De olho na web do futuro: o Observatório Nacional de Blockchain como infraestrutura pública de conhecimento

Por Luana Cruz, Larriza Thurler, Giulia Soares e Leandro Ciuffo
Nos ensaios reunidos no livro Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX, Jonathan Crary analisa os processos históricos que ajudam a conceber a ideia de observação, focalizando nos efeitos políticos e oferecendo pistas para compreender o atual estatuto do “observar”. Obviamente, um observador é aquele que vê. Porém, o mais importante é que o observador vê em um determinado conjunto de possibilidades, estando inscrito em um sistema de convenções e restrições. Um observador só existe inserido no contexto de relações discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais. Crary cita o estudioso napolitano Giovanni Battista della Porta, um dos inventores da câmara escura: “é preciso observar os fenômenos com olhos de lince, para que, quando a observação estiver completa, se possa começar a manipulá-los”.
Então, quem ousa observar tem a missão de causar impactos por meio do próprio ato de observação, além de geração de conhecimento, engajamento e disseminação. Esses são alguns dos princípios inspiradores para o Observatório Nacional de Blockchain, que visa contribuir com o amadurecimento do uso da tecnologia no Brasil, promovendo uma abordagem dialógica, descentralizada e baseada em pesquisa e casos práticos de uso da tecnologia. Trata-se, portanto, de um esforço para observar sistematicamente as dinâmicas emergentes do setor, produzir inteligência coletiva e fomentar uma cultura de inovação responsável e conectada à realidade brasileira.
Inspirado, também, no EU Blockchain Observatory and Forum, o Observatório busca fomentar a integração entre academia, setores público e empresarial, promovendo um ambiente colaborativo para o desenvolvimento da blockchain no país. Pretende ampliar o acesso à informação, permitindo que qualquer cidadão acompanhe e contribua para o mapeamento de aplicações, grupos de pesquisa e empresas desenvolvedoras de soluções baseadas em blockchain.
Portanto, o Observatório dedica-se, ainda, à disseminação de eventos, cursos e oportunidades na área de blockchain. Por fim, visa oferecer subsídios relevantes à formulação e avaliação de políticas públicas ou de mecanismos de fomento, por meio da disponibilização de indicadores, estudos de caso, dados de pesquisa e outras evidências qualificadas.
O Observatório tem origem no Projeto Ilíada, executado pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), no contexto do PPI-SOFTEX, sob a coordenação da Softex. O projeto é uma iniciativa para fortalecer o ecossistema de blockchain no Brasil. Organizado em três frentes de atuação, o projeto contempla: (i) a oferta de um ambiente de experimentação multiplataforma (a.k.a. testbed) para o desenvolvimento de aplicações baseadas em blockchain; (ii) o fomento a projetos de P&D em blockchain por meio de chamadas públicas e, (iii) a disseminação e apropriação do conhecimento, reconhecendo a relevância da dimensão sociotécnica da inovação. É nesse contexto que se insere a criação do Observatório Nacional de Blockchain, uma das entregas do projeto, concebido como uma plataforma pública, aberta e confiável sobre blockchain no Brasil.
Afinal, o que é um observatório?
Não há um consenso sobre o conceito de “observatório”, já que os modelos variam de acordo com a finalidade, temática e atuação, natureza e vinculação administrativa. Contudo, as iniciativas dessa natureza estão cada vez mais aderentes à promoção das boas práticas de governança, produção e análise de dados para produzir conhecimento e subsidiar a tomada de decisões.
Os observatórios são descritos como organismos auxiliares e colegiados que facilitam o acesso público a informações de qualidade, apoiando a tomada de decisões por autoridades responsáveis. Em geral, suas funções incluem a recopilação e elaboração de bases de dados, desenvolvimento de metodologias para codificação e categorização de informações, promoção da conexão entre pessoas e organizações em áreas similares, aplicação de novas ferramentas técnicas e análise de tendências e publicações. Esses observatórios desempenham um papel vital na coleta, análise e disseminação de dados, proporcionando insights valiosos para decisões informadas em diversos setores (Albornoz e Herschmann , 2006).
Diagnósticos para criação do Observatório Nacional de Blockchain
Com toda a diversidade e a criatividade que se observa na operação de observatórios, uma das características marcantes é a de divulgação de informações. Por isso, partiu-se em busca de planejar a estruturação de conteúdo do Observatório considerando que as principais atividades devem envolver: coletar e estruturar (dados e informações em sistemas e bases de dados); investigar e analisar; produzir e utilizar indicadores; monitorar e acompanhar; estabelecer e articular redes de parcerias; informar e divulgar (Soares, Forneda, Prado, 2018).
O processo de concepção do Observatório teve como ponto de partida um levantamento sistemático de 12 observatórios nacionais e internacionais, analisados segundo seus eixos de conteúdo, estratégias de curadoria, presença em redes sociais e recursos de visualização de dados. Esse exercício permitiu identificar três grandes modelos operacionais: (i) agregadores de iniciativas, (ii) curadores de notícias e (iii) geradores de indicadores (Ciuffo et al., 2024). Esses três pilares são o alicerce do Observatório Nacional de Blockchain e, além do benchmarking, foram realizados diagnósticos de público, definição de eixos de monitoramento, modelagem relacional da base de dados, a fim de subsidiar o desenvolvimento tecnológico da plataforma web.
A inteligência de dados por trás do Observatório Nacional de Blockchain
O núcleo informacional do Observatório é sua base de dados relacional, estruturada em linhas e colunas inter-relacionadas, alimentada continuamente. A modelagem dos dados partiu de uma taxonomia construída a partir da análise do corpus empírico e de diretrizes do próprio Projeto Ilíada, possibilitando múltiplas entradas e cruzamentos. O Observatório é estruturado como uma plataforma de inteligência que combina curadoria humana, automação e design informacional.
A coleta ocorre em fontes abertas como o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, Plataforma Sucupira, bases da Fapesp, e-MEC, portais de eventos, plataformas de chamadas públicas, e associações de startups. Complementam-se ferramentas de monitoramento automatizado (Google Alerts e Inoreader), web scraping, parcerias institucionais e formulário participativo. A categorização dos dados permite alimentar seções como mapa, casos de uso, notícias, calendário, conhecimento (oportunidades e entrevistas) (Soares et al., 2025).
Figura 1 – Mapa de iniciativas . Fonte: Observatório Nacional de Blockchain
A seção indicadores apresenta um panorama da produção científica e dos pesquisadores que atuam com blockchain no Brasil. Ela foi desenvolvida em parceria com o BrCris (Ecossistema de Informação da Pesquisa Científica Brasileira), do Ibict, que utiliza fontes abertas como o OpenAlex e o SBC OpenLib – SOL para reunir, certificar e visualizar dados sobre publicações científicas (metodologia na Figura 1). O mapeamento realizado na publicação Um panorama da pesquisa em blockchain no Brasil foi um importante insumo para a construção desta seção. Além disso, a construção do painel foi baseada em estratégias de busca e análise. O processo incluiu filtros qualitativos e uso de descritores específicos, resultando em uma base de dados visualizada por meio do Kibana, ferramenta de código aberto. A seção está em constante evolução, com possibilidade de incorporar novas fontes e tipos de documentos.
Figura 2 – Metodologia para construção do painel da seção Indicadores. Fonte: BrCris
Comunidade e práticas de engajamento
Além da função informacional, de disseminação, o Observatório é também um dispositivo de engajamento. Uma Comunidade de Especialistas será criada, com estrutura de governança, critérios de adesão e oferta de reconhecimento simbólico por meio de medalhas digitais em blockchain.
Outro vetor de engajamento tem sido a realização de entrevistas com os autores dos artigos científicos mais citados sobre blockchain no Brasil. A seleção foi realizada com base em análise bibliométrica no Google Scholar e deu origem a uma série de entrevistas. Esses conteúdos têm dupla função: alimentar o banco de conhecimento e produzir narrativas qualificadas sobre o estado da arte da tecnologia no país. Eles são publicados no site do Observatório e na página no LinkedIn, ampliando o alcance desse conhecimento.
Mais do que mapear o que já está em curso, o Observatório Nacional de Blockchain se propõe a influenciar os rumos da tecnologia no país. Ao combinar curadoria ativa, infraestrutura de dados abertos e estratégias de engajamento, oferece um modelo replicável para outras áreas tecnológicas.
Geração e disseminação de conhecimento
O Observatório Nacional de Blockchain é, também, resultado das discussões promovidas pelo Comitê Técnico de Blockchain (CT-Blockchain) da RNP, com idealização da pesquisadora Fabíola Greve (UFBA). Ultrapassando os limites do debate acadêmico, o Observatório se propõe a integrar pesquisadores, professores, servidores públicos, funcionários de empresas privadas, desenvolvedores de sistemas e estudantes de pós-graduação. Ao adotar uma perspectiva dialógica da comunicação científica, como propõem Bucchi e Trench (2021), visa promover a conversação social sobre blockchain, contribuindo para a construção coletiva de conhecimento e para a inovação responsável no ecossistema tecnológico brasileiro.
Para alguns autores, um novo cenário para a produção e apropriação do conhecimento começaria a se delinear a partir da imbricação entre ciência, tecnologia e mercado, o que levaria a um novo modo de organização da pesquisa e desenvolvimento (Fagundes, 2013; Fagundes & Silva Jr., 2017). Como consequência, teríamos também um novo ethos para o pesquisador, que passaria a assumir papéis diversificados, além daquele que lhe é atribuído pela comunidade acadêmica, o de produtor do conhecimento (Fagundes, 2013).
A capacidade de comunicação e articulação com ambientes de disseminação da ciência – como o Observatório Nacional de Blockchain – são habilidades exigidas do cientista neste novo cenário. Mais do que uma obrigação ou dever moral, essas habilidades são necessárias para legitimação da ciência, enquanto instituição epistêmica, e do trabalho do pesquisador (como cientista).
Referências
ALBORNOZ, Luís A.; HERSCHMANN, Micael. Os observatórios ibero-americanos de informação, comunicação e cultura: balanço de uma breve trajetória. In: E-Compós. 2006.
BUCCHI, M.; TRENCH, B. Rethinking science communication as the social conversation around science. JCOM, v. 20, n. 03, p. Y01, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.22323/2.20030401. Acesso em 17 mar. 2024.
CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
CIUFFO, Leandro, THURLER, Larriza, CRUZ, Luana, SOARES, Giulia. Relatório da atividade: A6.1 Planejamento do Observatório Nacional de Blockchain, 2024. Disponível em < https://observatorioblockchain.org.br/wp-content/uploads/2025/04/Planejamento_Observatorio.pdf>. Acesso em 14 jul. 2025.
FAGUNDES, Vanessa Oliveira. Blogs de ciência: comunicação, participação e as rachaduras na Torre de Marfim. 2013. Dissertação de Mestrado, Universidade de Campinas, Campinas, 2013.
FAGUNDES, V., & SILVA Jr, M. G. (2017). Divulgação científica: novos horizontes, reflexões e experiências jornalístico-acadêmicas desenvolvidas no projeto Minas faz Ciência. Belo Horizonte: Mazza Edições.
GONÇALVES, Glauber Dias; COUTINHO, Emanuel; FREITAS, Allan Edgard Silva; SANTOS, Renato Ferreira dos; et al. Um panorama da pesquisa em blockchain no Brasil. Horizontes, Sociedade Brasileira de Computação, 2022. Disponível em: <https://horizontes.sbc.org.br/index.php/2022/05/um-panorama-da-pesquisa-em-blockchain-no-brasil/> Acesso em: 21 jul. 2025.
SOARES, Giulia, THURLER, Larriza, CRUZ, Luana, NEVES, Pedro Henrique Pena. Relatório da atividade: A6.3. Portal web do Observatório implementado e acessível de forma aberta na web. Observatório Nacional de Blockchain, 2025. Disponível em <https://observatorioblockchain.org.br/wp-content/uploads/2025/06/OBSERVATORIO_BLOCKCHAIN_RELATORIO_Site_Implementado.pdf> Acesso em 14 jul. 2025.
SOARES, Lilian Campos; FERNEDA, Edilson; DO PRADO, Hércules Antonio. Observatórios: um levantamento do estado do conhecimento. Brazilian Journal of Information Science, v. 12, n. 3, p. 86-110, 201
Autoria
Luana Cruz é doutora e mestre em Estudo de Linguagens. É jornalista do Observatório Nacional de Blockchain, pesquisadora do INCT de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia e professora na PUC Minas. Lattes | LinkedIn
Larriza Thurler é doutora em Ciência da Informação (UFRJ/Ibict) e mestre em Comunicação (Uerj). É Coordenadora de Disseminação Científica na diretoria de Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação (DPDI) da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP). Lattes | LinkedIn
Giulia Soares é jornalista formada pela Universidade de Brasília (UnB), com atuação em comunicação institucional e jornalismo científico. Integra a equipe do Observatório Nacional de Blockchain, onde contribui para a produção de conteúdos sobre tecnologias emergentes e inovação. Lattes | LinkedIn
Leandro Ciuffo é Diretor Adjunto de Serviços para Experimentação e e-Ciência na diretoria de Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação (DPDI) da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), colaborando com a comunidade de pesquisa em projetos de e-Ciência, testbeds, blockchain, ciência aberta e repositório de dados de pesquisa. Com mestrado em Computação pela UFF (2005), trabalhou no INFN (2006-2009) em Grid Computing. Lattes | LinkedIn
Como citar essa matéria:
CRUZ, Luana; THURLER, Larriza; SOARES, Giulia; CIUFFO, Leandro. De olho na web do futuro: o Observatório Nacional de Blockchain como infraestrutura pública de conhecimento. SBC Horizontes. ISSN 2175-9235. agosto de 2025. Disponível em: <url>. Acesso em: dd mês aaaa.