Ensino remoto na Educação Superior: desafios e conquistas em tempos de pandemia
Por Alessandra Rodrigues
A Educação a Distância (EaD) mediatizada pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) não é mais uma novidade e há tempos vem sendo utilizada por instituições públicas e privadas em cursos de graduação e pós-graduação. A EaD apresenta, certamente, prós e contras, assim como o ensino presencial. Se, de um lado, temos maior flexibilidade de tempo, ampliação do alcance geográfico proporcionado pelas tecnologias, mais autonomia discente; por outro, temos as altas taxas de evasão, o frequente sentimento de solidão dos discentes, a preocupação com a manutenção da qualidade, a apreensão associada à avaliação e, é claro, as impossibilidades de acesso ligadas às enormes diferenças socioeconômicas entre a população brasileira.
Mas desde que a pandemia de COVID-19 chegou ao Brasil, as discussões sobre EaD e ensino remoto têm ocupado a cena e recebido maior destaque na área da educação. Nessa direção, a primeira coisa importante que precisamos registrar é a diferença entre EaD e atividades remotas pela internet. Na EaD, desde o planejamento até a execução de um curso ou de uma disciplina, há um modelo subjacente de educação que ampara as escolhas pedagógicas e organiza os processos de ensino e de aprendizagem. Existem concepções teóricas, fundamentos metodológicos e especificidades que sustentam, teórica e praticamente, essa modalidade.
Feita a diferenciação, o fato é que, frente à impossibilidade de realização de aulas presenciais, as instituições de educação que atendem aos diferentes níveis de ensino (Básico ou Superior) se viram diante de um impasse: suspender as atividades ou mantê-las, na medida do possível, remotamente? Desde então, as perguntas que há tempos inquietam docentes e discentes acerca da EaD passaram a fazer parte das conversas e das reflexões de professores e estudantes que antes tinham como única experiência de educação formal a modalidade presencial. Talvez daí decorra parte da confusão conceitual que hoje estamos vendo entre EaD e ensino remoto.
Nesse contexto, este artigo apresenta uma reflexão, desde a perspectiva educacional e formativa, sobre a experiência (ainda em andamento) de continuidade das atividades acadêmicas remotamente em uma universidade federal brasileira. Cabe informar que, de acordo com dados do Ministério da Educação (MEC), de 21 de maio de 2020, das 69 universidade federais brasileiras, 56 estavam com as atividades acadêmicas de graduação totalmente suspensas e 13 estavam com atividades na graduação funcionando parcialmente ou totalmente.
Na universidade de que trata este texto, as aulas foram suspensas por três semanas em 16 de março e retomadas a partir de 04 de abril por meio do que foi denominado Regime de Tratamento Excepcional (RTE) e que já era previsto como uma possibilidade na Norma de Graduação da instituição. Nesse regime, todas as disciplinas teóricas passaram a ser ministradas remotamente por meio do sistema institucional ou por meio de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) como o Moodle e o Google Classroom, conforme a preferência do docente.
Desde então, inúmeros têm sido os desafios: o suporte tecnológico aos discentes para acompanhamento das atividades remotas, a normatização das ações e dos procedimentos, a formação dos professores. Os dois primeiros desafios estão sendo atendidos pela instituição por meio do empréstimo de equipamentos e de editais de bolsas para pacotes de dados ofertados aos estudantes com essas necessidades; e também pelo regramento institucional dado pelas resoluções e normas que orientam o trabalho com as disciplinas remotas. Nosso olhar neste texto se voltará mais especificamente aos docentes.
Para atender as demandas mais emergenciais dos professores, a primeira ação do Centro de Educação da instituição foi criar e disponibilizar em seu site uma série de tutoriais de recursos educacionais gratuitos para produção de conteúdo virtual. Conforme aponta Costa (2013), o objetivo maior da formação de professores para o uso pedagógico das TDIC não pode estar limitado ao domínio instrumental dos recursos tecnológicos. Entretanto, este domínio é essencial como primeiro passo. É preciso aprender a utilizar as ferramentas antes de aplicá-las com finalidades educacionais.
Um estudo longitudinal do Centro Regional de Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC) realizado em escolas públicas das cinco regiões do Brasil mostra que uma parcela significativa dos professores dessas escolas faz uso das TDIC como recurso para a preparação das aulas e como apoio para a exposição em sala (CETIC.BR, 2016). Ou seja, a utilização pedagógica das tecnologias ainda não se centra na crítica, na contextualização e na integração das tecnologias ao currículo.
Esses resultados não estão distantes do que também ocorre em grande parte das instituições de ensino superior e na instituição da qual tratamos neste artigo. Habituados, em sua maioria, às práticas mais tradicionais de ensino, como a aula expositiva com auxílio de quadro e giz (ou pincel) ou projetor de slides, os docentes se viram diante do desafio de preparar e apresentar os conteúdos utilizando outros recursos, outras linguagens e em menor tempo.
Além do exercício de aprender novas formas de ensinar e de colocar em movimento diferentes conteúdos curriculares com a mediação tecnológica para que os estudantes aprendam, talvez a questão do tempo tenha sido a primeira reflexão promovida pela impossibilidade da aula presencial: foi preciso (e ainda está sendo necessário) rever a relação com os “tempos de aula” (ARROYO, 2013). Se no ensino presencial uma aula expositiva de 50 minutos (quase sempre mais que isso) já tende a ser cansativa, no ensino remoto isso é ainda menos produtivo.
No sentido de auxiliar os professores da instituição, os tutoriais continuam sendo disponibilizados quinzenalmente no site do Centro de Educação e apresentam diferentes recursos (que permitem abarcar múltiplas linguagens). Nesse continuum, as ferramentas que agora passam a ser foco dos tutoriais são voltadas não somente à apresentação de conteúdos mas também à realização de tarefas e atividades pelos discentes, no sentido de que as TDIC possam contribuir para colocá-los em uma posição mais ativa em relação ao conteúdo e à construção do conhecimento, assim como ressignificar o papel do docente nos processos de ensino e aprendizagem, como colocam Carmo e Franco (2019).
Como passo seguinte, buscando ampliar a capacitação e aprofundar as discussões sobre o ensino remoto na instituição, foi proposta uma Semana de Formação aos docentes. Para incentivar a participação dos professores, a semana foi destinada à revisão de conteúdos e colocação de atividades em dia pelos estudantes. Os assuntos abordados nesta semana foram, em parte, oriundos das dificuldades relatadas por docentes e discentes em questionário aplicado pela Pró-Reitoria de Graduação da universidade na terceira semana do regime de atividades acadêmicas remotas. Os pontos levantados no questionário foram agrupados e organizados em torno de quatro grandes temas: 1) Organização e Planejamento de Disciplinas Remotas; 2) Autonomia Discente e Mediação Pedagógica; 3) Avaliação em Cursos Remotos e; 4) Metodologias Específicas e Tecnologias.
Talvez o maior desafio enfrentado no que tange à formação continuada de professores universitários para o uso pedagógico das TDIC seja, depois de incentivar a adesão voluntária a essa formação, levá-los a deslocarem o foco de suas ações pedagógicas da tecnologia em si mesma para os objetivos de aprendizagem que estruturam seu fazer docente. São esses objetivos formativos que devem orientar a escolha das tecnologias e não o contrário. Dessa forma, as TDIC passam a ser utilizadas como “ferramentas cognitivas” (JONASSEN, 2007).
A Semana de Formação pôde ser acompanhada de duas formas pelos docentes: por meio da página especialmente criada para o RTE no site do Centro de Educação ou por meio de turma virtual criada no AVA Moodle, na qual se inscreveram 81 docentes. Entendemos que essa dupla possibilidade de acesso aos materiais encorajaria mesmo os docentes mais arredios ao trabalho com disciplinas remotas a acessarem os conteúdos sem a cobrança de ter que realizar um “curso”. Ao mesmo tempo, possibilitaria aos professores com perfil mais colaborativo a oportunidade de estar em um ambiente que possibilitasse o diálogo e a troca de experiências por meio do Fórum de Discussão criado no Moodle. Para apresentação dos materiais, um cuidado importante foi tomado: utilizar recursos midiáticos variados e propor também materiais complementares aos docentes, como artigos científicos e cursos rápidos de acesso gratuito.
O Gráfico a seguir mostra o aumento significativo no número de usuários acessando a página do Centro de Educação durante a Semana de Formação, que ocorreu de 04 a 09 de maio, e uma tendência à manutenção de índices de acesso mais altos após a formação, se comparados ao mês de abril – o que pode indicar um movimento dos docentes de buscar materiais e informações sobre o RTE e o ensino remoto a fim de melhorar sua atuação.
Ainda de acordo com os dados coletados pelo Google Analytics, o site – que foi criado e apresentado à comunidade acadêmica em 04 de abril de 2020, coincidindo com o início do RTE – tem 740 usuários ativos, com uma média de 77 usuários ativos por dia e mais de mil e quinhentos acessos às suas sessões desde sua criação. As sessões mais visitadas, além da página inicial, são a dedicada ao RTE e a sessão dedicada aos tutoriais de recursos educacionais.
A Semana de Formação foi encerrada com um encontro síncrono realizado via plataforma virtual para compartilhar impressões sobre a semana e ideias para continuidade da formação docente na universidade. Participaram deste encontro 69 professores. Apesar de esse número representar pouco menos de 14% do total de 509 docentes da instituição, a adesão foi muito maior do que em situações de formação promovidas pelo Centro de Educação antes da pandemia – quando a média de participantes era de 15 docentes.
Para além dos números, os depoimentos dos professores e professoras no encontro remetem à importância de momentos de formação e compartilhamento; ao auxílio conseguido por meio dos tutoriais para preparação das aulas remotas; às reflexões e replanejamentos já iniciados em função das leituras e dos conteúdos disponibilizados na Semana de Formação. Do ponto de vista das dificuldades enfrentadas pelos docentes no trabalho com disciplinas remotas, três questões se sobressaem como mostra a figura abaixo.
Entendemos que as duas primeiras dificuldades decorrem, em grande parte, da própria ausência de formação pedagógica (inicial e continuada) da maioria dos docentes da instituição, mas também é oriunda da reviravolta provocada pela adoção do RTE durante a pandemia. Diante de uma situação totalmente ou quase totalmente nova (o ensino remoto) e da percepção inquestionável de que as mesmas práticas tradicionais adotadas no ensino presencial não surtiam os efeitos esperados, as avaliações exigiam olhares diferentes e os papéis de professores e alunos não estavam geograficamente delimitados por mesas, quadro negro e carteiras; os docentes se viram também atravessados pelas dúvidas e reflexões sobre seu fazer pedagógico.
A terceira dificuldade coloca em pauta não somente as ideias do que, para que, por que e como avaliar; mas a própria estrutura do que sejam os processos de ensino e de aprendizagem. Em uma instituição tradicionalmente muito ligada às áreas exatas e às engenharias, um dos grandes desafios dos docentes no RTE é repensar a avaliação deixando de vê-la unicamente como a “prova” em seu sentido mais clássico.
Para aprofundar as discussões a esse respeito e dar continuidade à formação dos professores, o Centro de Educação promoveu um Webinar sobre “Avaliação em Disciplinas Remotas”. O evento contou com a participação de 267 espectadores, segundo dados da plataforma de transmissão por streaming utilizada para realização do evento. Ainda que os participantes não necessariamente fossem docentes da instituição (já que o acesso foi aberto), supomos que a maior parte era; já que a divulgação do evento foi predominantemente interna. O número de participantes pode ser registrado com mais um dos efeitos positivos do processo de formação de professores decorrente e voltado ao ensino remoto por conta da pandemia.
As aulas remotas continuarão na instituição até o encerramento do primeiro semestre letivo de 2020 e, a depender das condições sanitárias, podem reiniciar em agosto nesse formato. Os desafios continuam sendo inúmeros, mas certamente a educação e o mundo pós-pandemia não serão mais os mesmos. Já temos visto docentes que eram reticentes quanto ao uso pedagógico das tecnologias tendo posturas mais abertas e enxergando possibilidades positivas de mudança e ressignificação de suas práticas.
A visão das TDIC como soluções salvacionistas para os dilemas da educação está longe de ser correta, mas certamente elas podem indicar caminhos possíveis para práticas mais colaborativas e relações mais horizontais entre professores e alunos no Ensino Superior – tanto neste momento pandêmico, como quando tudo passar e iniciarmos o que muito vêm chamando de “ o novo normal”. Afinal, como há tempos já nos ensinou Paulo Freire (1996), a educação é sempre histórica, localizada e deve contribuir para que os aprendentes (professores e alunos) assumam-se como seres sociais e históricos, como seres pensantes, transformadores, criadores e realizadores de sonhos.
Referências:
ARROYO, Miguel González. Currículo, território em disputa. 5. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2013.
BRASIL. Ministério da Educação. Coronavírus: monitoramento nas instituições de ensino. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/coronavirus/>. Acesso em: 21 maio 2020.
CARMO, Renata de Oliveira Souza; FRANCO, Aléxia Pádua. Da docência presencial à docência online: aprendizagens de professores universitários da educação a distância. Educação em Revista, v. 35, p. 1-29, 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698210399. Acesso em: 25 maio 2020.
CENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO – CETIC.BR. Educação e tecnologias no Brasil: um estudo de caso longitudinal sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação em 12 escolas públicas [livro eletrônico]. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016. Disponível em: <www.cetic.br>. Acesso em: 21 maio 2020.
COSTA, Fernando Albuquerque. O potencial transformador das TIC e a formação de professores e educadores. In: ALMEIDA, Maria Elizabeth Bianconcini; DIAS, Paulo; SILVA, Bento Duarte (Org.). Cenários de inovação para educação na sociedade digital. São Paulo: Loyola, 2013. p. 47-74.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 34. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
JONASSEN, David. Computadores, ferramentas cognitivas: desenvolver o pensamento crítico nas escolas. Porto: Editora Porto, 2007.
RODRIGUES, A. Narrativas digitais, autoria e currículo na formação de professores mediada pelas tecnologias: uma narrativa-tese. 2017. 274 f. Tese (Doutorado em Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: <tede2.pucsp.br/handle/handle/20196>. Acesso em: 25 maio 2020.
Sobre a Autora
Alessandra Rodrigues é doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em Letras, tem especialização em Língua Portuguesa e Mestrado em Educação. É professora adjunta da Universidade Federal de Itajubá (Unifei). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências desta universidade, na Linha de Educação e Tecnologias.
Como citar este artigo:
RODRIGUES, Alessandra. Ensino remoto na Educação Superior: desafios e conquistas em tempos de pandemia. SBC Horizontes, jun. 2020. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/06/17/ensino-remoto-na-educacao-superior/>. Acesso em: DD mês. AAAA.