Cibercultura e ensino universitário: que mudanças esperar após 2020?

Cibercultura e ensino universitário: que mudanças esperar após 2020?

Por Raquel Santiago Freire e José Aires de Castro Filho
Edição: Ticianne Darin          

Delimitado pelos anos de 2001 a 2100, o século XXI é o primeiro século do terceiro milênio, segundo a Era Cristã. Já vivemos um quinto deste século e passamos por diversos acontecimentos marcantes. Transcorridos vinte anos, vimos a República Popular da China alcançar a 2ª economia mundial, a ascensão e declínio de políticas de esquerda na América Latina, ataques terroristas, guerras no Oriente Médio e recessão nos países mais emergentes do mundo, como os Estados Unidos.

De uma forma geral, o período também se caracterizou pela consolidação da globalização e da cibercultura. Mais do que nunca, estamos conectados e refletindo como as tecnologias impactam os sistemas econômicos e sociais.

Para Lévy (1999), a cibercultura é:

“o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” .

(LÉVY, 1999, p. 14)

Estamos em 2020, enfrentando as dificuldades da segunda pandemia do século. A primeira, gripe Suína (H1N1), surgiu em meados de 2009 matando aproximadamente 16 mil pessoas pelo mundo. No entanto, não foi tão impactante quanto a pandemia do novo coronavírus, ou a SARS-CoV-2, que já infectou mais de 500 mil pessoas e com registro de milhares de casos mortais.

A gravidade desta pandemia e a falta de uma vacina ou tratamento eficaz obrigou muitos países a tomarem medidas drásticas de isolamento social, levando à paralisação de atividades econômicas e trazendo mudanças de hábitos e costumes. Uma dessas medidas foi o fechamento das escolas e universidades, fazendo com que essas instituições se adaptassem rapidamente à formas de ensino por meio das tecnologias digitais.

Todas essas mudanças levantaram uma questão para as Instituições de Ensino: Como continuar as aulas durante a pandemia do coronavírus? A solução adotada pela maioria das Instituições tem sido o uso de ferramentas tecnológicas para mediar a comunicação entre professores e alunos e o acesso aos conteúdos disciplinares.

Mas essa solução significa que saímos de uma modalidade presencial para a utilização da educação a Distância (EaD) ou estaríamos usando outra modalidade de ensino? Cabe adiantar aqui que o que estamos fazendo atualmente é o que alguns autores conceituam de ensino remoto emergencial (CIEB, 2020, HODGES; MOORE; LOCKEE; TRUST; BOND, 2020) e não EaD. A seguir explicaremos suas diferenças.

As diferentes formas de apoiar o ensino na cibercultura

A EaD é uma modalidade educacional na qual os professores e alunos estão separados, física ou temporalmente, e se comunicam por meio de tecnologias da informação e comunicação. Esta modalidade é regulada por uma legislação específica (BRASIL, 2017) e pressupõe profissionais qualificados para exercer as diferentes tarefas.

Os materiais didáticos são planejados e padronizados para todas as disciplinas do curso de modo que eles fiquem armazenados em um ambiente virtual de aprendizagem (AVA) onde acontecem todas as interações. Tanto os materiais como os conteúdos são pensados para que os alunos desta modalidade possam encontrar um AVA contextualizado para ensino e aprendizagem. As interações podem ser síncronas ou assíncronas, mas sempre planejadas previamente.

O crescimento tecnológico e o conhecimento gerado pela modalidade EaD possibilitou o chamado ensino remoto, que pode ser compreendido como uso de tecnologias digitais para apoiar a aprendizagem ou flexibilizar as estratégias de ensino. Nesse caso, tem-se a adoção de elementos da EaD como estratégia metodológica e não como modalidade de ensino.

Desafios trazidos pelo Ensino Remoto Emergencial

Como já adiantamos, o que estamos vivenciando atualmente pode ser melhor descrito como ensino remoto emergencial, ou seja, uma ação emergencial em resposta a situações de crise. Esta solução apresenta diversos desafios. O primeiro deles é o acesso à tecnologia, pois envolve reconhecer que nem todos os alunos terão equipamentos como computadores, tablets ou smartphones e pacote de dados para poder assistir às aulas e realizar as atividades.

As diferenças no acesso às tecnologias são um grande desafio no ensino remoto emergencial

Outro desafio é a falta de preparo de professores para uso de tecnologias como instrumento de mediação. Formações emergenciais têm sido ofertadas para capacitar os docentes no uso de ambientes virtuais de aprendizagem, gravação e edição de vídeo, ferramentas de webconferência entre outras. No entanto, somente saber usar as ferramentas não é suficiente neste processo de mediação.

Existem importantes questões didáticas e de relações interpessoais que precisam ser consideradas, como, por exemplo:

  • Como estimular alunos e alunas em seus processos de aprendizagem?
  • Será que todas as pessoas terão condições psicológicas para continuar atividades educativas neste contexto?

Tais questões remetem à necessidade de ter um olhar mais atento às dificuldades que os estudantes possam estar enfrentando. Por isso, é importante reforçar estratégias de comunicação e reconhecer o estar junto docente neste momento em que estamos distantes fisicamente (VALENTE, 2002) ou mesmo pensar em novas concepções de aprendizagem em rede ou networked learning (NETWORKED LEARNING EDITORIAL COLLECTIVE, 2020).

Então, que mudanças esperar?

No momento em que os autores deste artigo escrevem este texto, consideramos que estamos no meio da crise sanitária e política. Por isso nos é desafiador pensar sobre a principal pergunta do texto: “O que esperar de mudanças no ensino universitário após a pandemia?”.

Para começar, vamos nos centrar no significado da palavra esperar, que é aquilo que traz esperança, quase que uma ação de não desistir de algo ou mesmo dos seus sinônimos que envolvem ações de aguardar, contar, confiar, acreditar, desejar. E, então? O que esperar de mudanças após a pandemia?

Um dos primeiros desafios é pensar em como dar aulas (grifo nosso) para atingir o objetivo principal do ensino que é a aprendizagem. Grifamos a expressão dar aula para contextualizar o seu significado que foi construído historicamente. Muitos de nós ainda trazemos esse pensamento tão enraizado de que precisamos dar alguma coisa aos nossos alunos.

É uma concepção tradicional de educação e ainda bastante comum no ensino superior, o qual pressupõe que o principal neste nível de ensino é o docente transmitir ou dar um conhecimento. No entanto, em um mundo cada vez mais conectado, os estudantes já não sentem motivação em assistir somente aulas expositivas, escutando sobre conteúdos sem contextualização com o mundo do trabalho ou dos quais não encontram um sentido prático (FISCHER, 2009).


No ensino tradicional, o ensino é centralizado no professor e o alunos são receptores

O uso de tecnologias muitas vezes é apontado como uma solução para os problemas de ensino. No entanto, estudiosos das teorias da educação (KENSKI, 2012, MORAN, 2012, OLIVEIRA, 2008 ) colocam que docentes precisam ir além do tecnicismo e pensar em aspectos que possam estimular uma postura mais ativa dos estudantes.

Concepções progressistas enfatizam que conhecimento não é algo transmitido, mas sim construído e que o papel dos professores é de mediação. A nossa esperança é que essas crise pela qual passamos, nos levem a pensar sobre o real significado das relações de ensino e aprendizagem no ensino superior.

Essa necessidade de usar ensino remoto emergencial favoreceu muitas discussões entre os docentes nesse ano de 2020. Para nós, planejar aula de forma remota  nos trouxe a reflexão sobre a dimensão pedagógica do trabalho docente que é o de fazer com que nossos alunos queiram aprender um conteúdo ou mesmo construam um conhecimento através de outras estratégias comumente adotadas em modelos de aulas presenciais.

Portanto, a pandemia obrigou muitas instituições e seus professores a repensarem suas metodologias de ensino. Esse momento levou muitos de nós a pensar fora do contexto de sala de aula presencial. Alguns perceberam que não é possível uma mera transposição da sala de aula presencial para encontros remotos. Por isso, uma das primeiras mudanças que se espera para o futuro é uma indagação constante sobre o sentido da universidade em termos políticos e didáticos, reconhecendo o compromisso e a finalidade desta instituição na sociedade.

Outra mudança que merece destaque é considerar os aspectos de ordem psicológica, em particular a empatia com o próximo. Após a pandemia, saberemos de muitas histórias de vida sobre o enfrentamento em relação ao vírus ou de dificuldades sociais e econômicas tanto de estudantes como de colegas próximos. Viveremos tempos de muita pressão que podem provocar ou agravar doenças mentais como depressão e ansiedade. Dessa forma, deve-se valorizar habilidades de saber olhar o próximo, de estimular o autoconhecimento,  o autocuidado, a empatia e a responsabilidade com o outro.

Um dos pontos a se considerar é o exercício da empatia

Para ajudar na superação dessas dificuldades, é fundamental reforçar a comunicação entre professores e alunos tanto de forma presencial quanto pelo uso de tecnologias. Ressalta-se também a importância de conhecer a cultura dos nossos alunos, o que envolve compreender como eles aprendem. Daí a importância de aprimorar a formação dos professores universitários, incluindo maior capacitação em ferramentas tecnológicas, de modo a fomentar a compreensão de que a sociedade e, em particular os jovens, vivem imersos em uma cultura digital.

As formações devem também abranger o conhecimento e a prática de  metodologias focadas na construção do pensamento científico, crítico e reflexivo, maior protagonismo estudantil e aprendizagem focada em conteúdos contextualizados. De forma geral, o ensino na universidade deve ser pautado em trabalhos e projetos para a vida envolvendo estímulo à autonomia, criticidade e responsabilidade. Estímulo, também, da argumentação, ou seja, formular pontos de vistas e argumentos com base em fatos, dados e informações confiáveis.

No mais, esperamos que, após a pandemia, possamos refletir o real significado e valorizar o sentido de estarmos juntos em sala de aula, seja ela real ou virtual.

Referências:

BRASIL. Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017. Regulamenta o art. 80 da Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9057.htm. Acesso em: 26/08/2020.

CIEB. Nota técnica 17: Estratégias de aprendizagem remota (ear): características e diferenciação da educação a distância (ead). https://cieb.net.br/estrategias-de-aprendizagem-remota-ear-caracteristicas-e-diferenciacao-da-educacao-a-distancia-ead/. Acesso em: 26/08/2020.

FISCHER, B. T. D. Docência no ensino superior: questões e alternativas. Educação. Porto Alegre, v. 32, n. 3, p. 311 – 315, set./dez. 2009.

HODGES, C.; MOORE, S.; LOCKEE, B.; TRUST, T.; BOND, A. The difference between emergency remote teaching and online learning. Educause Review, 27 March. https://er.educause.edu/articles/2020/3/the-difference-between-emergency-remote-teaching-and-online-learning, 2020. Acesso em: 26/08/2020.

KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação. Campinas: Editora Papirus, 2012.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

MORAN, J. M. Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas, Papirus, 19a ed., 2012.

NETWORKED LEARNING EDITORIAL COLLECTIVE (NLEC). Networked Learning: Inviting Redefinition. Networked Learning: Inviting Redefinition. Postdigit Sci Educ (2020). https://doi.org/10.1007/s42438-020-00167-8. Acesso em 26/08/2020.

OLIVEIRA, Elsa Guimarães. Aula virtual e presencial: são rivais? Papirus, 2008.

VALENTE, J. A. A espiral da aprendizagem e as tecnologias da informação e
comunicação: repensando conceitos. In: JOLY, M.C. (Ed.) Tecnologia no ensino: implicações para a aprendizagem. São Paulo: Casa do Psicólogo, p.15-37, 2002

http://servicosweb.cnpq.br/wspessoa/servletrecuperafoto?tipo=1&id=K4718449H2Raquel Santiago Freire Possui doutorado (2011) e mestrado (2007) em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Tem graduação em Pedagogia também pela UFC (2004). É professora do Instituto UFC Virtual ensinando no curso de Bacharelado em Sistemas e Mídias Digitais da UFC e dos Cursos de Graduação a Distância do Sistema Universidade Aberta do Brasil. Trabalha na área de Metodologias e Tecnologias Aplicadas à Educação a Distância, na produção de objetos de aprendizagem e formação para a educação a distância. No Instituto UFC Virtual, coordena a Formação Continuada de Tutores a Distância e participa de projetos de pesquisa interdisciplinares que congregam as áreas de Educação, Psicologia e Tecnologia. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Tecnologia Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: educação matemática, formação de professores, conceitos matemáticos, conceitos algébricos e informática na educação.

José Aires de Castro Filho Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (1988), mestrado em Psicologia (Psicologia Cognitiva) pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e doutorado em Mathematics Education – University Of Texas At Austin (1999). Atualmente é professor Associado I da Universidade Federal do Ceará, sendo Vice-diretor e Coordenador Acadêmico do Instituto UFC Virtual. Coordena o Grupo de Pesquisa e Produção em Ambientes Interativos e Objetos de Aprendizagem (PROATIVA) e líder do Grupo de Pesquisa Tecnologias Digitais na Educação, Interação e aprendizagem. É coordenador do projeto de cooperação internacional Objetos de Aprendizagem com saliências culturais e do grupo de formação do Programa Um Computador por Aluno da Universidade Federal do Ceará. Coordena ainda a equipe de desenvolvimento do Ambiente Colaborativo SÓCRATES e o Grupo de Pesquisa de Objetos Educacionais Digitais, assim como o projeto de Cooperação em Informática Educativa. Atua principalmente nos seguintes temas: Educação a Distância, Informática Educativa e Educação Matemática.

 

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