A (não) classificação legal de gênero como dado pessoal sensível: Um estudo à luz da LGPD

A (não) classificação legal de gênero como dado pessoal sensível: Um estudo à luz da LGPD

por Letícia Lopes Borja.

(Especial GEDI-ERDITI2022)

Apesar do cenário de desigualdade entre homens e mulheres que permeia a atual sociedade brasileira, bem como dos diversos casos de discriminação de gênero no tratamento automatizado de dados, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), principal norma referente à regulação do tratamento de dados pessoais no Brasil, não inclui – expressamente – o “gênero” no rol de informações destinatárias de proteção especial.

Diante deste cenário, bem como das diversas possibilidades de interpretação postas pela doutrina e pela jurisprudência nacional, surge a seguinte indagação:

Dados relativos a gênero podem ser extensivamente considerados dados pessoais sensíveis à luz da LGPD?

Para responder esta pergunta, vale destaca que o gênero é um fator importante no gozo da privacidade e da proteção de dados, tendo em vista ser uma fonte de vulnerabilidade para diversos tipos de violências virtuais, desde a pornografia de vingança até o assédio cibernético. No entanto, mais do que isso, estudos já mostram que o gênero, juntamente com outros fatores como etnia, idade e estruturas políticas, serve para “moldar experiências de privacidade”, tornando as mulheres vulneráveis aos efeitos do tratamento informacional (MALGIERI; FUSTER, 2021). 

A LGPD, entretanto, não apresenta nenhuma consideração específica quanto ao gênero como fonte de vulnerabilidade ou como elemento pertinente à definição de um dado como sendo sensível. 

Para compreender o tema, é importante esclarecer que a LGPD se aplica a qualquer pessoa natural ou jurídica que realize o tratamento de dados pessoais. Com isso, a lei visa proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Isso implica em dizer que a interpretação e aplicação do regulamento deve levar em conta tais objetivos, os quais incluem a não discriminação, no sentido de não permitir a realização de tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos. 

Porém, ao se referir aos “dados pessoais sensíveis”, a norma apenas lista as categorias de dados que são englobados, sem lançar mão de um conceito definido. Assim, é considerado sensível todo “dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”.

Para Portilho e Santos (2020), os dados sensíveis são aqueles que carregam a possibilidade de trazer ao seu titular qualquer tipo de discriminação, implicando maiores riscos e vulnerabilidades aos direitos e liberdades de seus titulares, razão pela qual são inseridos em uma categoria que demanda um tratamento especial por parte de seus agentes. Nesse quadro, a lei impõe obrigações diferenciadas e mais rigorosas a estes, a exemplo da limitação das bases legais para o tratamento, que praticamente se reduz às hipóteses de consentimento do titular. 

No caso da LGPD, os estudiosos divergem quanto à natureza da lista de dados sensíveis, no sentido de considerá-la como “fechada” ou “aberta”. Isto é, limitada aos dados expressamente previstos ou meramente exemplificativa. Ambas as concepções, no entanto, possuem suas desvantagens. 

Sendo a definição “fechada”, vários grupos vulneráveis se encontrariam excluídos da proteção, uma vez que informações como gênero, situação financeira e local de residência, embora passíveis de gerar discriminação, não estariam incluídas nesse conceito. Por outro lado, sendo a lista meramente exemplificativa, seria gerada insegurança jurídica aos controladores, diante da possibilidade de se considerar como sensíveis informações não previstas em lei (MARTINS, 2020).

Tendo ou não caráter “fechado”, fato é que, ao não incluir o “gênero” do titular como dado sensível, o legislador abriu margem para uma série de interpretações que propõem a consideração ou desconsideração de tal elemento como digno de proteção especial

Para Portilho e Santos (2020), por exemplo, embora não haja uma referência direta à identidade de gênero como dado sensível, a mais simples interpretação é capaz de alcançar uma expansão do rol, levando em conta a capacidade de utilização discriminatória dessa característica.

Do lado oposto, interpretações textualistas parecem ser incompatíveis à LGPD, uma vez que restringem o campo de proteção dos titulares dos dados e não servem ao propósito de garantir o cumprimento do princípio da não discriminação (FICO; NÓBREGA, 2022).

Contudo, muitos autores ainda sustentam que o gênero não deve ser considerado um dado sensível pelo fato de ser público, uma vez que se encontra em documentos acessíveis por qualquer um no Cartório de Registro Civil da Pessoa Natural. Entretanto, levando em conta a condição de intimidade associada a tais informações, é possível se discutir, inclusive, a necessidade de exposição desses elementos em documentos de identificação, mormente serem irrelevantes para a grande maioria das relações estabelecidas pela pessoa (CUNHA, 2021).

Mas quais as implicações da inclusão do elemento “gênero” na categoria de dados sensíveis?

Para começar, qualquer processamento que englobasse esta característica teria que obedecer a regras mais rígidas, reduzindo os riscos de discriminação. Mais do que isso, a elevação dos padrões de proteção poderia induzir uma redução no próprio uso desses dados. Ademais, a classificação dessas informações como sensíveis aumentaria a atenção exigida dos agentes de processamento, contribuindo para a conscientização social sobre o potencial discriminatório do uso deliberado desses dados (FICO, NÓBREGA, 2022).

Assim, são claros os motivos e os benefícios de incluir o “gênero” como destinatário de uma proteção especial dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Afinal, cabe lembrar que, diante de um mundo baseado em dados, a proteção destes importa na proteção da própria pessoa humana, sendo condição para a subsistência da dignidade de seus titulares.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do dever de especial proteção dos dados de transgêneros. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 2, n. 2, p. 213-231, 2021.

FICO, Bernardo de Souza Dantas; NOBREGA, Henrique Meng. A Lei Geral de Proteção de Dados brasileira para pessoas LGBTQIA+: identidade de gênero e orientação sexual como dados pessoais sensíveis. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 1262-1288, 2022.

MALGIERI, Gianclaudio; FUSTER, Gloria González. The vulnerable data subject: a gendered data subject?. SSRN Electronic Journal, [S.l.], p. 1-23, 2021.

MARTINS, Pedro Bastos Lobo. Categorizando dados em um contexto de Big Data: em defesa de uma abordagem funcional. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO DE DIREITO E INFORMÁTICA, 23., 2020, São Paulo. Memórias do […]. Tumburi: Cia do Ebook, 2020. p. 633-643.

PORTILHO, Silvia de Abreu Andrade; SANTOS, Lucas Valadão. O tratamento dos dados sensíveis das pessoas LGBTQIA+ na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO DO VETOR NORTE, 1., 2020, Belo Horizonte. Anais […] . Belo Horizonte: Faminas, 2020. p. 189-196.

Sobre a autora

LETÍCIA LOPES BORJA : Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro-pesquisador do Grupo de Estudos do Direito Digital Público e Direitos Humanos (GEDI). Bolsista de Iniciação Científica/CNPq no Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI). Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica In Verbis (UFRN) e da Revista Estudantil Manus Iuris (UFERSA). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6127647534294314.

Como citar esta matéria

Lopes Borja, Letícia. A (NÃO) CLASSIFICAÇÃO LEGAL DE GÊNERO COMO DADO PESSOAL SENSÍVEL: UM ESTUDO À LUZ DA LGPD SBC Horizontes, SBC Horizontes, Outubro 2022. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2022/10/a-nao-classificacao-legal-de-genero-como-dado-pessoal-sensivel-um-estudo-a-luz-da-lgpd/>. Acesso em:<data>

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