Por que as mulheres acadêmicas estão produzindo menos durante a quarentena?
Por Mariana Carmin e Karen Ribeiro
Para muitas pessoas, a quarentena causada pelo covid-19 é uma oportunidade para produzir ainda mais e realizar as tarefas há tempos deixadas de lado. A resposta de muitas mulheres para essa cobrança de produtividade veio na forma de uma postagem, feita por uma mãe com filhos de três e seis anos, no twitter: “A próxima pessoa que tuítar sobre quão produtivo Isaac Newton foi durante seu tempo isolado em casa vai receber minha filha de três anos pelos correios!”. A postagem feita em tom de brincadeira rendeu muitos comentários e retuítes de outras mulheres que se identificaram com a situação (Minello, A., 2020).
Apesar do tom de humor, a postagem retrata a realidade de muitas mulheres acadêmicas durante este período de crise e os efeitos dessa realidade já começaram a ser vistos nas estatísticas de artigos publicados em revistas científicas.
A vice-editora do periódico British Journal for The Philosophy of Science se pronunciou em seu twitter, alegando que nunca viu algo parecido acontecer com a revista.
Na área de exatas também podemos observar o impacto da quarentena. O pesquisador de astrofísica Andy Casey, da Universidade de Monash, analisou o número de submissões na área de astrofísica para o ArXiv, um sistema de armazenamento e acesso a resumos eletrônicos de artigos nas áreas de física, matemática, ciência da computação e áreas relacionadas e notou uma diminuição de pelo menos 50% no número de submissões por mulheres, quando comparou os quatro primeiros meses dos anos anteriores com o os de 2020 (Kitchener, C., 2020).
Na área de Computação no Brasil, o evento XV Women in Information Technology – evento base do CSBC 2020 – precisou estender sua chamada de trabalhos por mais 15 dias além de qualquer outra chamada de evento do CSBC 2020, devido ao baixo número de submissões comparado às edições anteriores. A organização do evento adotou essa decisão por entender que a maior parte do seu público é de mulheres, que – por serem mulheres – teriam sido fortemente afetadas pela pandemia.
A hipótese para essa diminuição do número de publicações vem das jornadas extras que a maioria das mulheres assumiu durante a pandemia. Com as escolas e creches fechadas, as crianças passam o dia todo em casa e cabe às pessoas responsáveis por essas crianças fornecerem entretenimento em tempo integral, além de supervisão nas possíveis aulas online.
Além de conciliar a carreira acadêmica com o cuidado em tempo integral dos(as) filhos(as), ainda há o cuidado com a casa e a preparação de toda a alimentação para a família (Cohen, A., 2020).
O Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea) publicou um estudo com os dados de um painel do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em relação ao comportamento profissional e educacional de pais e mães antes e depois do nascimento de filhos(as). Uma das estatísticas apresentadas neste estudado diz respeito à porcentagem de mães e pais que permanecem trabalhando depois da chegada de uma criança. Enquanto a porcentagem de pais trabalhando antes e depois de terem um(a) filho(a) permanece a mesma, em torno de 89%, para as mães ocorre uma redução: antes da chegada de um(a) filho(a), aproximadamente 60,2% das mulheres trabalham e, três trimestres após o nascimento, esse número se reduz para aproximadamente 41,6% (Hecksher, M., et. al., 2020).
Os dados acima ilustram uma realidade já conhecida de nossa sociedade: mulheres carregam a maior carga quando o assunto é cuidar dos(as) filhos(as) e da casa (MELO; CASTILHO, 2009). Ou seja, as mulheres são as principais encarregadas pelo trabalho não remunerado e pelo trabalho reprodutivo, que não são reconhecidos ou valorizados socialmente, atuando em dupla jornada para a sociedade em detrimento das suas necessidades e vontades pessoais (PICCHIO, 1992). O resultado dessa realidade desigual, em tempos nos quais as pessoas estão em casa o tempo todo (quarentena), é a queda da produtividade no trabalho.
Um grupo de pesquisadoras brasileiras publicou uma carta-artigo na revista Science tratando dessa questão, na qual esclarecem que apesar de pais acadêmicos não estarem imunes aos impactos do confinamento, é geralmente as mães ficam sobrecarregadas (Staniscuaski et al., 2020). Elas fazem um alerta para que à academia esteja atenta ao impacto da COVID-19 nas mães acadêmicas.
A implicação disso é grave no âmbito acadêmico, onde a quantidade e as métricas de qualidade de publicações são usadas como critérios em concursos para cargos, contemplação em editais de pesquisa e até mesmo permanência em funções e atividades, como programas de pós-graduação.
O relato postado na The Lily ilustra a realidade da pesquisadora Einat Lev, da Universidade Columbia em Nova Iorque. Com uma criança de sete anos em casa, Lev não consegue cumprir o cronograma que estabeleceu para suas escritas devido às horas despendidas para cuidar da filha. Enquanto tenta conciliar as jornadas ainda ouve de colegas homens frases como: “Vendo pelo lado positivo, a quarentena me deu mais tempo para concentrar nas escritas“.
A discussão trazida pela revista e que gostaríamos de reforçar neste artigo é:
“Não queremos que um comitê olhe para a produção de um homem, branco, hétero e que está com sua esposa em casa e pense ‘Bem, essa pessoa conseguiu’. Este não pode ser nosso referencial”
Como informou Leslie Gonzales, professora na Universidade de Michigan, que trabalha com estratégias de ações afirmativas dentro da universidade.
Esperamos que esta discussão seja levada aos comitês e bancas avaliadoras quando a produção científica no período de quarentena for analisada. Lembrando, sempre, que este período de isolamento físico possui efeitos diferentes para as pessoas, dependendo de alguns fatores como gênero, classe e raça-etnia (Kitchener, C., 2020).
Em resumo, para que este período de quarentena não amplifique ainda mais a já existente desigualdade de gêneros no meio acadêmico, estratégias para a flexibilização dos atuais critérios de produtividade e o estabelecimento de novas formas equânimes de avaliação entre gêneros devem ser pensadas, planejadas e executadas nas avaliações realizadas nos próximos anos, para, assim, garantir que haja uma equidade no processo avaliativo dos currículos sem perpetuar a desigualdade de gêneros dentro da acadêmia.
Para discutir mais sobre este e outros tópicos relacionados à maternidade na academia, participe da LIVE organizada pelo Programa Meninas Digitais, que será realizada no dia 20/05/2020 às 17h (horário de Brasília) no instagram @meninasdigitaissbc, com as professoras Sílvia Amélia Bim (UTFPR) e Mirella Moro (UFMG).
Referências:
Hecksher, M.; Barbosa, A. L. N. H.; Costa, J. S. De antes da gravidez até a infância: Trabalho e estudo de mães e pais no painel da PNAD contínua. Boletim Mercado de Trabalho: conjuntura e análise, n. 68, 2020.
Kitchener, C., 2020. Women academics seem to be submitting fewer papers during coronavirus. ‘Never seen anything like it,’ says one editor. The Lily. Disponível em: https://www.thelily.com/women-academics-seem-to-be-submitting-fewer-papers-during-coronavirus-never-seen-anything-like-it-says-one-editor/
Minello, A., 2020. The pandemic and the female academic. Nature. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-020-01135-9?fbclid=IwAR3WkJeWVzLVm1NFtyWFmysK-bOB9kRK6ZVCrHQsYpnuRCI31qKiSzmPxSY
Cohen, A., 2020. Women’s academic journal submissions plummet amid coronavirus. Fast Company. Disponível em: https://www.fastcompany.com/90499954/womens-academic-journal-submissions-plummet-amid-coronavirus
Picchio, A. 1992. Social Reproduction: The Political Economy of the Labour Market. Cambridge University Press, 193 p.
MELO, H. P.; CASTILHO, M. 2009. Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz?. Rev. econ. contemp., Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 135-158. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-98482009000100006.
Como citar esse artigo:
Carmin, M.; Ribeiro, K. 2020. Por que as mulheres acadêmicas estão produzindo menos durante a quarentena?. SBC Horizontes. ISSN: 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/05/14/por-que-as-mulheres-academicas-estao-produzindo-menos-durante-a-quarentena?/
Sobre as autoras:
Professora no Instituto de Computação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pesquisadora no Laboratório de Ambientes Virtuais Interativos (LAVI) e no Laboratório de Estudos sobre Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação (LETECE), membro do Comitê Gestor do Programa Meninas Digitais da SBC e coordenadora do projeto Meninas Digitais Mato Grosso.
Mariana é mestranda em Informática na Universidade Federal do Paraná, no laboratório HIPES, trabalhando com arquitetura de computadores. É técnica em informática, formada pelo Instituto Federal do Paraná. Possui bacharelado em Informática Biomédica, pela Universidade Federal do Paraná, onde realizou pesquisas na área de processamento de imagens médicas, no laboratório VRI e na área de Bioinformática, no laboratório HIPES.