A sociologia das formigas e o futuro das tecnologias
Por Alysson Bolognesi Prado
Preciso começar deixando claro que o título acima contém um péssimo trocadilho. “Formigas”, no caso, faz referência a ANT, ou Actor-Network Theory, uma proposta recente da Sociologia – de pessoas – que às vezes é traduzida como TAR, Teoria Ator-Rede. Porém o próprio Bruno Latour, principal autor desta teoria, já usou o mesmo trocadilho em seus textos, pois carrega uma metáfora útil para entender sua proposta. Então continuarei com ANT. No Livro Ciência em Ação – como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora – Latour (LATOUR, 2011) mostra uma maneira diferente de entender como ciência, tecnologia e sociedade se relacionam, seguindo miopicamente as trilhas – como uma formiga – deixadas por pesquisadores e engenheiros no processo de construção de fatos científicos.
Embora comumente se pense no conhecimento científico como algo impessoal e objetivo, Latour revela que o processo de fazer ciência é intensamente social, não se restringindo apenas à convivência em grupos de pesquisa ou cofee-breaks de congressos. Interações sociais menos óbvias surgem quando se considera, por exemplo, que um requisito importante para um artigo científico ser respeitado é que tenha sido publicado após uma revisão por pares. Para isso, o autor tem que convencer os revisores de que agiu com rigor metodológico, alinhado ao paradigma vigente, e chegando a conclusões lógicas. E aí está mais uma interação social, indireta, intermediada por textos, mecanismos de envio de arquivos e comentários, editores e organizadores.
Mas para ser bem sucedido no convencimento de revisores, e posteriormente, dos leitores, outras formas menos evidentes de interação têm que acontecer: a associação com atores não-humanos, objetos e coisas. Isso é mais notável nas ciências naturais, pois na perspectiva adotada no livro, os objetos estudados ajudam o pesquisador, muitas das vezes não colaborando de bom grado, exigindo esforço – e às vezes tortura; pense nos pobres átomos no LHC. Enquanto estão sendo inventados, descobertos ou construídos, textos, amostras, e equipamentos participam ativamente, ou seja, são atores no processo de construção de fatos científicos e tecnológicos. Surge aqui um dos princípios fundamentais da Actor-Network Theory: atores humanos e não humanos devem ser tratados indistintamente num primeiro momento da análise de qualquer fenômeno social.
“(…) o impacto da tecnologia nas pessoas é o elemento central na sua continuidade, pois não há ciência e técnica virtuosas e puras e que depois são desviadas de suas existências perfeitas por “fatores sociais. (…) a criação e evolução de construções tecnológicas dependem sempre da consciência que se tem dos usos, apropriações, compreensões e traduções dados pelas pessoas.”
Latour critica a abordagem que diz ser a tradicional ao abordar tecnologia e sociedade, que é a análise separada em três camadas: pessoas se relacionando a pessoas, máquinas se ligando a máquinas, fatos científicos se ancorando a outros fatos, formado três redes independentes. Tentar empilhar estas camadas na ordem “correta” gera a eterna discussão entre determinismos cultural e tecnológico. Em vez disso, propõe compreender uma única rede heterogênea onde cientistas e engenheiros trabalham junto com máquinas, amostras, referências bibliográficas para convencer seus futuros leitores, usuários, investidores etc., a também se associarem à rede heterogênea que estão construindo.
Aplicado ao estudo do desenvolvimento de novas tecnologias, a ANT desconstrói a visão mítica de que inovações são lançadas ao mundo em um único movimento e, por força de sua robustez e da inércia original dada por seus criadores, penetra no mercado e na sociedade. Baseando-se em várias histórias reais, como a do motor Diesel, os micróbios de Pasteur, o Post It, as pesquisas do casal Curie, o VAX-11 etc., o livro Ciência em Ação traz uma maneira diferente de se olhar para como fazemos e consumimos ciência e tecnologia. Mostra que o impacto da tecnologia nas pessoas é o elemento central na sua continuidade, pois não há ciência e técnica virtuosas e puras e que depois são desviadas de suas existências perfeitas por “fatores sociais”. Para a ANT, a criação e evolução de construções tecnológicas dependem sempre da consciência que se tem dos usos, apropriações, compreensões e traduções dados pelas pessoas.
Ciência em ação – Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (LATOUR, 2011).
Referências
LATOUR, Bruno. Ciência em ação – Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Editora da Unesp. ISBN: 9788539301904. 2011.
Sobre o autor
Alysson Bolognesi Prado é Engenheiro de Computação e possui mestrado e doutorado em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas. Seus interesses de pesquisa são interação humano-computador, sistemas sociotécnicos, semiótica organizacional e actor-network theory. Atualmente é diretor de desenvolvimento de sistemas web na Unicamp .
Como citar esse artigo:
PRADO, Alysson Bolognesi. A sociologia das formigas e o futuro das tecnologias. SBC Horizontes, maio 2020. ISSN: 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/05/23/a-sociologia-das-formigas-e-o-futuro-das-tecnologias/. Acesso em: 23 maio. 2020.