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Consequências do que desenvolvemos

Consequências do que desenvolvemos

Por Egon Sulivan Stevani

Você se importa com as consequências do que você faz?

Pense um pouco antes de responder isso. Talvez a resposta não seja tão automática. Ao menos não deveria ser. Talvez, mas só talvez, as coisas sejam mais complexas, quiçá discutíveis. Em todo caso, tudo que fazemos traz consequências. Sejam diretas ou não, boas ou não, qualificáveis ou não, desencadeadoras de eventos ou sim! Nada como uma repercussão de eventos para despertar até àqueles que estavam dormindo em seus próprios teclados. E estamos bem atrasados para acordar, não é?!

Nossa querida computação contém muitos estereótipos, com os quais estudantes, antes mesmo de descobrirem o que é um “if-then-else”, usufruem e extraem “respostas” para escolherem seus futuros na área. Podemos lembrar de alguns desses estereótipos, como o de que é uma área “nerd” (seja lá como cada um define isso), que só tem gente que gosta de jogar, que só tem pessoas inteligentes (e mais uma vez, seja lá a forma de pensar inteligência que é elencada aqui), que é “de exatas”, que é muito difícil e que não tem que lidar com pessoas. Dentre todos, esse último estereótipo encera muito do que comecei a levantar no parágrafo anterior. Como assim não lida com pessoas? Quem usa um computador? Quem interage com um sistema erguido em zeros e uns e ifs e elses e tudo mais? Quem é o destino dos inúmeros programas, softwares, sistemas, códigos e toda sorte de artefato computacional se não as próprias pessoas? Esse tipo de pensamento é perigoso e, no mínimo, ingênuo. E o perigo desse pensamento está na possibilidade dele acobertar a responsabilidade de um ou uma desenvolvedor(a), programador(a), engenheiro(a) ou codificador(a) ao fazer um sistema. Esse pensamento também fomenta uma outra ideia, de que “dá para fazer só porque é possível”. E, em computação, fazer algo só porque se pode parece ser o comum. E isso tem consequências.

Estamos na era da informação, certo? Será mesmo? Se renomeássemos essa “era” como “Era das Redes Sociais”, alguém discordaria? Eu estou ciente que isso levanta inúmeras discussões, como a de “rede social para quem?”, porém é inegável como as redes estão influenciando a vida de todo mundo. Facebook, Instagram, Twitter, Pinterest, Youtube, Google, e muitas outras tantas plataformas, nas quais muita gente gasta horas diárias se entretendo, se viciando em dopamina, se afundando em informação, são amostras bem claras de como a criação de sistemas sem pensar em pessoas pode ser prejudicial. São exemplos do uso de ótimos algoritmos de inteligência artificial, capazes de otimizar o tempo dos usuários online, custando apenas a saúde mental das pessoas, algumas democracias ao redor do globo e os alicerces da sociedade. Exemplos irresponsáveis do que pode ser feito só porque se pode fazer.

Para falar desse assunto diretamente, temos documentários, como o “The Social Dilemma” da Netflix, e alguns livros também, como o “10 argumentos para você deletar agora suas redes sociais”, de Jaron Lanier. Esse livro é bastante incrível e fala por si só de uma forma bastante agradável a quem está na área da computação, academicamente ou não. Contudo não é esse o livro de minha recomendação. Para pensar um assunto tão complicado e importante, acho crucial recorrer à literatura. É a literatura que retrata a sociedade, abstraindo o próprio mundo e traz possibilidades de discutir o que permeia as entrelinhas da nossa realidade narrada. O livro que quero recomendar para pensar em consequência do que desenvolvemos, criamos e projetamos é algo mais melífluo, mais épico e bastante visceral. “Deus Máquina” (CALDELA, 2011) de Leonel Caldela.

“Deus Máquina” é o segundo livro de uma duologia (sim, é a continuação direta de O Caçador de Apóstolos e você deve ler ambos), de um autor brasileiro. A história do livro acontece em uma ilha, em um mundo imaginário que se assemelha a nossa idade média. Você descobrirá a história de Atreu, Iago e Jocasta, entrelaçada em conflitos religiosos em uma guerra nada santa.

O livro contará como uma civilização no passado avançou sua tecnologia a tal ponto que criaram uma máquina inteligente que inventa a existência de Deus. A situação desenvolve-se a tal ponto que as pessoas são contaminadas por ideias, e essas corrompem e destroem a sociedade deles (com pessoas queimando livros e retrocessos ao pensamento científico daquele mundo).

O mundo antigo ruiu, a igreja sobreviveu e muitas coisas aconteceram. O cenário é distópico, as relações humanas são cruas, a ação é de tirar o fôlego e a vilania é irritante. Certamente uma leitura arrebatadora, a qual eu tenho o prazer de recomendar. ;]

E assim que terminar a leitura e sentir-se órfão de um bom livro, será um ótimo momento para refletir como as realidades no livro não estão distantes das nossas. A sociedade esclarecida que para de pensar por si mesma e automatiza as decisões. As pessoas que se sentiam seguras, achando que as coisas não eram tão graves e que tudo bem, até que é tarde demais. A noção de que ideias podem contaminar e porque certos pensamentos são perigosos. E como o mundo é cruel, injusto e laborioso de viver. Tudo isso em um ambiente de fantasia, muito familiar aos nerds-gamers-estudantes de computação (ou não, mas vamos fingir que o estereótipo é a realidade por mais algumas linhas). Certamente bem mais digesto do que um livro que documenta como nosso mundo está assustador e como as pessoas estão extraindo o que há de pior das outras, através de uma interface sem ética. Por fim, desejo-lhe ótimas leituras. E lembre-se: Nada no céu.

Deus Máquina.

Referências

CALDELA, Leonel. Deus Máquina. Editora Jambô. 2011.

Sobre o autor

Egon Sulivan Stevani

Egon Sulivan Stevani é Biomédico pela Faculdades Pequeno Príncipe (FPP) e graduando em Bacharelado em Sistemas de Informação pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) em Curitiba, Paraná. Atualmente, é  estagiário na Vision , uma vertical da Viasoft,  trabalhando com visão computacional para a análise de dados de movimentação de pessoas. Tem interesse nas áreas de reconhecimento de padrões, processamento de imagens e ciência de dados. Egon também é cozinheiro, adora escrever e desenhar.

Como citar esse artigo:
STEVANI, Egon Sulivan. Consequências do que desenvolvemos. SBC Horizontes. 2020. ISSN: 2175-9235.  http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/12/consequencias-do-que-desenvolvemos/ Acesso em: 1 dezembro. 2020.

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