Lado avesso

Lado avesso

Acordei com saudades. Não lembro do sonho, mas lembrei da vó. Sempre envolvida com alfinetes, fios e agulhas, costurando nossas ideias. Me ensinou a alinhavar quando menina. Eu gostava de mexer nas coisas daquele quartinho. Linhas de todas as cores. Uma infinidade de botões morava na gaveta. Pilhas da revista Manequim. Retalhos que viravam roupinhas de boneca e cinco marias de diferentes estampas. A vó e a máquina de costura estavam sempre ali, juntas, inventando moda.

Minha mãe aprendeu com a vó, a mãe dela, toda a delicadeza do entrelaçamento. Pouco se aventurou nas coisas grandes. Mas é perfeita nas coisas pequenas. Deixa um rastro quase invisível e sabe fazer desaparecer qualquer imperfeição.

Eu? Nunca aprendi a costurar. Mas aprendi a respeitar o tempo do ofício. Apreciar a qualidade do detalhe. O verso. O lado de trás. Toda a habilidade fica escondida onde ninguém vê.

Peguei um café. Tentei, mas não consegui lembrar do sonho, só da vó. Ela, sempre envolvida com linhas e agulhas. Eu, sempre no meio das letras. Me dei conta de que aprendi a costurar ideias.

Primeiro em casa, na enciclopédia. Depois na escola, entre os muitos livros da biblioteca. Do físico para o digital com a ajuda do Google. Conteúdo quase infinito ao alcance de um clique. Textos, fotos, vídeos, podcast, conteúdo em redes sociais. É muita opção.

Aprendi a respeitar o tempo do ofício. Buscar, selecionar, alinhavar os percursos possíveis, costurar. Assim como a vó, escolher entre diferentes opções, projetar, finalizar. Refinar o verso com delicadeza, como a minha mãe.

Costurar – tecidos ou ideias – leva tempo. Coisa rara hoje em dia. É mais fácil comprar na Shein. É mais fácil pedir para o chatGPT. Ou para o Gemini. Ou ainda para o Copilot. A inteligência artificial sabe tudo. É só saber pedir.

Já falei que acordei com saudades hoje, né? Lembrei da vó, da máquina de costura, das revistas. Queria pedir uma blusa inspirada em uma que vi no Instagram. Mas hoje não vai dar. O tempo é coisa rara.

Arte: Niki (@ jururuart)
Revisão: Tiago Bergenthal
Texto produzido durante o módulo Mosaico Santa Sede (@oficinasantasede & @rubempenz).

Como citar esse artigo:

BASSANI, Patrícia Scherer. Lado avesso. SBC Horizontes, 06 jan. 2025. ISSN 2175-9235. Disponível em: < https://horizontes.sbc.org.br/index.php/2025/01/lado-avesso/gt;. Acesso em: DD mês. AAAA

Patrícia Scherer Bassani é doutora em Informática na Educação, professora titular do PPG em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Universidade Feevale, na linha de pesquisa Linguagens e Tecnologias.

Currículo lattes e redes sociais

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