Uma conversa séria sobre Mulheres Negras na Computação e tecnologias
Por Karen Ribeiro e Silvana Bahia
A questão da inclusão de mulheres na Computação e tecnologias só faz sentido se como “mulheres” forem consideradas, realmente, TODAS as mulheres, dos mais diversos perfis identitários, étnico-raciais, etários, de classe, de sexualidade etc. No entanto, a interseccionalidade desta discussão nem sempre acontece, o que chama a atenção, principalmente, ao analisar o aspecto racial, tendo em vista que as mulheres negras representam 27% da população brasileira.
Na força de trabalho no Brasil, mulheres e pessoas negras são apenas 1/3 das profissionais de tecnologia e inovação, segundo estudo #QuemCodaBr. Para falar mais sobre porque há tão poucas mulheres e pessoas negras na Computação e tecnologias e algumas implicações dessa disparidade, conversei com Silvana Bahia que coordena a iniciativa PretaLab.
Karen: Como surgiu a iniciativa PretaLab? Você poderia contar um pouco da história da PretaLab?
Silvana: “PretaLab é um projeto que eu coordeno dentro do Olabi, uma organização social na qual eu sou diretora. O PretaLab nasceu em 2017 dessa questão de pensar e de olhar para um público específico: as mulheres negras, porque embora o Olabi, desde o começo, tenha nascido com a missão de trabalhar pela democratização das tecnologias, a gente entendeu, depois de 3 anos de organização, que era importante ter um projeto que dialogasse com esse público.
Trabalhando no Olabi durante um ano, percebi que tinha poucas mulheres e poucas pessoas negras no campo da tecnologia, nas discussões em que eu estava fazendo parte. Então, eu queria criar alguma coisa que pudesse estimular outras mulheres também para essa discussão, desde a produção de tecnologias até as pesquisas.
As primeiras ações do PretaLab foram um levantamento para entender quem são as mulheres negras que se veem como parte da tecnologia no Brasil e uma série de vídeos com mulheres negras que já tinham um trabalho relevante na área.
O objetivo era estimular que as pesquisas também considerassem a questão de raça como um fator importante, principalmente, quando a gente olha para tecnologia. Embora, para mim, no Brasil, não tenha como a gente olhar para qualquer questão sem olhar para a questão racial. E também, inspirar outras mulheres, sobretudo, as novas gerações de mulheres negras e de meninas negras para que elas pudessem também sonhar com outros campos de possibilidades de ser e de existir.”
Karen: Por que é importante falar de representatividade negra na Computação e nas tecnologias?
Silvana: “Primeiro, porque esses espaços são completamente dominados por homens, em sua maioria. São espaços super masculinizados, em geral, e são espaços de poder. Todo mundo consome tecnologia, mas, quando a gente olha para a produção dessa tecnologia, são poucas as pessoas que estão produzindo a tecnologia e essas pessoas têm um padrão, são: homens, brancos, de classe média ou de classe alta, que sempre estudaram… Então, a questão da representatividade é importante, porque ela é o primeiro passo para a gente discutir o que de fato pode ser mudado nessas coisas, que é a questão da equidade. É muito importante falar sobre representatividade e o quanto é importante que as mulheres negras que estejam nesses espaços possam olhar para o lado e se reconhecerem. E não é só sobre ter as mulheres negras ali, é sobre como que a gente cria um ambiente para que essas mulheres se mantenham.
É importante falar sobre representatividade na Computação e nas tecnologias, porque todo esse mundo tecnológico tem ditado muito dos nossos gostos, das nossas escolhas e das políticas que estruturam o mundo. Se a Computação é pensada só “para” e “por” um tipo de pessoa, isso pode criar muitos problemas. O ideal é que possamos ter múltiplos olhares para as questões que são plurais.”
“Não é só sobre ter as mulheres negras ali, é sobre como que a gente cria um ambiente para que essas mulheres se mantenham.” – Silvana Bahia
Karen: Quais são os principais desafios enfrentados pelas mulheres negras no setor de TI?
Silvana: “Eu acredito que o desafio mais forte seja a questão da falta de acesso e de oportunidades. Por mais que hoje as pessoas fiquem muito preocupadas em querer ter o selo da diversidade, no geral, as pessoas não compreendem que a diversidade é uma coisa que não vem pronta e que é preciso fazer um investimento, um esforço, para poder trazer essas pessoas diversas e ajudar na formação dessas pessoas.
Outro desafio é a questão da representatividade, porque quando você não vê ninguém parecido com você num lugar, você não acha que você pode estar ali. Se já é um desafio ser mulher em tecnologia, para as mulheres negras acaba sendo ainda mais desafiador, porque a gente tem que lidar, não só, com o machismo, mas também, com o racismo sobreposto.”
“Se já é um desafio ser mulher em tecnologia, para as mulheres negras acaba sendo ainda mais desafiador, porque a gente tem que lidar, não só, com o machismo, mas também, com o racismo sobreposto.” – Silvana Bahia
Karen: A PretaLab publicou, em 2018, um relatório com dados sobre mulheres negras e indígenas nas áreas de tecnologia e inovação. Há ausência de dados de gênero e raciais no Brasil? Por que levantar dados sobre estas temáticas é importante?
Silvana: “No Brasil, hoje, já temos dados sobre raça e dados sobre gênero, mas no geral não temos dados cruzados de raça e de gênero, dentro dessa interseccionalidade. Levantar dados sobre essa temática é importante, porque a gente sabe que os dados orientam as políticas. Então, se a gente não tem dado sobre um determinado problema, a gente não acha que esse problema existe e não pode, sequer, começar a pensar soluções para ele.
Quando falamos que pesquisas devem considerar a questão racial e de gênero de forma interseccional, queremos dizer que as mulheres negras e as mulheres brancas não partem do mesmo lugar, principalmente, no nosso país, onde a maioria da população é negra e as mulheres negras são a base da pirâmide social. É mostrar que este problema é fundamental, para a gente possa pensar em uma solução.”
Karen: Qual o papel das tecnologias na reprodução do racismo e das estruturas de exclusão social?
Silvana: “Em geral, quando a gente pensa em tecnologia, a gente destitui a tecnologia de humanidade. A gente não se pergunta ou não pergunta para as próprias tecnologias porque elas são como são. As escolhas são feitas a partir de pessoas, a tecnologia não é uma coisa etérea que nasce do nada. Ela é pensada por pessoas, mas a gente esquece que tem pessoas engenheiras e cientistas por trás tomando decisões.
E por nós vivermos em uma sociedade que é excludente, desigual, racista e machista, essas tecnologias carregam esses comportamentos e a visão de mundo de quem as criaram. Se a gente vive em uma sociedade onde a maioria das tecnologias é produzida por um determinado tipo de pessoa, a gente está deixando de abarcar muita coisa na produção dessas tecnologias em relação à inclusão. Eu acho que as tecnologias podem sim reproduzir racismo e muita exclusão social, como no exemplo das prisões feitas por monitoramento facial no Brasil em que mais de 90% são pessoas negras.”
Karen: Como as tecnologias podem contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e equânime para mulheres negras?
Silvana: “Para que as tecnologias possam ser pensadas como uma ferramenta de transformação social é importante que a gente possa pensar na produção tecnológica de uma forma mais diversa, ou seja, mais pessoas pensando, produzindo e criticando as tecnologias. Embora a gente não saiba todo o impacto que isso tem na nossa vida, a gente já sabe que isso pode reproduzir muitos preconceitos e excluir muita gente. É um campo muito complexo, mas temos sempre que pensar que a tecnologia não é neutra e que ela carrega a visão de mundo, a bagagem, a trajetória de quem cria. É muito diferente quando uma pessoa periférica, uma pessoa negra, uma pessoa trans cria tecnologia, porque os olhares são diferentes.
Eu acho que as tecnologias podem ajudar na construção de um desejo de uma sociedade mais justa, mas eu acho que isso só acontece quando a gente olha para esse monte de aparato que a gente tem e pensa com muita vontade em ir além, de criar algo que seja mais inclusivo. Digo isto, porque a gente tem muita tecnologia hoje e a gente vê que a desigualdade não diminuiu. Então, o que faltou?
A gente vive em uma sociedade capitalista, onde o lucro e a retenção capital pautam as nossas vidas e as empresas gigantes de TI ganham dinheiro com isso, por exemplo, vendendo nossos dados. Então, uma forma de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa é trazendo mais pessoas para essa construção e para essa discussão. Mas isso, não são as tecnologias que irão fazer, é a gente que tem que fazer mesmo.”
Karen: Quais são as ações da PretaLab atualmente?
Silvana: “Sempre quando me perguntam o que é a PretaLab, eu respondo que a PretaLab é uma causa e que, dentro dessa causa, cabe muita coisa. Nesses últimos anos, a gente tem ajudado empresas e organizações da sociedade civil a compreender porque é importante ter mulheres negras nessa discussão e em como lidar com essa questão da diversidade.
Ano passado, a gente criou uma plataforma no site da PretaLab que funciona como um hub de perfis de mulheres negras profissionais de tecnologia de diferente áreas. Essa plataforma tem três objetivos: networking, contribuir para visitação do trabalho dessas mulheres e dar uma resposta para o mercado de trabalho que diz que não encontra pessoas qualificadas na área.
A gente também tem um podcast chamado Preta Pode, que a gente lançou bem no começo da pandemia. Por ser uma causa, a gente entende que pode navegar muito, desde a de criação de conteúdos a mentorias, a criação de cursos etc. A gente faz um pouquinho de cada coisa…”
Se você, assim como a Silvana e eu, acredita que as tecnologias podem ser ferramentas de transformação social e tem interesse em saber mais sobre a causa de mulheres e pessoas negras na Computação para buscar e criar soluções, confere o material separado para estimular mais esse debate.
Materiais em português:
Iniciativa PretaLab: https://www.pretalab.com/
Livro: “Comunidades, Algoritmos e Ativismos: olhares afrodiaspóricos” de Tarcízio Silva
Site do pesquisador Tarcízio Silva: Pesquisa, Métodos Digitais, Raça e Tecnologia https://tarciziosilva.com.br/blog/
Artigo: “Professoras negras na pós-graduação em Ciência da Computação: uma proposta de pesquisa”
Artigo: “A Mobilização de Resistência das Mulheres Negras na Computação e Tecnologias”
Artigo: “Materialidades Discursivas de Mulheres Negras na Computação”
Artigo: “Racismo Algorítmico em Plataformas Digitais: microagressões e discriminação em código”
Artigo: “Visão Computacional e Vieses Racializados: branquitude como padrão no aprendizado de máquina”
Artigo: “A presença da mulher negra no mercado de tecnologia”
Artigo: “Tecnologia é lugar de mulher negra, sim!”
Artigo: “Blogueiras Negras – Negras na Tecnologia”
Estudo: Levantamento revela que 90,5% dos presos por monitoramento facial no Brasil são negros
Vídeo: LIVE Visibilidades Negras: cada voz é uma raça
Evento AfroPython Brasil: https://afropythonconf.org/
Serviços de Tecnologia InfoPreta: https://infopreta.com.br/
Filme: “Estrelas Além do Tempo” (Hidden Figures, 2016)
Materiais em inglês:
Comunidade: AfroPython https://afropython.org/
Comunidade: Black Girls Code https://www.blackgirlscode.com/
Movimento: Algorithmic Justice League https://www.ajlunited.org/
Projeto: Project Include https://projectinclude.org/
Comunidade: Lesbians Who Tech (possui materiais interseccionais entre raça, gênero e sexualidade) https://lesbianswhotech.org/
Livro: “Race After Technology: Abolitionist Tools” (Ruha Benjamin, 2019)
Livro: “Algorithms of Oppression: How Search Engines Reinforce Racism” (Safiya Noble, 2018)
Livro: “Automating Inequality: How High-Tech Tools Profile, Police, and Punish the Poor” (Virginia Eubanks, 2018)
Livro: “Women of Color in Tech: A Blueprint for Inspiring and Mentoring the Next Generation of Technology Innovators” (Susanne Tedrick, 2020)
Artigo: “Black Women in Computing and Technology: Identity affirmation and Resistance”
Artigo: The Role of Familial Influences in African American Women’s Persistence in Computing.
Artigo: Using Black Music as a Bridge to Understanding Introductory Programming Concepts
Artigo: The iAAMCS Ecosystem: Retaining Blacks/African-Americans in CS PhD Programs.
Artigo: CS Motivation for Black/African American Middle School Students.
Artigo: Speaking Truth to Power: Exploring the Intersectional Experiences of Black Women in Computing.
Artigo: Not Just Black and Not Just a Woman: Black Women Belonging in Computing.
Se você conhece mais algum material interessante que não foi citado aqui,
envie por e mail para karen@ic.ufmt.br para que esta lista
possa ser atualizada.
Saiba mais sobre a PretaLab:
Site: https://www.pretalab.com/
Instagram: www.instagram.com/pretalab_
Como citar este artigo:
Ribeiro, K.; Bahia, S. Uma Conversa Séria sobre Mulheres Negras na Computação e Tecnologias. SBC Horizontes. ISSN: 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/07/06/uma-conversa-seria-sobre-mulheres-negras-na-computacao-e-tecnologias/
Sobre as autoras:
Karen Ribeiro
Colunista da SBC Horizontes, Karen é professora no Instituto de Computação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pesquisadora no Laboratório de Ambientes Virtuais Interativos (LAVI) e no Laboratório de Estudos sobre Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação (LETECE), membro do Comitê Gestor do Programa Meninas Digitais da SBC e coordenadora do projeto Meninas Digitais Mato Grosso.
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Silvana Bahia
Silvana Bahia é co-diretora do Olabi, organização social com foco em inovação, tecnologia e diversidade, por onde coordena a PretaLab e outras iniciativas. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia da Informação e da Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ, mestre em Cultura e Territorialidades pela UFF. A primeira selecionada para o programa Lauttasaari Manor Residency na Finlândia, colaborando por três meses com o projeto Anti-Racism Media Activist Alliance (ARMA)em Helsinque. Em 2019, a convite da FLUP – Festa Literária das Periferias co-dirigiu ao lado de Bruno F. Duarte o documentário Quadro Negro, sobre a trajetórias de estudantes negros na universidade . Foi facilitadora da Maratona RodAda Hacker – oficinas de empoderamento feminino em novas tecnologias, co-coordenou o plano de comunicação do filme KBELA e é colaboradora da plataforma Afroflix. Recebeu o prêmio Destaques da Cultura Digital: Inovação Social e Tecnologia, concedido pelo Centro Cultural Banco do Brasil e Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ de 2017.
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