A cultura do cancelamento no Brasil: Uma expressão da descrença no estado de direito?

A cultura do cancelamento no Brasil: Uma expressão da descrença no estado de direito?

por Kate de Oliveira Moura Surini e Ester Jerônimo de Andrade

(Especial GEDI)

O desenvolvimento e a popularização da internet, em escala global, propiciaram um cenário de grande volume, velocidade e variedade de informações que são postas à disposição dos governos, empresas e indivíduos, a qualquer momento e em qualquer lugar.

Em meio a essa desordem informacional sem precedentes na história da humanidade que emerge, na segunda década do século XX, a Era da Pós-Verdade, a qual tem como característica marcante a despreocupação dos indivíduos sobre a veracidade daquilo que propagam e cujas decisões baseiam-se na subjetividade de apelos emocionais e não em dados científicos ou objetivos. 

De acordo com pesquisa realizada em 2019 pela empresa GlobalWebIndex, no cenário global, o Brasil é o segundo colocado do ranking dos países que mais passam tempo nas redes sociais, chegando a passar aproximadamente três horas e quarenta e cinco minutos por dia conectados, apesar de ainda haver uma parcela da população que não usufrui de acesso à internet.

Portanto, a internet é uma grande troca, o que vem de fora molda o que está dentro dela, e vice versa, sendo um fator que se move juntamente com o social, afetando como aglutinador de posicionamentos comuns, ditando muitas vezes o que é politicamente correto e o que é politicamente errado.

Desse modo, percebe-se que nas redes há uma potencialização na repercussão de certos assuntos, sendo a internet além de entretenimento, também um vetor de formação de opiniões e posicionamentos, envolvendo até o consumo de publicidade e compras online. 

A cultura do cancelamento, no inglês cancel culture, é a expressão que ganhou notoriedade em 2019, sendo eleita como termo do ano pelo Macquarie Dictionary, famoso dicionário australiano que analisa anualmente as expressões em alta relacionadas ao comportamento humano com ajuda de linguistas e teóricos especialistas. 

Segundo o Macquarie Dictionary, a cultura do cancelamento é “um termo que captura um aspecto importante do estilo de vida deste ano. Uma atitude tão persuasiva que ganhou seu próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa”.

Tal expressão é caracterizada por um comportamento em massa movido pelas redes, sendo uma onda que motiva pessoas a aplicarem uma sanção social em decorrência de algum caso emblemático que desagrade esses indivíduos, que como resposta se unem para defender um ideal comum, num senso de justiça atrelado a punição centralizada em suas mãos e não no poder de punir do Estado (HONDA; SILVA, 2020).

Em que pese não se saber especificamente a origem do termo, esse se popularizou em 2017 (SILVA, 2021, p. 95) quando a atriz Alyssa Milano, através de uma publicação no seu twitter, pediu para que todas as pessoas que já sofreram assédio sexual usassem a hashtag #MeToo (“Eu também”, em tradução livre). Incialmente voltado para se denunciar a cultura de assédio sexual existente em Hollywood, denunciando grandes nomes da área de cinema por abusos e violências sexuais, o movimento viralizou e ganhou o mundo todo.

Assim, percebe-se que, no início, a cultura de cancelamento tinha forte ligação com pautas sociais, no sentido de combater estruturas opressoras de poder, à exemplo do machismo, racismo e discriminação, denunciando pautas que possivelmente não seriam ouvidas, nem atos que não seriam investigadas ou devidamente punidos.

Os popularmente “cancelados” geralmente são figuras públicas, marcas e empresas endeusadas pelas redes, onde muitas vezes acabam por cair desse pedestal ao cometerem algum ato que não está de acordo com os padrões morais dos internautas. Mas, o “cancelado” não se restringe às figuras públicas, podendo ser qualquer um.

Como consequência, a resposta social ao cancelamento nas redes é tão rápida e de um nível de mobilização tão forte que uma de suas características marcantes é a existência do boicote, que comumente se enquadra na perda de seguidores, clientes, parcerias, patrocínios, contratos, muitas vezes adentrando em crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), ameaças, agressões, além do potencial desencadeador de problemas psicoemocionais nas pessoas “canceladas”.

Ocorre que nem sempre essa pauta é verdadeira (muitas vezes ela pode ser criada, fantasiada), e nem mesmo poderia ser escudo para se perpetrar outros ilícitos, como discursos de ódio, ameaças, calúnias, etc.

Dessa forma, discute-se se a cultura do cancelamento estaria dentro do exercício da liberdade de expressão ou se seria apenas uma vingança privada, que se baseia no moralismo ideológico ou cultural para mover a indignação das pessoas, despertando nelas a necessidade de uma reação punitiva, algumas vezes não condizente à ofensa e muitas vezes alheias ao Direito (HONDA; SILVA, 2020).

O cancelamento ocorre como uma via alternativa, pois as vias formais para a obtenção da justiça muitas vezes são insuficientes ao padrão de punição que os usuários das redes sociais online esperam.

Essa aparente crença na falência do Estado muniu os usuários das redes sociais de uma sede de poder que os colocou na cadeira do magistrado por meio dos seus celulares: um verdadeiro Tribunal da Internet.

Todavia, esse comportamento “cancelador” extrapola essa carência de justiça social, uma vez que não está concentrado unicamente nos casos que são passíveis de análise jurídica, pelo contrário, está atacando outras esferas da vida em sociedade, como suas vidas pessoais, relacionamentos amorosos, dentre outras esferas de interferência. 

Esse “justiceirismo” aceita a violação de direitos para coroar suas próprias vontades e opiniões, mais semelhante a uma busca por vingança e condenação. 

Entretanto, é importante compreender que a escolha da democracia exige pluralidade de ideias e pensamentos. Camuflar, ignorar e cancelar ideias e comportamentos não contribui para a construção de um debate rico, maduro, plural e profundo. Inclusive, talvez, alguns argumentos negacionistas poderiam ter sido desfeitos por um simples debate acolhedor, respeitoso e bem fundamentado. 

A liberdade de expressão é dizer tudo o que penso, sem qualquer filtro ou responsabilização? De forma alguma! No Direito, não existe um direito absoluto e irrestrito. 

Ainda que o direito à liberdade de expressão apresenta-se como uma garantia fundamental e individual, se enganam aqueles que usam dela sem a responsabilidade, pois uma vez que um discurso afeta os direitos personalísticos, ferindo a de honra de outrem, estes podem ser reparados juridicamente, uma vez que a base do ordenamento brasileiro é a dignidade da pessoa humana (PIOVESAN, 2000).

A formação do Estado de Direito tem como um de seus pressupostos o pacto social entre Estado e sociedade, com a escolha do Estado como detentor do direito de punir os cidadãos, resguardando as garantias e direitos ao acusado, permitindo, assim, um julgamento adequado e justo, e que abandonasse de uma vez por todas a vingança privada e a velha lei de Talião (“olho por olho, dente por dente”) (GALERA, 2020).

De fato, uma das razões para a cultura de cancelamento parece ser a descrença no Estado de Direito, fato que muniu os usuários das redes sociais de uma sede de “justiça” que os colocou na cadeira do magistrado por meio dos seus celulares, um verdadeiro Tribunal da Internet.

Contudo, é justamente em meio ao caos que se evidencia a importância do Estado de Direito para regulamentar os comportamentos humanos e prezar pela paz social, em que pese este instituto não ser imune a erros.

Como problemas da cultura do cancelamento, pode-se citar: i) o ataque massificado sem comprovação legal (linchamento virtual) que podem acarretar agressões virtuais ou até mesmo físicas (Tribunal da Internet); ii) a falta de observância de situações análogas por seletividade; iii) a proliferação de discurso de ódio; iv) possibilidade do “efeito rebote”, ou seja, quando o autor do ato reprovável ganha notoriedade e passa a influenciar outras pessoas a adotar o mesmo comportamento.

Nessa perspectiva, não se pode permitir que a busca pela justiça nas redes sociais coloque em risco ou ofenda valores, direitos e garantias fundamentais, encampados na nossa Lei Maior, e que dão substrato ao Estado de Direito.

Logo, apesar de alguns sustentarem que cultura do cancelamento poderia estar dentro do exercício da liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, no momento em que um grupo (cancelador) se demonstra moralmente superior a outro (cancelado) para ela pode sim ser considerado um ato ilícito aplicando ao cancelado a pena de boicote social e constrangimento público, inclusive impedindo qualquer crítica de outrem, estaria buscando usurpar o próprio poder de punir do Estado.

A partir do estudo, conclui-se que a cultura de cancelamento não é sinônimo de justiça. Em que pese sua pauta inicial estar atrelada a uma causa aparentemente nobre e bem intencionada, ela pode caracterizar-se como um comportamento maléfico e alheio ao Direito, na medida em que a partir do que se considera tolerável para aquele grupo de acusadores, promove-se um boicote geral e desproporcional direcionado a alguém, alheio ao próprio Direito.

REFERÊNCIAS

HONDA, Erica Marie Viterito; SILVA, Thays Bertocini. O “Tribunal da Internet” e os efeitos da cultura do cancelamento. Portal Migalhas, jul. 2020. Disponível em:<https://migalhas.uol.com.br/depeso/331363/o–tribunal-da-internet–e-os-efeitos-da-cultura-do-cancelamento>. Acesso em: 20 nov. 2020.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito constitucional internacional. 4 ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

GALERA, Fernanda. Cultura do cancelamento e suas consequências jurídicas. Portal Migalhas, set. 2020. Disponível em: <https://migalhas.uol.com.br/depeso/333304/cultura-do-cancelamento-e-suas-consequencias-juridicas>. Acesso em: 20 nov. 2020.

Sobre as autoras

Kate de Oliveira Moura Surini. Advogada. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora do Grupo de Estudos do Direito Público da Internet e das Inovações Tecnológicas (GEDI/UFRN). Endereço eletrônico: kateoliveiraadv@gmail.com; IG: @kateoliveiraadv

Ester Jerônimo de Andrade. Grupo de Estudos do Direito Público da Internet e das Inovações Tecnológicas (GEDI/UFRN). Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora do Endereço eletrônico: ester.andrade190500@gmail.com.

COMO CITAR ESTA MATÉRIA

MOURA, Kate de Oliveira; ANDRADE, Ester Jerônimo. A cultura do cancelamento no Brasil: uma expressão da descrença no Estado de Direito? SBC Horizontes, SBC Horizontes, Junho 2021. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2021/06/a-cultura-do-cancelamento-no-brasil-uma-expressao-da-descrenca-no-estado-de-direito/>. Acesso em:

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