “Tutor”, destinada a possibilitar que qualquer professor (ou qualquer pessoa não técnica de computador) projetasse novos módulos de aula dentro do sistema. Já na década de 1970, o Plato IV tinha monitor de plasma, painel de toque (touchscreen), sintetizador de voz e de música, entre outros recursos que possibilitaram o desenvolvimento de conteúdos didáticos em multimídia (PLATO, s.d.).
A instrução programada, assim como sua (re)programação nos computadores, foi criticada por diversos estudiosos da educação, sendo frequentemente considerada “entediante e antissocial, […] uma forma mecânica e desumana de treinamento” (STAHL; KOSCHMANN; SUTHERS, 2006, p.2).
Programas educacionais distribuídos pelos computadores, seguindo o modelo de instrução programada, CAI (Computer Aided Instruction, instrução assistida por computadores), teve grande desenvolvimento a partir dos anos 60, e exemplificam a abordagem educacional tecnicista, privilegiando a transmissão da informação pela máquina, que, por meio desses CAI, poderia substituir o papel do professor, uma vez que objetivavam a conversão dos conteúdos das aulas em programas de aprendizagem por meio de computadores. Ensaiou-se nesta época a produção de livros didáticos projetados nos princípios da Instrução Programada. Sem êxito de escala nem de eficácia comprovada. (ALMEIDA; SILVA, 2018, p.126)
Nas atividades econômicas é evidente que as tecnologias de informação têm levado a melhoras significativas na produtividade, automatizando atividades rotineiras. Similarmente pode parecer que, se colocarmos as habilidades cognitivas básicas dos professores nos computadores, poderemos delegar alguma parte do ensino às máquinas e dessa forma, melhorar os resultados da educação. Mas sem dúvida alguma, essa analogia em muito simplifica a realidade. (BRANAUSKAS et al., 1999, p.66)
O desejo de automação da instrução não arrefeceu. As máquinas de ensinar não pararam na década de 1950, continuaram a ser desenvolvidas desenfreadamente, constantemente atualizadas com as novidades técnicas e tecnológicas, passando por sucessivos “ajustes” em busca contínua de aprimoramentos na arte de ensinar sem mediação de professores. Os primeiros usos dos computadores como máquinas de ensinar ainda carregavam explicitamente em seus nomes o termo “instrução”, que agora não está mais programada na máquina mecânica, mas (re)programada no computador, algoritmizada, e passará por sucessivas atualizações e se reapresentará com diferentes nomes.
Software educacional (ou courseware)
A informática chega à educação brasileira com a popularização dos microcomputadores e via políticas públicas na década de 1980. “A Informática na Educação, no Brasil, nasceu a partir do interesse de educadores de algumas universidades brasileiras motivados pelo que já vinha acontecendo em outros países como Estados Unidos da América e França” (VALENTE, 1999, p.3). Quando o governo brasileiro começou a buscar alternativas para viabilizar uma proposta nacional de uso de computadores na educação, já haviam sido criados grupos de pesquisa em universidades brasileiras, ocorrido intercâmbio internacional de pesquisadores, estudos e eventos científicos sobre o uso de computadores na educação, haviam sido elaborados documentos sobre a aplicabilidade da informática na educação, entre outras ações (MORAES, 1997; VALENTE, 1999). Com a finalidade de produzir recomendações para as políticas públicas, o governo realizou o 1º Seminário Nacional de Informática na Educação em 1981 na Universidade de Brasília. Entre as recomendações, “o computador foi reconhecido como um meio de ampliação das funções do professor e jamais como forma de substituí-lo” (MORAES, 1997, p. 5). Se foi preciso recomendar que o computador não fosse utilizado para substituir o professor, é porque já havia discurso-desejo-objetivo-desenvolvimentos, e havia bastante tempo.
O processo de informatização do ensino se consolidou como um projeto de Estado com a elaboração do projeto Educom em 1983. O objetivo era “a ampliação e acumulação de conhecimento na área mediante a realização de pesquisas para a capacitação nacional, o desenvolvimento de softwares educativos balizados por valores culturais, sociopolíticos e pedagógicos da realidade brasileira, e a formação de recursos humanos de alto nível” (MORAES, 1997, p.9). Entre outras ações, esse projeto promoveu o Concurso Nacional de Software Educativo. Algumas das universidades brasileiras integrantes do projeto Educom se dedicaram ao desenvolvimento de “courseware”, um nome alternativo para software educativo:
Courseware. “Courseware” é um termo que combina as palavras “curso” e “software”. Foi originalmente usado para descrever material educacional adicional destinado a ser kit para professores ou instrutores, ou como tutorial para alunos, geralmente empacotado para uso em um computador. O significado e o uso do termo se expandiram e ele pode se referir a todo um curso e a qualquer material adicional usado em uma aula online ou “formatado por computador”. Muitas empresas estão usando o termo para descrever todo o “pacote” que consiste em uma “aula” ou “curso” agrupando várias lições, testes e outros materiais necessários. O próprio courseware pode estar em diferentes formatos: alguns estão disponíveis apenas online, como páginas da web, enquanto outros podem ser baixados como arquivos PDF ou outros tipos de documento. Muitas formas de tecnologia educacional podem ser referidas pelo termo “courseware”. A maior parte das empresas educacionais líderes de mercado aplica ou inclui courseware em seus pacotes de treinamento (EDUCATIONAL_SOFTWARE, s.d., n.p., tradução nossa).
Naquele período ocorria uma “avalanche de software educacional” (VALENTE, 1999, p.9). Courseware ou software educativo, semelhante ao que já havia sido desenvolvido via Plato, do nosso ponto de vista representa uma atualização da instrução programada, a sua reprogramação em um novo formato com a utilização de novas técnicas e tecnologias. Era uma nova tentativa para verificar se agora o professor poderia ser bem substituído. Portanto, entendemos que o uso do computador como uma máquina de ensinar não se restringe à instrução assistida por computador (CAI), mas se refere a qualquer situação-sistema em que o computador seja utilizado para ensinar informações ao usuário, não importando se as informações são apresentadas de forma estática ou interativa, não importando a linguagem empregada (texto, imagem, infográfico, animação, vídeo, história em quadrinhos etc.), não importando se estruturado de modo linear-sequencial ou hipertextual, geralmente combinando a exposição de conteúdos com atividades para a avaliação do apre(e)ndido e com ações para redirecionar o processo de estudo. Nesse sentido, a máquina de ensinar vem sendo efetivada, ao longo destes anos, sob diferentes denominações e seguirá sendo desenvolvida e apresentada com nomes diversos. Não podemos nos deixar enganar pelas nomenclaturas.
O aparecimento dos microcomputadores, principalmente o Apple, no início dos anos 80 permitiu uma grande disseminação dos microcomputadores nas escolas. Essa conquista incentivou uma enorme produção e diversificação de CAIs, como tutoriais, programas de demonstração, exercício-e-prática, avaliação do aprendizado, jogos educacionais e simulação. (VALENTE; ALMEIDA, 1997, p.4)
A chamada “instrução programada” foi a base para os primeiros sistemas e representava uma automatização do processo de ensino/aprendizado condizente com as possibilidades tecnológicas vigentes. Essa classe de sistemas continuou a evoluir, até os dias de hoje, incorporando avanços tecnológicos, principalmente na área de Inteligência Artificial (IA), que possibilitaram uma sofisticação grande nos sistemas computacionais derivados, atualmente chamados Tutores Inteligentes (TI). Dos primeiros sistemas, entendidos como máquinas de ensinar, os atuais “imitam” a ação de um tutor, gerando problemas de acordo com o nível entendido pelo estudante em particular, comparando as respostas dos estudantes com as de especialistas no domínio, diagnosticando fraquezas, associando explicações específicas para certos tipos de erros, decidindo quando e como intervir. Essa classe de sistemas será tratada na seção “Ensino Assistido por Computador” (BARANAUSKAS, 1999, p.49).
Em todos esses tipos de sistemas baseados no paradigma instrucionista, há um conteúdo a ser apreendido, entendido como uma mensagem fechada a ser memorizada/compreendida pelo estudante, usado como referência para corrigir as respostas dadas pelo usuário e assim dar feedback-reforço positivo ou negativo, e (re)direcionar o processo de estudo, sem negociação-controle do estudante, sem espaço para o pensamento crítico-criativo, sem promover o aprender a ser e a conviver.
“O ensino tradicional e a informatização desse ensino são baseados na transmissão de informação. Neste caso, o professor, como também o computador, é o dono do conhecimento e assume que o aprendiz é um vaso vazio a ser preenchido. O resultado desta abordagem educacional é um aprendiz passivo, sem capacidade crítica e com uma visão do mundo de acordo com o que foi transmitido.” (VALENTE, 1999, p.98).
Assistir ao curto documentário a seguir sobre o Projeto Educom, de apenas 6 minutos, gravado em 1988, nos possibilita constatar que os discursos e os usos do computador como uma máquina de ensinar já estavam presentes desde esse primeiríssimo projeto que daria subsídios a uma Política Nacional de Informatização da Educação, “cujos fatos que o circunstanciaram se confundem com a formação histórica da Informática na Educação desenvolvida no Brasil, considerando que em torno dele gravitaram os fatos mais importantes. […] Compreendemos sua importância para a criação de uma cultura nacional, possibilitando a liderança do processo de informatização da educação brasileira” (MORAES, 1997, p.33).
Documentário “Projeto Educom”, NUTES-UFRJ, 1988 [6:20s]
Fonte: (ELIA, 2021)
Uma das finalidades do EDUCOM/UFRJ é implantar e acompanhar um experimento piloto utilizando os recursos da informática em uma escola pública do 2º grau da rede estadual do município do Rio de Janeiro. (Apresentadora do documentário)
As áreas escolhidas para a elaboração de coursewares foram a Química, a Física, a Biologia e a Matemática. Essas áreas foram escolhidas em função, basicamente, de três fatores. Primeiro fator é que são áreas em que os alunos apresentam muitas dificuldades de aprendizagem, são áreas que tradicionalmente os alunos se reprovam. O segundo fator é que são áreas eminentemente visuais, que se prestavam ao uso do computador com as facilidades que nós dispúnhamos: a cor, o movimento, a imagem com movimento [pena que o documentário está em tons de cinza]. E o outro fator é que nós pretendíamos desenvolver uma metodologia de simulação e jogos educativos, e essas áreas se prestavam enormemente ao uso dessa metodologia. (Profa. Nilma Santos Fontanive – NUTES/UFRJ)
Física:
(Não faltaram esforços para mostrar que a terra é redonda, um “pálido ponto azul”!)
Você verificou que as coisas parecem diferentes de acordo com a distância. Que tal começarmos nossa viagem? Vamos até o espaçoporto? Para chegar lá, aperte uma tecla.
Lá está a nave. Viajaremos juntos. Vamos entrar?
Nossa! Como estamos distantes da praia. Já saímos da Terra e não vemos mais o litoral do Rio de Janeiro, mas podemos perceber um pedaço da América do Sul.
Note como a Terra e a Lua começam a se parecer com os grãozinhos de areia.
Como estamos longe! A Terra agora parece um ponto no espaço. As estrelas, por estarem muito longe, parecem bem menores do que os planetas.
Vamos adiante, aperte uma tecla.
Biologia:
(Uma jornada do sanduíche pelo corpo humano, da entrada pela boca até a saída pelo…)
DIGESTÃO
Imagine que você comeu um sanduíche (pão, carne e queijo). Vamos descobrir o que aconteceu com ele ao longo de seu aparelho digestivo.
[Glândulas salivares, Esôfago, Estômago, Fígado, Vesícula biliar, Pâncreas, Intestino delgado, Intestino grosso, Apêndice, Ânus]
Observe a saliva em contato com o bolo alimentar
[Molécula de Proteína, Molécula de Amido, Gota de gordura (lipídeo)]
O bolo alimentar se compõe de moléculas de proteína, amido e lipídeos.
Obs: 1 molécula de amido = 10 moléculas de maltose (2 unid.).
Matemática:
(Ensinando a dar um golpe de Estado com o conhecimento da matemática – uma lenda sobre a invenção do xadrez)
PROGRESSÕES GEOMÉTRICAS
Por ter salvo a vida da princesa, um sábio pediu ao rei a seguinte recompensa:
(a recompensa pedida foi 1 grão de arroz na primeira casa do tabuleiro de xadrez, dois grãos na segunda casa, quatro grãos na casa seguinte, e dobrando progressivamente a quantidade a cada nova casa).
Você sabe quantas casas tem um tabuleiro de xadrez? (sim/não)
O tabuleiro de xadrez tem 64 casas.
Veja a quantidade de arroz que o sábio ganhou.
[O total de arroz é um número tão grande que precisaria existir arrozais que cobrissem duas vezes a superfície da Terra, incluindo os oceanos. O que será que o imperador fez ao descobrir que havia sido enganado?]
Química:
(Nem tudo que reluz é ouro; mas às vezes é! O experimento de Rutherford)
EXPERIÊNCIA DE RUTHERFORD (1911)
eletrosfera (-)
núcleo (+)
Folha de ouro
Animação núcleo-elétron
[Sobre] as equipes que trabalham com a elaboração de coursewares… A metodologia que nós desenvolvemos para a elaboração de coursewares se apresenta da seguinte maneira. Nós temos um professor principal, da UFRJ, responsável pela adequação do conteúdo, pelo aspecto científico dos coursewares – eles são dos institutos básicos de Física, de Química, de Biologia e de Matemática. A esses professores somam-se dois professores do 2º grau, que nos fazem a adequação do conteúdo ao currículo do 2º grau, e um professor da escola, em cada uma das quatro áreas, que são os elementos de ligação entre o projeto e os demais professores que irão utilizar os coursewares nas demais escolas. Essa é a equipe que desenvolve intelectualmente os coursewares. Do ponto de vista computacional, os coursewares são desenvolvidos pelo NUTES [UFRJ], e essa equipe que desenvolve os coursewares está composta por: programadores visuais, que fazem as telas, que determinam as cores, a parte visual dos coursewares; e analistas de sistemas e programadores, que desenvolvem o modelo computacional.
Os coursewares são a base do experimento piloto, portanto, a base do projeto EDUCOM [na UFRJ]. É através da interação dos alunos com os coursewares que se pode desenvolver todo o aspecto da pesquisa educativa. É através dessa interação, os alunos trabalhando no laboratório com os coursewares, que se vai buscar responder a uma pergunta: é viável a utilização dos computadores na escola pública de 2º grau? Esse é um aspecto importante.
Um outro aspecto importante é que nós estamos deixando, nas escolas e para a comunidade de professores do 2º grau, um banco de coursewares, um banco com 162 coursewares. Terminada essa fase de testagem, em que nós vamos apurar pedagogicamente os coursewares, a gente imagina que esses coursewares vão estar disponíveis para qualquer professor que queira copiar com seus disquetes e poder usar livremente em suas salas. (Profa. Nilma Santos Fontanive – NUTES/UFR)
Documentário “Projeto EDUCOM (NUTES-UFRJ, 1988)”
Fonte: (ELIA, 2021)
Courseware, ao menos no sentido que estava sendo empregado no documentário, pode ser atualmente entendido como um sinônimo de conteúdo educacional no computador, uma versão digital do livro didático com som, animação, simulação e interação. O conteúdo era apresentado em uma linguagem interessante e com referências ao cotidiano do estudante (a praia do Rio de Janeiro, comer um sanduíche), com histórias-lendas-experimentos famosos mobilizados para ensinar os conteúdos científicos. Era uma novidade, para a época, desenvolver esse tipo de conteúdo interativo, com mudança de tela “no ritmo do aluno”, com perguntas interativas do tipo sim/não. Apesar da enorme inovação que representava em relação ao livro didático, ainda assim compreendemos o courseware como uma versão da máquina de ensinar, uma nova roupagem da instrução programada.
O discurso oficial era que os coursewares serviriam para apoiar o professor em suas aulas, assim como os livros didáticos. Hoje vemos cursos baseados em conteúdos digitais interativos e com o professor retirado do processo (ao menos na situação que estamos aqui analisando, disparadora deste artigo). No discurso do documentário, já aparece o desejo de se criar uma base de conteúdos digitais, “disponível para qualquer professor que queira copiar com seus disquetes e poder usar livremente em suas salas”. Esse desejo é retomado recorrentemente nas políticas públicas, por meio de fomento para o desenvolvimento de Recursos Educacionais Abertos (REA), Objetos Educacionais (OE), Plataforma MEC de Recursos Educacionais Digitais etc. (CAMPOS; HEINSFELD, 2021). A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017 (ensino fundamental) e 2018 (ensino médio), elaborada para “nortear a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares de todo o Brasil” (ABASE, 2019, n.p.), serve também para balizar o desenvolvimento de conteúdos massificados, cria condições para a efetivação da massificação do ensino criando um enorme mercado-consumidor dos mesmos conteúdos, sejam impressos, sejam digitais, convenientes aos interesses neocapitalistas.
Queremos registrar que não estamos aqui realizando um ataque ao projeto Educom nem à sua realização de forma autônoma nas universidades parceiras, tampouco às políticas públicas de informática na educação; pelo contrário, lamentamos a não continuidade ou inexistência dessas políticas na atualidade, como destacou Marcos Elia (2021) em sua live sobre “A História da Informática na Educação no Brasil: uma narrativa em construção”, e lamentamos a falta de muitos investimentos antes e durante a pandemia que possibilitassem implementar uma educação de qualidade mediada pelas atuais tecnologias digitais em rede.
Reconhecemos que o Educom contribuiu para “a formação de uma massa crítica de pesquisadores brasileiros nesta nova área de conhecimento” (ELIA, 2021, n.p.). Se hoje escrevemos este artigo, é porque somos filhos/netos acadêmicos de pessoas que trabalharam nesse projeto ou correlatos – por exemplo, Mariano Pimentel, um dos autores deste artigo, foi orientado por quatro anos de iniciação científica por Lígia Barros, que inclusive aparece nos créditos do documentário sobre o Educom/UFRJ, e em seguida foi orientado durante três anos de mestrado por Fábio Ferrentini Sampaio, que também trabalhou no projeto Educom. Como ressaltou Valente, o projeto político brasileiro diferenciava-se do projeto político estadunidense que objetivava a “automação do ensino”:
Esse programa é bastante peculiar e diferente do que foi proposto em outros países. No nosso programa, o papel do computador é o de provocar mudanças pedagógicas profundas ao invés de “automatizar o ensino” ou promover a alfabetização em informática como nos Estados Unidos, ou desenvolver a capacidade lógica e preparar o aluno para trabalhar na empresa, como propõe o programa de informática na educação da França. (VALENTE; ALMEIDA, 1997, p.46)
Tecemos todas essas considerações para marcar que a automação do ensino por meio de máquinas e conteúdos digitais, para serem consumidos em larga escala (tomando o computador como um meio de comunicação de massa, para a massificação do ensino), encontra raízes também no primeiro projeto de política pública de informatização do sistema educacional brasileiro, e em projetos subsequentes, ainda que o objetivo desses projetos nunca tenha sido automatizar o ensino e substituir o professor.
Antes mesmo da pesquisa sobre o uso dos computadores na educação, as crianças e jovens brasileiros já vivenciavam a cultura digital. Desde o final da década de 1970 e no início dos anos 1980, os jogos digitais, acessados em máquinas de fliperama, fizeram um sucesso estrondoso. Depois os video games invadiram as casas da classe média alta, com jogos cada vez mais incríveis. Ainda na década de 1980, os jogos digitais também se popularizaram nos microcomputadores domésticos, como era o caso do computador MSX, que foi utilizado no projeto Educom/UFRJ (retratado no documentário). A bilionária indústria de jogos digitais segue crescendo e retroalimentando essa prática de cultura das crianças e jovens, e também de alguns adultos.
Neste parágrafo, peço licença ao meu companheiro coautor para que eu, Mariano Pimentel, possa assumir a voz na 1ª pessoa para fazer meu relato pessoal de como vivi-percebi o processo de informatização do ensino nas décadas de 1980-1990. Com a popularização dos microcomputadores, meus pais ficaram convencidos de que a informática seria o futuro e assim decidiram me presentear com um computador, se eu aprendesse a programar – condição para operar um computador naquela época. Em 1987 eu tinha apenas 12 anos de idade e aprendi a programar em Basic. Quase fui reprovado no curso, pois não tinha como praticar em casa o que aprendia, mas no final passei e ganhei o sonhado computador. Era um MSX, o mesmo computador que aparece no documentário do projeto Educom/UFRJ. Para mim, programar se tornou uma espécie de brincadeira, quebra-cabeça ou problema que às vezes eu conseguia resolver e outras vezes não, uma atividade que eu realizava esporadicamente para me divertir, sem nenhum acompanhamento ou supervisão. O computador acabou sendo usado mais frequentemente como uma alternativa ao video game, e pirateávamos os jogos uns dos outros, que eram vendidos em fitas cassete. Uma vez, no ensino médio, formei uma equipe com colegas que também sabiam programar e, na feira de ciências, apresentamos um trabalho mostrando que havíamos programado o computador para calcular o número π (Pi) com algumas casas decimais (utilizando um algoritmo que havíamos encontrado em um livro de matemática da biblioteca da cidade), e também havíamos realizado uma animação mostrando o cálculo da área de um círculo. Aquela experiência foi muito marcante para mim, pois foi a primeira vez que meu computador entrou na escola; até então, eram mundos sem intersecção. O plano dos meus pais funcionou: na época do vestibular, optei por estudar Informática, passei para a UFRJ. Em parceria com meu amigo Tarcísio, começamos a fazer iniciação científica pesquisando o desenvolvimento e o uso da informática na educação. Empolgado com o que estava aprendendo-pesquisando, comecei a trabalhar com a formação de professores de uma escola onde eu havia estudado em minha cidade natal, e depois acabei sendo convidado para criar o Laboratório de Informática de uma outra escola. Eu preparava algumas atividades educacionais e formava um colega-técnico para realizar as atividades nas turmas do ensino fundamental. Empolgados com a experiência de trabalho, fizemos o magistério juntos naquele ano. O ano era 1995, usávamos microcomputadores IBM-PC e o mercado estava cheio de opções de software educativo que a criançada adorava. Foram dois anos trabalhando na escola, onde também trabalhei com a linguagem de programação Logo, com editores de imagem e texto, e com a produção de hipertextos. Aqui deixo meu testemunho de que a década de 1990 foi marcada pela criação de laboratórios de informática nas escolas particulares e públicas, e destaco que o software educativo era popular à época, distribuído comercialmente. Para mais reflexões sobre esse período de criação de laboratórios de informática nas escolas brasileiras, recomendamos a leitura do texto “A informática na educação antes e depois da web 2.0: relatos de uma docente-pesquisadora” (SANTOS, 2010).
Os EDUCOMs da UFRJ e UFMG produziram bons software educativos para o MSX. Empresas e pessoas interessadas em informática na educação também produziram esses software encorajados pelos Concursos de Software Educacionais promovidos pelo MEC. (VALENTE, 1999, p.9-10)
O processo de repensar a escola e preparar o professor para atuar nessa escola transformada está acontecendo de maneira mais marcante nos sistemas públicos de Educação, principalmente os sistemas municipais. Nas escolas particulares, o investimento na formação do professor ainda não é uma realidade. Nessas escolas, a Informática está sendo implantada nos mesmos moldes do sistema educacional dos Estados Unidos, onde o computador é usado para minimizar o analfabetismo computacional dos alunos ou automatizar os processos de transmissão da informação. (VALENTE, 1999, p.8)
O software educacional (ou software educativo), comercializado em CD-Rom, era popular na década de 1990, muito usado nos laboratórios de informática das escolas particulares e comprado por pais de classe média alta para incentivar seus filhos a aprender a usar um computador. Esse tipo de software geralmente é uma versão da instrução programada: os conteúdos são apresentados em variados recursos multimídia-multilinguagem, com animações encantadoras, histórias narradas, músicas, atividades e “jogos educativos”, que muitas vezes eram “exercícios de fixação” que davam feedback-reforço positivo/negativo às respostas do usuário:
Instrução programada em um software educacional
Fonte: Software educacional sobre o Sítio do Picapau Amarelo
A partir da abertura da internet para uso comercial, a atenção de todos se voltou para a rede mundial de computadores e suas páginas web, e assim o software educacional, ao menos esse que comprávamos em CD-Rom, entrou em declínio. Nos anos posteriores, emergiram Recurso Educacional Aberto (REA), Objetos de Aprendizagem (AO) e, mais recentemente, alguns aplicativos como o Duolingo e Kahoot!, que são novas roupagens/variações de conteúdo didático online e do software educacional, que, por sua vez, já era uma nova roupagem para a máquina de ensinar. Parte do que se espera de uma máquina de ensinar é a capacidade de apresentar conteúdos ao usuário, o que foi repaginado como conteúdos digitais online, produzidos exaustivamente, (re)paginados em hipertexto, em novos gêneros como videoaula e webaula, e assim cursos inteiros tornaram-se disponíveis pela internet, como os mil cursos online oferecidos pela instituição de EaD em que um dos autores está matriculado. O papel do professor como apresentador de conteúdos está superado, não podemos insistir nisso; conteúdos digitais estão disponíveis a um clique, bons e ruins, em diferentes graus de complexidade-profundidade-extensão, em múltiplas linguagens, e seguirão sendo desenvolvidos e aperfeiçoados para as atuais máquinas de ensinar, em suas diferentes atualizações, com recursos muito mais potentes do que apenas quadro, datashow e oratória. O que não é ruim. Assim como um livro didático, o conteúdo digital não deveria substituir o professor… mas, na prática, alguns cursos na modalidade a distância estão reduzindo o processo educacional a conteúdos digitais e exercícios de (auto)avaliação.
Plataformas online de educação (ou AVAs)
A instrução programada em análise neste texto encontra-se em uma plataforma computacional de educação. Esse é o tipo de sistema computacional utilizado para dar suporte a cursos na modalidade a distância, também denominado ambiente virtual de aprendizagem (AVA) ou, em inglês, learning management system (LMS).
A educação a distância (EaD) em nosso país foi alavancada pela abertura da internet para o uso comercial, o que no Brasil ocorreu em meados da década de 1990, com os primeiros backbones de provedores comerciais operacionalizados em 1996 (HISTORIA_DA_INTERNET, s.d). A infraestrutura das tecnologias digitais em rede de computadores criou as condições para a efetivação de uma nova geração da EaD, autorizada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394), publicada em dezembro de 1996 (quando a internet já estava aberta para a população em geral), determinando em seu artigo 80: “O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino.” (grifo nosso) A partir de 1999, o MEC iniciou o credenciamento das instituições de ensino superior para a oferta de cursos na modalidade a distância. Desde então, essa modalidade cresceu rapidamente: nessas duas décadas, de zero passamos a ter 29% dos graduandos brasileiros na modalidade a distância. Aonde vamos chegar nesse ritmo?
Rápido crescimento dos graduandos matriculados em cursos a distância
Fonte: Dados obtidos de Censo da Educação Superior (INEP, 2020)
O ensino superior será predominantemente a distância após 2023-2030?
Fonte: Projeção linear e polinomial (de ordem 2) considerando os dados a partir do ano de 2015 obtidos do Censo da Educação Superior (INEP, 2020).
Nesse ritmo, já a partir de 2023 ou até 2030 (dependendo do método de projeção), haverá mais graduandos estudando na modalidade a distância do que na modalidade presencial. A pandemia pode ter acelerado ainda mais o processo (ainda não foram publicados os dados do censo do ensino superior dos anos de 2020 e 2021). Em poucos anos, não ultrapassando esta década, nosso sistema de educação superior será predominantemente a distância. O governo se mobiliza para realizar esta meta: “MEC aposta no ensino a distância e quer Universidade Federal Digital”.
Com relação aos dados sobre o crescimento da EaD em nosso país, um fenômeno que nos chama atenção é a redução de graduandos estudando na modalidade presencial a partir de 2015, enquanto os matriculados na EaD seguem aumentando – o que significa que o ensino superior presencial está “perdendo terreno” para a educação a distância (seria adequada essa metáfora se o digital não fosse desterritorializado). A recente migração dos graduandos da modalidade presencial para a modalidade a distância precisa ser melhor compreendida. Seria em decorrência do valor muito mais baixo das mensalidades dos cursos EaD? Seria para evitar o deslocamento até o prédio de uma instituição de ensino? Necessidade de trabalhar em paralelo aos estudos? Cultura digital mais disseminada? Mais facilidade para passar? Ou seria, para a derrota da narrativa que aqui estamos tecendo, em decorrência da metodologia instrucionista-digital ser considerada mais interessante do que a metodologia dos cursos presenciais? Também nos cursos presenciais já não estava hegemonicamente efetivada uma variação dessa abordagem didático-pedagógica instrucionista-massiva/conteudista-expositiva?
Cabe destacar que as matrículas no ensino superior a distância estão ocorrendo predominantemente no setor privado, que tem 94% das matrículas no ano de 2019 (INEP, 2020). As instituições privadas oferecem 4.010 cursos, enquanto as públicas são responsáveis pela oferta de apenas 519 cursos. De fato, o setor privado é o responsável pela expansão da oferta de educação superior em nosso país, em razão das sucessivas normativas governamentais e aos incentivos estudantis como o Programa Universidade para Todos (ProUni). “Do ponto de vista econômico, a ampliação da carga horária EaD resultará em redução de custos das IES, tanto com professores quanto com o espaço físico – o que pode refletir em mensalidades mais baratas para os alunos.” (SOARES; SILVA, 2020, grifo nosso).
Voltemos à historicização das plataformas computacionais em rede que dão suporte à EaD… É claro que o desenvolvimento dos AVAs aconteceu porque existia um desejo pulsando, um mercado em potencial, e também uma história-cultura tanto de EaD quanto de tecnologias digitais em rede anterior à abertura da internet para uso comercial. Algumas pessoas nem sabem que a internet já existia antes de 1995, confundem-na com a web, não diferenciam a cultura digital (caracterizada pelas tecnologias digitais) da cibercultura (marcada pela popularização das redes de computadores em todo o tecido social) e se espantam ao descobrir que a internet já tem mais de meio século. Você já havia nascido em 1969?
Arpanet, embrionária da internet, interligando 4 instituições dos EUA em 1969: Instituto de Pesquisa de Stanford (SRI), Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (UCSB) e Universidade de Utah (UTAH).
Fonte: (NAVARRIA, 2016)
Poucos anos depois dos primeiros computadores estarem em redes locais e de longa distância, em 1973 foi lançado o Plato Notes contendo um dos primeiros fóruns de discussão do mundo. Em 1976, o Plato já havia desenvolvido diversos sistemas de comunicação online, incluindo e-mail, salas de bate-papo, mensagem instantânea, compartilhamento de tela, entre outros recursos bem conhecidos na atualidade, também utilizados na EaD, no ensino remoto e no presencial.
Com a internet fora dos muros das universidades-governos-forças armadas, com as tecnologias digitais em rede disseminadas por toda parte, emergiram novos modos de ser e estar em um mundo digital em rede. Encantados com o “admirável mundo novo”, provocamos a bolha da internet entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000. Foi um período efervescente de (re)invenções e (re)descobertas: a web com seu mar de informações navegáveis, o entretenimento online, o comércio eletrônico, o banco digital, novos fenômenos ciberculturais…
Nesse clima de revolução, vimos emergir os ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs) (GOMES; PIMENTEL, 2021) alavancando a EaD-digital-em-rede no mundo e também em nosso país. Diferentes sistemas computacionais passaram a disputar uma fatia do “mercado dos AVAs” adotados em universidades e escolas. Um mercado que vem mudando muito rapidamente. A partir de 1997, no Brasil foram desenvolvidos dois AVAs que se tornaram conhecidos à época, AulaNet (FUKS, 2000) e TeleEduc (ROCHA, 2002), que sucumbiram para o Moodle adotado por diversas universidades públicas brasileiras a partir de meados da década de 2000. Recentemente, com a pandemia, vimos uma nova reviravolta nesse mercado: o Google Sala de Aula abocanhou uma boa fatia desse mercado de AVAs, tanto nas escolas quanto nas universidades públicas brasileiras.
AVAs mais utilizados nas universidades norte-americanas
Fonte: https://philonedtech.com/state-of-higher-ed-lms-market-for-us-and-canada-year-end-2020-edition
AVAs mais utilizados nas escolas norte-americanas
Fonte: https://www.listedtech.com/blog/update-on-the-k-12-lms-historical-market
Muitos cursos a distância pelas redes de computadores herdaram as práticas instrucionistas das gerações anteriores de EaD, baseadas no livro didático impresso e nas teleaulas. Não é surpreendente que os argumentos sobre as vantagens do sistema de educação a distância reverberem as justificativas utilizadas para explicar as vantagens da instrução programada e da máquina de ensinar. Thorndike (1912), sobre as vantagens do livro (auto)instrucional, ressaltava que o estudante poderia “pensar em seu próprio ritmo, estudar o fato várias e várias vezes conforme sentir necessidade, testar a si mesmo ponto a ponto à medida que avança, e fazer anotações” (THORNDIKE, 1912, p.161, apud McNEIL, 2007, tradução nossa). No vídeo sobre a máquina de ensinar, Skinner defende:
Uma outra vantagem é que o aluno é livre para avançar no seu próprio ritmo. […] Um estudante, usando a máquina de ensinar, avança no ritmo que for mais eficaz para ele. O estudante ágil completa o curso rapidamente, mas o estudante mais lento, dando mais tempo para a disciplina, pode cobrir o mesmo assunto; ambos aprendem o material completamente. Uma terceira característica que a máquina de ensinar possui é que cada estudante segue um programa cuidadosamente construído, saído de um estágio inicial, no qual o conteúdo é totalmente desconhecido, para um estágio final, no qual é competente. Ele faz isso dando um monte de passos bem pequenos dispostos em uma ordem coerente. Cada passo é tão pequeno que ele quase certamente irá fazê-lo corretamente. O material é projetado para dar ao estudante a maior ajuda possível. Ele não está, de forma alguma, sendo testado. De fato, dicas e sugestões maximizam a chance de que ele estará correto.
Argumentos muito parecidos frequentemente são usados para caracterizar as vantagens da modalidade a distância: “Estudo individual que prioriza a sua autonomia, com aprendizado de acordo com o seu ritmo e necessidade”; “Conteúdos com linguagem adequada e vídeos curtos desenvolvidos para aprendizado online”; “Exercícios online para validação do conhecimento de cada módulo”; “Flexibilidade e conveniência para estudar onde e quando quiser”.
A massificação do ensino, em escala industrial, implicou a fragmentação-especialização do trabalho docente, estabelecendo uma hierarquização entre os professores, como já aparecia no discurso do documentário Educom/UFRJ e que se encontra na atual Universidade Aberta do Brasil (UAB) (e em outras universidades que oferecem cursos a distância), que define diferentes “tipos de professor”:
Divisão do trabalho docente |
|
Projeto Educom/UFRJ |
Projeto UAB |
Professor principal na universidade, responsável pelos conteúdos científicos |
Professor-conteudista (universitário): responsável pela elaboração de material didático |
Professor do 2º grau, que faz a adequação do conteúdo ao currículo do ensino médio |
Professor-formador (universitário): responsável pelo planejamento, realização e avaliação da disciplina |
Professor da escola, que faz a ligação entre o projeto e os demais professores que irão utilizar os coursewares nas escolas |
Professores-tutor a distância (atua na universidade com o professor-formador): atua pelo AVA e dá assistência aos professores formadores |
Professores nas escolas, que irão utilizar os coursewares |
Professores-tutor presencial (atua no polo do município): acompanha e orienta os estudantes no polo presencial |
No sistema UAB (como também se realiza em muitas instituições privadas de EAD), o trabalho do professor está fragmentado-especializado. Por exemplo, o professor-formador, aquele que trabalha numa universidade pública, não é quem elabora-define os conteúdos da disciplina (responsabilidade de um professor conteudista, que atua pontualmente na elaboração de conteúdos didáticos), como também não é quem tem contato direto com os alunos (responsabilidade dos tutores). Alguns cursos a distância de universidades particulares fazem propaganda dos conteúdos em formato de videoaulas-palestras com professores famosos, enquanto os professores que escrevem as apostilas do curso são outros não tão famosos, e os professores-tutores da disciplina não são os que desenvolvem os conteúdos… Essa situação pode ser compreendida como “uma forma industrial de educação”:
Nas últimas décadas, muito do que se escreveu, disse e fez em educação a distância (EaD) baseava-se em modelos teóricos oriundos da economia e da sociologia industriais, sintetizados nos “paradigmas” fordismo e pós-fordismo. A importância desse debate é crucial, já que esses modelos (criados para descrever formas específicas de organização da produção econômica) têm influenciado não apenas a elaboração dos modelos teóricos, mas as próprias políticas e práticas de EaD, no que diz respeito tanto às estratégias desenvolvidas como à organização do trabalho acadêmico e de produção de materiais pedagógicos. […] Peters vem desenvolvendo análises das características da EaD, a partir de comparações e analogias com a produção industrial de bens e serviços, que identificam nos processos de EaD os principais elementos dos processos de produção industrial agrupados no que se convencionou chamar “modelo fordista”: racionalização, divisão de trabalho, mecanização, linha de montagem, produção de massa, planejamento, formalização, estandardização, mudança funcional, objetivação, concentração e centralização (KEEGAN, 1986). […] EaD é, para esse autor, uma forma de estudo complementar à era industrial e tecnológica – uma forma industrial de educação – e, portanto, o “ensinar” a distância é também um processo industrial de trabalho. […] Dentre os princípios do modelo fordista, Peters identifica três como os mais particularmente importantes para a compreensão da EaD: racionalização, divisão do trabalho e produção de massa. Além disso, o processo de ensino vai sendo gradualmente restruturado através de crescente mecanização e automação. (BELLONI, 2012, p.7-8)
Sabemos que o sistema educacional é inspirado no modelo fabril, isso não é uma novidade. Contudo, a industrialização-massificação do ensino se intensificou com a modalidade a distância e com as atuais plataformas online de educação, chegando a um nível angustiante ao ponto de escrevermos este texto.
“Nossa linha de produção é simples.
Construímos escolas, formamos cidadãos e criamos futuros.
Fábrica de Escolas do Amanhã. Mais educação para o Rio de Janeiro.”
Fonte: Propaganda no jornal O Globo, em 7/12/2014 (postagem de Marcelo Freixo)
“Another brick in the wall” (1979)
Fonte: YouTube
Nos Cursos Online Abertos e Massivos (MOOC), novidade lançada no final da década de 2000 e difundida na década de 2010, a automação do ensino foi levada ao extremo. Khan Academy, Coursera, Udacity e edX são algumas das principais plataformas para hospedar e até vender cursos e disciplinas online, nem sempre abertos. Esses cursos se autodenominam “massivos” porque objetivam ensinar um mesmo conteúdo para um grande número (indefinido) de estudantes, o que só é possível quando se retira o professor do processo.
Plataformas de MOOC: Khan Academy, Coursera, Udacity e edX (tradução Google Tradutor)
Afinal, o que é um MOOC? Os cursos online tradicionais cobram mensalidades, dão crédito e limitam as inscrições a algumas dezenas para garantir a interação com os instrutores. O MOOC, por outro lado, geralmente é gratuito, sem crédito e massivo. […] A esperança tênue é que os cursos gratuitos possam levar a melhor educação do mundo aos cantos mais remotos do planeta, ajudar as pessoas em suas carreiras e expandir as redes intelectuais e pessoais. […] Três coisas são mais importantes na aprendizagem online: qualidade do material abordado, envolvimento do professor e interação entre os alunos. O primeiro não parece ser um problema – […] até agora, a maioria dos MOOCs está em disciplinas técnicas como ciência da computação e matemática, com conteúdo simples. Mas fornecer feedback e conexão com o instrutor, incluindo interações com os alunos, é mais complicado. “O que é frustrante em um MOOC é que o instrutor não está tão disponível porque há dezenas de milhares de outras pessoas na classe”, diz o Dr. Schroeder. Como você faz o massivo parecer íntimo? Isso é o que todos estão tentando descobrir (PAPPANO, 2012, n.p., tradução nossa).
O frenesi causado pelos cursos massivos produzidos pelas universidades mais famosas do mundo – MIT, Oxford, Stanford, Cambridge, Harvard entre outras – fez alguns suporem, à época, que no futuro, após um período de concorrência, restariam apenas dois ou três MOOCs sobre cada assunto, de responsabilidade de poucas universidades globais com estratégias neocolonizadoras. Hoje conhecemos a altíssima taxa de evasão dos cursos massivos, chegando a 95% (SILVA et al, 2014) e que, ao menos nos EUA, “apenas de 5 a 10% dos estudantes universitários preferem Cursos Online Massivos e Abertos, em contrapartida com 50% a 85% registrados em cursos tradicionais” (VICARI, 2021, n.p.).
Sem mediação pedagógica, esses cursos massivos parecem mais repositórios de conteúdos e de atividades de (auto)avaliação. Para que a automação do processo de ensino sem professores seja bem-sucedida, algo precisava ser feito para conseguir manter os alunos engajados nos estudos, sem evadir…
Engajamento: gamificação e dataficação
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Gamificação tornou-se uma poderosa técnica aliada à instrução programada. Se estudar um conteúdo ou realizar uma atividade é chato, cansativo ou enfadonho para alguns estudantes, o que pode leva-los à evasão, então utilizar a linguagem-estética dos jogos, fazer uso de componentes, mecânicas e dinâmicas de jogos no processo de estudo, como pontos e níveis, talvez aumente a motivação-engajamento dos estudantes (OLIVEIRA; BERNARDO JÚNIOR; OLIVEIRA, 2021).
Duolingo é um dos casos de sucesso da gamificação da educação, atingindo em poucos anos centenas de milhões de usuários. Esse aplicativo é uma nova versão de máquina de ensinar sem professores: implementa a instrução programada, é uma nova roupagem do software educacional com seus recursos interativos e multimídia-multilinguagem, é um curso massivo para ensinar a mesma coisa para um número muito grande (indefinido) de estudantes, e implementa as técnicas de gamificação de maneira exemplar. Uma novidade apresentada no Duolingo é dispensar a apresentação direta de conteúdos, como tradicionalmente é feito na instrução programada; todo o processo está baseado na realização de atividades, agrupadas em lições-temas-áreas-níveis, para o usuário apre(e)nder os conteúdos a partir da tentativa-e-erro.
Técnicas de gamificação conjugadas com a instrução programada
Fonte: do próprio autor (utilizando o aplicativo Duolingo)
A gamificação pode ser usada em cenários onde haja a necessidade de motivar e engajar pessoas a realizar determinadas atividades ou mesmo, incentivar ou convencer pessoas a mudarem seu comportamento ou sua forma de analisar certas situações. Na educação por exemplo, é comum termos situações onde os estudantes se sentem desmotivados a cumprirem determinadas tarefas, completar determinadas atividades ou mesmo ingressar em certos cursos ou disciplinas. Nessa hora, a gamificação surge como uma grande oportunidade para motivar e engajar os estudantes a fazerem estas atividades, mantendo-se motivados, engajados e possivelmente aumentando sua aprendizagem (HAMARI et al., 2014) (OLIVEIRA et al., 2021, n.p.)
O discurso sobre gamificação atualizou o antigo discurso sobre instrução programada:
Instrução programada é um método de instrução através do qual o microcomputador é realmente colocado na posição de quem ensina ao aluno. […] Ocasionalmente, alguns métodos menos convencionais, como simulações e jogos, são acoplados à instrução programada, mas a maior parte das vezes a instrução programada através do microcomputador se resume a exercícios do tipo repetitivo, para fixação ou recuperação, a tutoriais e demonstrações. Não resta dúvida, porém, de que, quando bem concebido e implementado, esse tipo de exercício de instrução programada pode ser de grande utilidade, pois o componente “computador” acrescenta uma dimensão motivacional adicional ao processo ensino-aprendizagem, e tarefas que poderiam ser vistas como incrivelmente maçantes pelos alunos, como aprender tabuadas, ou plurais irregulares, ou fatos históricos importantes, passam a ser desenvolvidas com relativo grau de interesse e mesmo de prazer. (EDUCAÇÃO E INFORMÁTICA, 1985, p.19, grifo nosso)
Na década de 2010, as técnicas de gamificação se espalharam rapidamente nos sistemas computacionais voltados para a educação, chegando às plataformas de aprendizagem (AVAs):
AVA Gamificado
Fonte: CEAD-UFJF
Técnicas de gamificação para o estudo da disciplina em um AVA
Fonte: AVA de um curso a distância
Objetivo-desafio-missão informam o que precisa ser estudado e feito pelo estudante. Níveis-etapas organizam os conteúdos e as atividades em uma “sequência lógica”. Pontuação-prêmios-medalhas são usados para dar o feedback-reforço positivo/negativo sobre cada passo dado pelo estudante, seja a leitura de um módulo, a realização de uma atividade avaliativa, ou passar numa disciplina do curso. Essas técnicas de gamificação apresentam ao estudante as tarefas que ele precisa cumprir, quantas já realizou (barra de progresso) e o desempenho obtido até aquele momento (pontuação) – o aluno assim se torna um “tarefeiro”, estudar passa a ser sinônimo de cumprir todas as tarefas projetadas para o curso para que seja aprovado na disciplina.
A grande adesão de gamificação à educação se deve à cultura educacional existente, já que o sistema educacional é todo gamificado pela técnica PBL (Points, Badges, Leaderboard – Pontos, Prêmios/Medalhas/Emblemas, Ranque/Classificação) e outras, com fundamentos na teoria comportamentalista: pontos obtidos em atividades e provas servem de feedback-reforço positivo/negativo; prêmios são dados pelo professor, em forma de ponto extra, quando o aluno faz um trabalho ou algo extraordinário; níveis são as séries anuais ou são efetivados pelo sistema de dependência entre disciplinas; competição entre alunos é estimulada pelo ranque das notas da turma. Nessa lógica, muitas vezes, o objetivo da educação, em vez de ser a construção-significação de conhecimentos, em vez de desenvolvimento de competência, em vez do saber conhecer-fazer-ser-conviver (DELORS et al., 1998), passa a ser ganhar pontos para passar para o próximo nível, como denunciado pelo personagem Linus num episódio do desenho animado de A Turma do Charlie Brown:
https://www.youtube.com/watch?v=wdCY9xrh62w
Eu acho que o propósito de ir para a escola é tirar boas notas, aí você vai para o segundo grau onde o propósito é estudar mais ainda para tirar boas notas e poder ir para a faculdade. E o propósito de ir para a faculdade é tirar boas notas para poder fazer pós-graduação. E o propósito disso é você estudar mais e tirar boas notas para ter um emprego e ser bem-sucedido, para casar e ter filhos, para poder mandá-los para a escola para tirarem boas notas, para poderem ir para o segundo grau e tirarem boas notas, para poderem ir para a faculdade e darem duro…
Tirar boas notas – a escola sem sentido
Fonte: YouTube
Nós, autores, gostaríamos de ver emergir um movimento de desgamificação da educação. Reconhecemos, contudo, que há técnicas de gamificação, como narrativa e colaboração, que podem apoiar a pensar-projetar situações de aprendizagem interessantes. Mas, na prática, gamificação tem sido reduzida a pontos, prêmios e competição, utilizada geralmente para apoiar a instrução programada, visando a aperfeiçoar a máquina de ensinar – como exemplifica o Kahoot!, lançado em 2013, outro caso de sucesso da gamificação, mais um sistema que faz uso da técnica PBL que estamos aqui problematizando.
Kahoot! usado para dinamizar um questionário sobre “pensamento computacional”
Fonte: do próprio autor, com uso do Kahoot!
Quero (eu, Mariano Pimentel) trazer uma experiência de meu cotidiano educacional para refletir-problematizar o uso do Kahoot! Quando me voluntariei a ensinar programação no curso de Sistemas de Informação da universidade em que trabalho, tive algumas reuniões com a professora que estava lecionando aquela disciplina no período em andamento e fui convidado a assistir a uma aula dela. Conheci o tal Kahoot!, que foi utilizado na primeira atividade-dinâmica com a turma para fazer uma revisão sobre o conteúdo trabalhado na aula anterior, uma espécie de “esquenta”. A turma participava ativamente, os alunos estavam agitados, havia muitas brincadeiras, fiquei com a impressão de que eles estavam se divertindo tirando sarro uns dos outros. Eu também participei da atividade, errei duas questões e nem apareci no pódio final, virei alvo de brincadeiras da professora e da turma, e me diverti. No semestre seguinte, a professora mais experiente lecionou para a turma de calouros (entram 36 estudantes por semestre no curso) e eu assumi a turma de repetentes, em torno de 20 alunos. Conversei com a turma sobre as dificuldades e os motivos da repetência, sobre as possíveis estratégias/táticas de ensino-aprendizagem que deveríamos mobilizar, e, para a minha surpresa, a turma foi unânime em pedir para não utilizar o Kahoot! Explicaram que esse sistema se destina a realizar uma avaliação, que não serve para aprender algo novo, pois ou você já sabe e acerta, ou você constata a própria ignorância, o que, para quem não está conseguindo acompanhar a disciplina, é bastante constrangedor. Pode até ser divertido para algumas pessoas competitivas que estão conseguindo acompanhar a disciplina e disputam para ver quem responde mais rapidamente, mas se torna estressante justo para quem mais precisa de apoio na aprendizagem. Lição aprendida, nunca mais cogitei usá-lo em minhas disciplinas, exceto em palestras e cursos de formação continuada de professores para problematizar a situação que aqui estou narrando. E o uso para disparar diálogos, reflexões e trocas, não para promover uma competição entre os cursistas, nem para avaliá-los.
“Oi, Felipe! Tudo bem? Não temos visto você acessar o ambiente. Poxa! Você não possui acesso regular aos estudos… O que houve? Qualquer dificuldade, fale com a gente através do Chat. Queremos seu sucesso! Se cuida.”
Essa é uma das mensagens recebidas quando ficamos alguns dias sem acessar o sistema dos nossos cursos a distância. As plataformas virtuais de aprendizagem coletam nossos dados, monitoram cada ação: os dias e horários em que acessamos a plataforma, quanto tempo permanecemos logados, que conteúdos abrimos e o que ainda não estudamos, quanto tempo nos dedicamos em cada tela, que atividades avaliativas realizamos, quais questões acertamos e erramos, o que clicamos, quantas mensagens enviamos, qual foi o texto de cada mensagem…
Comparações entre o desempenho do estudante com os outros alunos da turma
Fonte: AVA de um curso a distância
O enorme volume de dados que produzimos enquanto estamos conectados à plataforma é processado e analisado; são produzidos indicadores; são estabelecidas comparações com os outros alunos da turma e com todos os dados acumulados no sistema; são empregadas técnicas de inteligência artificial para criar modelos capazes de inferir/predizer se o aluno está achando o curso muito difícil ou muito fácil, se está na iminência de abandonar ou se está engajado no curso. Algoritmicamente, a partir de indicadores e inferências, o sistema toma decisões sobre o que fazer: mandar um e-mail de apoio ao aluno, sugerir conteúdos e atividades de reforço, pedir para que entre em contato com o tutor, dar um desconto na mensalidade, ou simplesmente não perturbar o aluno.
A análise de dados de nossa sociedade conectada se tornou tão importante que fez emergir uma nova ciência, a “Ciência dos Dados”, e na educação fez emergir uma nova área de pesquisa, a “Learning Analytics”. Já foi dito que os “dados são o novo petróleo”; são coletados, armazenados, tabulados, comparados, transformados, minerados, estratificados, vendidos, utilizados e reusados. Vivemos a “dataficação da vida”, como explicou André Lemos durante sua live e em seu texto “Os desafios atuais da cibercultura”. As plataformas de educação dataficaram o processo de ensino-aprendizagem para muito além da planilha de frequência nas aulas e da planilha de notas que os professores humanos são capazes de gerenciar.
A plataformização da educação tem possibilitado emergir um “modelo de educação 100% digital”. Nem é preciso ter sala de aula física, assim como a Uber não tem os próprios carros – a uberização da educação já está em marcha (CALLE2, 2021). A plataforma educacional é o que importa, é o que garante a metodologia e toda a infraestrutura para o estudo, é o que dá suporte ao novo “modelo de educação” ou, como é dito, ao novo modelo de negócio. Alunos-clientes (AMARAL; VERGARA, 2011) contratam os cursos que desejam, entre centenas à disposição; é assim que empresas de EAD vêm abocanhando uma fatia do mercado do ensino superior de nosso país nesta última década.
O plano da Uber é automatizar o carro para eliminar os custos com os motoristas. Não é difícil imaginarmos qual é o plano dessas empresas uberizadas de ensino com relação aos professores-tutores… Parece que ainda não foi possível substituí-los por completo, pois já foi constatado que os cursos totalmente massivos, sem tutor algum, não funcionaram direito, mas seguem sendo empreendidos mais esforços para que as tecnologias consigam automatizar “adequadamente” a técnica de ensinar. A máquina de ensinar seguirá sendo aperfeiçoada.
Ensino remoto e educação híbrida…
Chegamos, enfim, ao ano 2020-21. A pandemia reconfigurou o sistema educacional, em todos os níveis. Instituições, cursos, gestores, professores e estudantes tiveram de se reinventar em modo 100% não presencial, ou então suspender o calendário acadêmico (Portaria MEC nº 343/ 2020). Esse período de crise consolidou, em nosso país, o ensino remoto. Até os cursos a distância, que deveriam realizar as avaliações de modo presencial (Decreto n. 9.057/2017), tornaram-se “a distância e remotos”, dado que as provas presenciais tiveram de ser substituídas por atividades online. Quais serão as consequências, nos próximos anos, dessa experiência de educação mediada por tecnologias digitais em rede em todo o sistema educacional?
A palavra-síntese para a educação no momento é “híbrida”. O sentido de educação híbrida vem sendo discutido e disputado, envolvendo interesses comerciais e políticas públicas. Tomando o sentido do termo “híbrido” como sendo o resultado de uma mistura de coisas diferentes, o que está sendo misturado quando dizemos “educação híbrida”?
Educação Híbrida: o que está sendo hibridizado?
Fonte: dos autores
Antes da pandemia, nós, autores, achávamos que educação híbrida era a mistura das modalidades presencial e a distância, com algumas aulas na sala física e algumas online, modalidade conhecida como educação semipresencial, blended learning ou b-learning (como definido na Wikipédia). Uma vez escutamos gestores de uma universidade particular planejarem, para o pós-pandemia, uma volta à universidade com menos aulas presenciais, considerando que a cultura de uso das tecnologias digitais em rede na educação, instaurada na universidade em decorrência do longo período de pandemia (e também nos alunos que entrariam nos anos seguintes), possibilitaria tornar boa parte das aulas presenciais em “aulas a distância”, promovendo a “autonomia da aprendizagem”, a autoaprendizagem a partir de conteúdos online disponíveis na plataforma, e que os encontros presenciais precisariam ser “mais bem aproveitados/valorizados” destinando-os para a realização de dinâmicas de grupo, debates, seminários, laboratórios, oficinas etc. Embora não dito, subjacente ao discurso da educação híbrida de modalidades, nos pareceu estar o desejo de redução da carga horária do professor-horista, que também possibilitaria uma redução da mensalidade, mas isso não necessariamente implicaria um aumento da qualidade da educação. Já no contexto das universidades públicas, há professores que flertam com o desejo de se liberar da carga-horária das aulas presenciais para conseguir se dedicar mais à pesquisa-extensão-gestão, um desejo que aumentou antes mesmo da pandemia, a partir da Portaria nº 2.117/2019, que aumentou de 20% para 40% o limite da “oferta de carga horária na modalidade de Ensino a Distância (EaD) em cursos de graduação presenciais ofertados por Instituições de Educação Superior (IES) pertencentes ao Sistema Federal de Ensino”. Será que esse desejo, de hibridizar aulas presenciais com aulas não presenciais, irá aumentar após a experiência com o ensino remoto? E será que tornar a disciplina em um repositório de conteúdos online com provas bimestrais para a certificação do aprendizado, como hegemonicamente praticado na EAD, irá melhorar o processo de ensino-aprendizagem, melhorar o “ensino de excelência” que bem caracteriza as universidades públicas? A hibridização de modalidades, para nós, autores, pode significar uma semiautomatização do ensino com mediação docente precária – seja nas instituições particulares de ensino, seja nas públicas.
Outra narrativa sobre educação híbrida vai na direção da infraestrutura, de garantir os meios para o acesso de todos à internet. Sem dúvida, promover a infraestrutura já era urgente antes mesmo da pandemia – em 2020, poucas escolas municipais tinham computadores para os alunos: 38% tinham computadores de mesa para alunos, 24% tinham computadores portáteis para os alunos, e apenas 6% tinham tablet para alunos (INEP, 2021, p.13). A ONU já declarou que o acesso à internet é um direito universal e, no Brasil, o “direito de acesso à internet a TODOS” é parte do nosso Marco Civil da Internet desde 2014 (Lei 12.965/14). Faltaram políticas públicas para implementar esse direito, tanto nas escolas quanto nas universidades. Que essa lição tenha sido aprendida!
Fonte: (INEP, 2021, p.13)
A pandemia mostrou que o direito de todos ao acesso à internet deveria já ter sido operacionalizado há tempos. Com a suspensão do calendário acadêmico, as universidades públicas se ocuparam, pela primeira vez, em garantir que todos os alunos tivessem equipamentos e acesso à internet de qualidade para conseguirem estudar online. Se isso não foi feito antes, é porque ainda há um negacionismo sobre a importância das tecnologias digitais em rede para a educação, e esperamos que essa lição também tenha sido aprendida. Não estamos aqui defendendo a automação do ensino, mas não podemos mais negar a importância do uso crítico e potente das tecnologias computacionais na educação.
O custo do professor com as aulas remotas
Ao custo do professor acrescentaríamos ainda o custo com licenças de software (sistema operacional, editores diversos, sistema de videoconferência de qualidade, software para a realização de dinâmicas colaborativas etc.) e com equipamentos para a videoconferência (luminária de anel de luz, câmera e microfone de qualidade, mesa digitalizadora…).
Fonte: @bi_linguas
Os professores não tiveram muito suporte para trabalhar remotamente em suas casas, e precisaram utilizar os seus próprios computadores, sua própria internet, e alguns até pagaram por licenças de software para conseguir realizar uma mediação docente com mais qualidade – nova forma de precarização do trabalho docente. Muitas universidades públicas investiram na realização de alguma formação continuada para a apropriação das tecnologias digitais em rede na educação – uma ação que deve ser permanente, outra lição que esperamos ter aprendido… São muito bem-vindas as políticas públicas para equipar as escolas e universidades com computadores para professores e alunos, acesso à internet em banda larga, licenças de software (quando não houver boas alternativas em software livre ou seu uso for um obstáculo para o professor), espaços conectados, espaços maker (para trabalhar com robótica, objetos inteligentes [Arduino], impressora 3D,…), entre outas possibilidades.
Uma terceira caracterização que vem sendo feita para a educação híbrida é a mistura de metodologias. Nessa acepção, educação híbrida significa mobilizar outras abordagens didático-pedagógicas, como Metodologias Ativas, Sala de Aula Invertida, Aprendizagem Baseada em Projetos/Problemas/Fenômenos, Aprendizagem Colaborativa etc. O uso das tecnologias digitais em rede, se não for para efetivar uma abordagem instrucionista-massiva, implica mudanças curriculares e substituição das práticas hegemônicas de ensino, o que precisa estar acompanhado de muita discussão e formação continuada de professores para o uso crítico-ético-potente dessas tecnologias sem cair em armadilhas do cibertecnicismo, em que as tecnologias dão uma nova roupagem às velhas práticas instrucionistas, como estamos aqui denunciando.
Educação híbrida também tem sido utilizada para caracterizar a situação em que, neste período de pandemia, parte dos estudantes está nas salas de aula física enquanto outra parte estuda em casa, alguns em sistema de rodízio (em decorrência do protocolo de afastamento físico mínimo durante a pandemia), cabendo ao professor dar um jeito para acompanhar as diferentes presencialidades hibridizadas em sua aula – situação vivida em diversas instituições de ensino, particulares e públicas, como a rede municipal de ensino de São Paulo no retorno às atividades presenciais no início do ano letivo, que limitou a presença de 35% dos estudantes da cada sala-turma (INSTRUÇÃO NORMATIVA nº1/2021). Nenhum teórico poderia prever o uso do termo “educação híbrida” nessa acepção, em que não é uma opção, mas sim o que está sendo possível de ser realizado neste momento.
Discutimos aqui esses diferentes sentidos que estão sendo atribuídos à educação híbrida para enfatizar que esse conceito está em disputa, e precisamos estar alertas sobre como ela será operacionalizada nos próximos anos, porque pode, sim, estar sendo usada como narrativa para mais automação e massificação do ensino, não necessariamente para a inovação pedagógica e melhoria da educação.
Com a pandemia, todos nós, em todos os níveis educacionais, experienciamos uma educação não presencial, sem corpos físicos, sem o olho no olho, sem o quadro e o datashow. O que essa situação trouxe de novo? Por que, afinal, estamos discutindo esse fenômeno no contexto das máquinas de ensinar?
Nós precisamos hackear os sistemas e não permitir que essas soluções privadas, encaixotadas, produzidas por essas empresas ou por fundações e associações feitas com aqueles que são os homens que têm as maiores riquezas do país e querem mandar na educação pública e na educação em geral. […] Esse é o perigo desse modelo de educação que está vigendo no país, que está crescendo a partir do momento em que esses grupos empresariais e essas plataformas privadas começam a querer dominar o ecossistema público ou mesmo o ecossistema privado [de educação]. Se os pró-reitores, as pró-reitoras, as equipes, não dialogarem fortemente com os setores de TI das universidades para considerar isso hoje — isso, que eu falo é as tecnologias — como estruturante do funcionamento das universidades, o que a gente vai ver é aquilo que no passado a gente já via com os livros didáticos, os materiais didáticos sendo a rede primitiva estabelecida, acontecendo hoje de forma muito mais poderosa. […] E observe que esses grupos empresariais estão montando essas empresas de consultoria que estão praticamente definindo o funcionamento das universidades, das graduações e, o que é mais grave, do ensino básico. […] Vai acontecer, não, desculpe, está acontecendo! Conheço uma série de servidores, técnicos, professores que trabalham em secretarias de educação que estão, hoje, com a agenda lotada recebendo vendedores desses grupos empresariais, dessas empresas, querendo vender soluções tecnológicas. […] O que Tim Berners-Lee está falando hoje sobre a internet é isso: precisamos resgatar a internet, tomar de volta a internet que nos foi roubada. A internet nos foi roubada. E se nós deixarmos isso acontecer do jeito que está acontecendo, vão nos roubar a educação também. E nós vamos ser pecinhas do sistema para executar o que vai ser elaborado ou pelos dirigentes que elaboram as políticas, ou pelas grandes plataformas e grandes grupos empresariais. Observem que esses grupos que estou me referindo são os mesmos que praticamente definiram a BNCC, são os mesmos! […] [isso o que está acontecendo é] no mundo, não é apenas no Brasil não. (Nelson Pretto, na live “Ensino híbrido e modalidades semipresenciais: características, exigências e possibilidades abertas”)
O risco não está apenas em entregar o domínio das tecnologias que estruturam nosso sistema educacional às grandes empresas mundiais – Google, Microsoft, Facebook e agora também Zoom; mas há também o risco de disseminar mais rápida e amplamente a instrução programada nessas plataformas-máquinas de ensinar. Por exemplo, no Google Sala de Aula está integrado o Google Formulário, que possibilita desenvolver questões de múltipla escolha que são corrigidas automaticamente, com a nota do estudante naquela atividade-teste-avaliação sendo lançada instantaneamente na planilha de notas da turma. Assim a criação de uma atividade corrigida automaticamente, tal como encontramos em nossos cursos a distância, se tornou acessível a qualquer professor, de todos os níveis, não está restrita a uma equipe de design instrucional ou de programadores.A plataformização da educação se disseminou em todo o sistema educacional. Em nosso país, está acontecendo uma adesão massiva ao Google Sala de Aula pelas escolas (COSTAS, 2021) e até mesmo em universidades públicas que já contavam com uma infraestrutura TI e um servidor Moodle instalado. Em sua estratégia de colonização digital do sistema educacional de nosso país e do mundo, a Google não só está oferecendo suporte computacional gratuito como também está provendo todo um sistema de “capacitação” de professores, para que se tornem multiplicadores das tecnologias educacionais Google. Há quem vista orgulhosamente a camisa “Google Certified Trainer” – já encontramos diversos vídeos no YouTube desses multiplicadores dando dicas sobre como usar a plataforma Google Sala de Aula.
Atividade corrigida automaticamente pelo Google Formulário integrado ao Google Sala de Aula
Fonte: dos autores
O sistema massificado e automatizado de ensino, baseado na autoinstrução programada em uma máquina de ensinar, vem sendo sonhado, desenvolvido e aperfeiçoado ano após ano, há muitos anos. Não é algo que aconteceu de repente com a pandemia. Junto com a disseminação das novas máquinas digitais-em-rede de ensinar, estão também sendo regulamentadas as políticas públicas: “A educação básica e a educação superior poderão ser ofertadas na modalidade a distância nos termos deste decreto” (Decreto Nº 9.057/2017).
O que acontecerá nos próximos anos desta década?…
Afinal, qual é mesmo o problema de automatizar e massificar o ensino, de (re)programar a instrução nas atuais máquinas (digitais em rede) de ensinar?
Sim, instrução faz parte da educação. O problema é quando reduzimos toda a educação-formação a mera instrução. O problema da massificação dos conteúdos é a impossibilidade de “agradar a todos”, ensinar as mesmas coisas a todos de modo indiferente aos interesses de cada um, às singularidades, histórias de vida e formação, o contexto e a cultura de cada estudante. O foco na instrução e na massificação é o que possibilita a programação-automatização do processo de ensinar, tornando-o maquínico, não humano, inumano, desumano. Mesmo com técnicas computacionais para a “personalização do ensino”, esse ensino ainda estará centrado na instrução, além de não humanizado.
A formação ou é experiencial ou então não é formação. Confundir formação com um conjunto de dispositivos técnicos/tecnológicos, é reduzir a formação a uma questão física (ou outra questão qualquer). Se não levarmos em consideração que essa experiência é irredutível e é inexplicável, só sendo acessível na medida em que nós nos aproximamos da experiência daquele que aprende, porque formação é uma experiência aprendente. […] Nas políticas oficiais, esse tecnicismo disfarçado de inovação, já é uma presença que é comemorada pelo hegemônico neste momento. […] Não se aprende e nem se forma com um cérebro separado de uma história de vida, de trabalho e de cultura. Não queremos isso. The Wall, do Pink Floyd, é um exemplo muito importante do que não queremos mais, por mais que estejamos com um pé aí, em vários ângulos… É impensável a formação como produção em série. É uma impossibilidade pensá-la e alcança-la por indicadores extensivos, dimensões aferidas e estandardizações. Ou é criação sociotécnica, ética, estética, política, cultural, experiencial e acontecimental, ou, então, não é formação. (MACEDO, 2021, live “Formação de professores, educação online e democratização do acesso às redes”)
Fonte: MACEDO, 2021, live “Formação de professores, educação online e democratização do acesso às redes”
Reconhecemos que a instrução faz parte da educação. Queremos exemplificar o lugar da instrução em um processo formativo refletindo sobre o recente uso que nós, autores, fizemos do Duolingo. Parece contraditório termos acusado o Duolingo como instrucionista e, ao mesmo tempo, reconhecermos que gostamos de utiliza-lo para aprender uma nova língua. Reconhecemos que ele cumpriu um importante papel para “quebrar o gelo” bem no início do nosso processo de aprendizagem, que a repetição de palavras foi interessante para memorizarmos um vocabulário inicial e suas pronúncias, e que a correção de alguns erros também nos ajudou a atentar a alguns aspectos formais da língua. Mas utilizamos essa máquina de ensinar em conjunto com outras tecnologias computacionais/artefatos culturais: ouvíamos lições em podcast; assistíamos a séries na Netflix produzidas naquela língua acompanhando a legenda-transcrição; líamos jornais online na língua estudada e levávamos trechos para o Google Tradutor traduzir e também ler em voz sintetizada para conhecermos a pronúncia das novas palavras; e utilizávamos a videoconferência para conversar com a professora particular que estava orientando todo o processo. Ela nos conhecia muito bem, e fazia uma curadoria de conteúdos que nos interessava e assim conseguia nos engajar nas conversações – por exemplo, na véspera de viajarmos para fazer um curso intensivo com imersão num país daquele idioma, ela separou vários pontos turísticos da cidade em que ficaríamos para nos apresentar e sugerir passeios e atividades. Ela, e não a gamificação, foi fundamental para desenvolvermos o prazer em aprender aquela língua nas primeiras semanas e assim nos mantermos estudando. Viajamos para estudar por dois meses, mas também fomos ao cinema ver filmes locais, assistimos à televisão daquele país, fomos a shows e exposições, nos reunimos com amigos nativos, compramos e lemos alguns livros e até escrevemos artigos naquela língua. Quando regressamos, contratamos um professor particular presencial para “treinar” um dos autores a fazer a prova de proficiência que era necessária para poder pleitear uma bolsa de estudo em um país do idioma que estávamos estudando – e ele conseguiu passar na prova, que atestou ter proficiência intermediária-avançada na língua aprendida em poucos meses. Essa façanha não se deve, obviamente, ao uso do Duolingo, embora esse sistema computacional instrucionista também tenha feito parte das estratégias que mobilizamos para aprender a língua. Olhando para todo esse processo formativo, reconhecemos que a instrução fez parte dele, em diversos momentos, mas não podemos reduzir o processo formativo a mera instrução, memorização por repetição e conteúdos formais sobre a língua.
Ao decidirmos estudar uma nova língua, nossa primeira ação foi contratar a professora. E fomos acompanhados por diferentes professores ao longo dos meses em que nos mantivemos estudando a língua. Para nós, nada substitui um bom professor, como já nos ensinou António Nóvoa em seu eloquente discurso:
“Na década de setenta, tivemos muitas ilusões na chamada racionalização do ensino: a pedagogia por objetivos, uma certa Ciência da Educação que achava que iria resolver racionalmente os problemas do ensino. […] A década de oitenta foi muito marcada pela ilusão das reformas do currículo […] e que, em cima dos currículos, puséssemos bons manuais escolares, bons livros escolares, bons instrumentos escolares – e agora não só os livros, é também a tecnologia –, se puséssemos isso tudo, talvez, talvez os professores não fossem assim tão importantes, e talvez isso pudesse compensar um bocadinho uma menor qualidade ou uma menor dedicação ou um trabalho menos importante dos professores. A década de noventa foi muito caracterizada pela crença de que, o que era preciso, era organizar bem as escolas, os projetos educativos das escolas, a questão da direção das escolas. […] Não me ouvirão dizer que a investigação em educação, que o currículo e que a direção e administração das escolas não são importantes, mas ouvir-me-ão dizer que eu acho que o que marca hoje a reflexão é o “regresso dos professores”, é a ideia de que nada substitui um bom professor; isto é, que um bom professor não é substituível nem pela investigação educacional, nem pelas coisas curriculares, nem pelas matrizes organizacionais, e que os professores estão hoje, e bem, na minha opinião, no centro das nossas atenções. (NÓVOA, 2011)
NADA substitui um bom professor
Fonte: “Seminário mais Sucesso” (2011)
Há uma década, Nóvoa afirmava que nada substitui um bom professor, nem a tecnologia. Um discurso eloquente e acalentador para nós que somos professores. Dez anos depois, estamos nos deparando com cursos massivos sem professores e cursos a distância praticamente sem mediação docente. Concordamos que nada substitui um bom professor, mas sabemos que o professor está sendo substituído – ao menos em parte.
O desejo de automatizar o ensino e substituir o professor não está superado. Já foram e continuarão sendo empreendidos incansáveis esforços técnicos e teóricos para tentar, um dia, substituir os professores por autômatos. Busca-se superar alguns dos inúmeros problemas decorrentes da automatização do processo de ensino. Por exemplo, hoje estão decodificando as expressões faciais do usuário para identificar a emoção que ele está sentindo a cada instante e assim poder modificar, de maneira programada, a situação de aprendizagem quando for percebido que o usuário está entediado, confuso ou frustrado. Novos desenvolvimentos tecnológicos – em inteligência artificial, ciência dos dados, gamificação, plataformas de ensino-aprendizagem, entre outros – seguirão produzindo novas versões-atualizações da máquina de ensinar, reprogramando a instrução. No futuro retratado em muitas histórias de ficção, que revelam nossos medos e desejos contemporâneos, as crianças aprendem com sistemas computacionais e robôs humanoides e não humanoides, como exemplificam o tutor-urso de pelúcia Teddy e a própria criança-robô David no filme A.I. Inteligência Artificial. Esse futuro está longe?
Então a culpa é da tecnologia computacional?
A tecnologia não está sozinha; ela faz parte de uma rede de agenciamentos. Muitas vezes importam mais os usos e apropriações que fazemos da tecnologia do que de suas características – por exemplo, já registramos neste texto o uso diferenciado que fazemos do Kahoot! nos cursos de formação de professores, apesar de esse sistema ter claros propósitos instrucionistas, avaliativos e de promoção da competição. Também aqui refletimos sobre o papel que o Duolingo desempenhou em nossa formação, sem reduzir toda a formação apenas ao seu uso.
Também não podemos considerar a tecnologia como sendo neutra, pois ela é projetada com intencionalidade, possibilita determinadas ações e impede outras. Cabe sempre fazermos “uma avaliação crítica do significado da informática na educação, a análise das consequências gerais da informatização enquanto o uso de tecnologias não neutras e comprometidas com determinado modo de concepção da sociedade” (MORAES, 1997, p.20).
Uma técnica não é nem boa, nem má (isto depende dos contextos, dos usos e dos pontos de vista), tampouco neutra (já que é condicionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o espectro de possibilidades). Não se trata de avaliar seus “impactos”, mas de situar as irreversibilidades às quais um de seus usos nos levaria, de formular os projetos que explorariam as virtualidades que ela transporta e de decidir o que fazer dela. Contudo, acreditar em uma disponibilidade total das técnicas e de seu potencial para indivíduos ou coletivos supostamente livres, esclarecidos e racionais seria nutrir-se de ilusões. Muitas vezes, enquanto discutimos sobre os possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar já se impuseram. Antes de nossa conscientização, a dinâmica coletiva escavou seus atratores. Quando finalmente prestamos atenção, é demasiado tarde… Enquanto ainda questionamos, outras tecnologias emergem na fronteira nebulosa onde são inventadas as ideias, as coisas e as práticas. Elas ainda estão invisíveis, talvez prestes a desaparecer, talvez fadadas ao sucesso. Nestas zonas de indeterminação onde o futuro é decidido, grupos de criadores marginais, apaixonados, empreendedores audaciosos tentam, com todas as suas forças, direcionar o devir. (LÉVY, 1999, p.26-27)
Cabe considerar, também, que as tecnologias digitais em rede são muitas, não apenas as atuais máquinas de ensinar instrução; são também meios para conversação, autoria, colaboração, interatividade, pesquisa e projeto que potencializam outras práticas didático-pedagógicas, tanto no remoto, quanto no presencial ou no híbrido (PIMENTEL; CARVALHO, 2020b). Quais tecnologias escolher e como utiliza-las, é uma opção – por isso é tão importante produzirmos reflexões como as que estamos aqui apresentando neste texto.
Por fim, a tecnologia só pode ser bem compreendida dentro da cultura em que foi desenvolvida e adotada. Se há novas e atualizadas versões da máquina de ensinar instruções, é porque há um desejo pulsante pela automação do ensino instrucionista, por vezes colocado em substituição ao processo formativo. Os desenvolvimentos tecnológicos aqui discutidos também foram respaldados por desenvolvimentos teóricos no campo da Psicologia da Aprendizagem, por desenvolvimentos na técnica de ensinar no campo da Educação, por ações políticas, por interesses econômicos… Esses desenvolvimentos tecnológicos não estão apartados de nossa cultura e de nosso sistema educacional, estão sendo apropriados por gestores, professores e alunos, que por sua vez demandam novos desenvolvimentos. Essa compreensão nos leva a afirmar que o movimento tecnicista que bem caracterizou as décadas de 1960 e 1970 se reconfigurou no neotecnicismo na década de 1990 e 2000, e agora se desdobrou no que aqui denominamos “cibertecnicismo”, uma pedagogia instrucionista, massiva, algoritmizada-automatizada, plataformizada, gamificada, dataficada, uberizada… – mas essa história está na parte 2 deste texto, sobre a cultura do ensino instrucionista.
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Como citar este artigo:
PIMENTEL, Mariano; CARVALHO, Felipe da Silva Ponte. Instrução (re)programada, máquinas (digitais em rede) de ensinar e a pedagogia (ciber)tecnicista. SBC Horizontes, jul. 2021. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/06/02/maquinas-de-ensinar>. Acesso em: DD mês. AAAA.
Mariano Pimentel é doutor em Informática, professor da UNIRIO, autor dos livros Sistemas Colaborativos (Prêmio Jabuti, 2011), Do email ao Facebook (2014), Metodologia de Informática na Educação (2021) e Informática na Educação (2021). Realiza pesquisas em Sistemas de Informação, Informática na Educação e Sistemas Colaborativos.
Currículo Lattes
Felipe Carvalho é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação ProPEd/UERJ, membro do Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura (GPDOC) e do Grupo de Estudos de Gênero e Sexualidade em Interseccionalidades na Educação e na Saúde (GENI).
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