A FIFA Governa o Futebol. E Quem Governa a Cibersegurança?
Belo Horizonte, 27 de Novembro de 2022
Nesses tempos de copa do mundo, ouvimos muito falar da FIFA, a federação internacional que governa o futebol, o futebol de praia e o futsal. A FIFA é responsável por promover os principais torneios internacionais de futebol da associação, notadamente a Copa do Mundo. Ela define uma série de objetivos nos Estatutos organizacionais, incluindo o crescimento internacional da associação de futebol, acompanhando e fornecendo esforços para garantir que seja acessível a todos e defendendo o jogo limpo. Embora a FIFA não estabeleça as leis do jogo, sendo essa responsabilidade do Conselho da Associação Internacional de Futebol do qual a FIFA é membro, ela aplica e reforça as regras em todas as competições. A FIFA governa o futebol!
De forma direta, a governança significa encontrar um equilíbrio entre controle e conformidade a regras e políticas, de um lado; e a entrega rápida de resultados e desempenho, de outro. Como você já deve imaginar, os interesses e objetivos desses dois lados são muitas vezes diferentes e até mesmo contraditórios e, portanto, atingir esse equilíbrio é um grande desafio. A importância crescente dos serviços da Internet para a sociedade chama cada vez mais a atenção para a definição de políticas e regulamentações na busca pelos benefícios das novas tecnologias enquanto gerenciam os riscos associados.
No escopo da Internet, o conceito de governança de uma forma mais ampla compreende o estabelecimento das cadeias de responsabilidade, a definição do processo para mensurar a sua eficácia, o estabelecimento e a divulgação de políticas para guiar a organização a atingir seus objetivos, os mecanismos de controle para garantir conformidade e a comunicação para manter todas as partes informadas. Na aplicação do conceito de governança para tecnologia da informação (TI), a governança é instanciada para a perspectiva das pessoas, processos e informação com o objetivo de guiar a forma como esses ativos apoiam e se relacionam com as necessidades dos negócios.
A governança requer uma integração mais próxima entre os dirigentes e suas equipes a fim de desenvolver habilidades, competências e responsabilidades capazes de guiar as ações das organizações, controlar os processos, aplicar os recursos de forma otimizada, suportar as tomadas de decisão em todos os níveis, além de tratar a segurança, privacidade e resiliência dos sistemas e da informação. O Fórum Econômico Mundial, através do relatório intitulado “Global Cybersecurity Outlook 2022“, reforçou esta tendência e a importância de uma governança pautada na coordenação entre os dirigentes de diferentes níveis e suas equipes no contexto de cibersegurança. Esta tendência atrai a atenção diante das mudanças na forma de trabalho e nos sistemas atuais.
Existem arcabouços de referência para governança de sistemas, por exemplo, o Control Objectives for Information and Related Technology (COBIT) e a ISO/IEC 38500, a definição do processo de governança para cada organização é desafiadora e requer atenção. Ponderação é uma palavra-chave neste contexto, esses arcabouços são gerais, desconsiderando, às vezes, a cultura organizacional, o ambiente político, social e econômico ao qual se insere. A regulamentação do meio digital sucinta uma série de discussões. Entretanto, cabe ressaltar pontos evidentes. A ampliação do uso da Internet, especialmente como ferramenta de comunicação e de interação social, trouxe à tona questões desafiadoras para a legislação cível e de consumo, ante as particularidades das relações no meio digital. Verificou-se a necessidade de regulamentar os direitos, deveres e responsabilidades no uso da rede, com atenção às peculiaridades desse ambiente virtual.
A discussão em torno da regulamentação do uso da própria Internet teve seu ápice no Brasil com a Lei 12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. As regulamentações relacionadas ao meio digital vêm se expandindo e se especializando diante da evolução das várias tecnologias relacionadas como a Inteligência Artificial, a cibersegurança e os sistemas em nuvem.
Quando se fala de segurança cibernética e segurança da informação, particularmente sobre os riscos e as vulnerabilidades em segurança, o cenário atual brasileiro merece atenção, especialmente quanto à real capacidade da Administração Pública federal de responder e tratar incidentes de segurança, tanto por parte de cada organização, individualmente, quanto por parte da rede formada pelas equipes de tratamento de incidentes e resposta a eles em redes computacionais – Equipes de Tratamento de Incidentes de Redes. Este aspecto por si é considerado um alto risco na administração pública federal, segundo a lista de alto risco na administração pública do tribunal de contas da união de 2022.
Por exemplo, algo que deveria ser básico como uma política de backup, o relatório de alto risco na adminsitração pública federal do TCU mostra que 74,6% das organizações pesquisadas por ele não possuem política de backup aprovada formalmente – documento básico, negociado entre as áreas de negócio (“donas” dos dados/sistemas) e a TI da organização, com vistas a disciplinar questões e procedimentos relacionados à execução das cópias de segurança (backups); 66% das organizações avaliadas afirmam realizar backups, apesar de implementarem mecanismos de controle de acesso físico ao local de armazenamento desses arquivos, não os armazenam criptografados, o que acarreta risco de vazamento de dados da organização, podendo causar enormes prejuízos, sobretudo se envolver informações sensíveis e/ou sigilosas; e 60,2% das organizações avaliadas não mantêm suas cópias em, ao menos, um destino não acessível remotamente, o que acarreta risco de que, em caso de ataque cibernético, os próprios arquivos dos backups acabem sendo corrompidos, excluídos e/ou criptografados pelo atacante ou malware, tornando igualmente sem efeito o processo de backup/restore da organização.
Em 2021, ao avaliar as práticas de segurança da informação no âmbito do perfil de governança e gestão de TI, o TCU também verificou que mais de 80% das organizações estão nos estágios iniciais de capacidade em gestão de continuidade institucional e de continuidade de serviços de TI. E, pior, a gestão de continuidade institucional está no estágio de capacidade inexpressivo em 62% das organizações avaliadas e continuidade de serviços de TI inexpressiva em 46% dessas organizações. O que se quer mostrar com esses dados é que mesmo políticas e governanças básicas ainda são deficitárias neste contexto brasileiro, colocando muitos dos nossos serviços em risco. É, sem dúvidas, necessário avançar rapidamente as políticas e a governança da cibersegurança.
Deixo esse texto como reflexão sobre o assunto e sobre como, quanto comunidade acadêmica, podemos contribuir nessa direção! Aguardo seus comentários: michele@dcc.ufmg.br
Eu também escrevi essas outras matérias relacionadas ao assunto, talvez você se interesse:
- Ciberguerra e a soberania nacional
- Risco Cibernético e a Arte na Cibersegurança
- Direito à Proteção de Dados e a Responsabilidade Civil: Qual a Contribuição da Sociedade Brasileira de Computação?
Boas leituras,
Michele Nogueira, D.Sc.
Professora Associada do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – nível 1D e membro titular do Conselho Nacional de Proteção dos Dados Pessoais e da Privacidade