Mulheres na Computação no Brasil: histórias e memórias de Valéria Menezes

Mulheres na Computação no Brasil: histórias e memórias de Valéria Menezes

Por Alice Fonseca Finger, Aline Vieira de Mello, Amanda Meincke Melo e Clevi Elena Rapkiewicz

Apresentamos uma das primeiras mulheres negras a se formar bacharel em Informática no Brasil. Com passagem pela indústria de computadores, entre 1983 e 1987, Valéria Menezes trabalhou na COBRA (Computadores e Sistemas Brasileiros). Nesse texto são abordadas informações sobre sua família de origem, família constituída, formação escolar (desde a educação básica até a pós-graduação) e mercado de trabalho. Este texto faz parte do e-book Mulheres na Computação no Brasil: histórias e memórias que traz histórias de oito mulheres com contribuições significativas na área da Computação, com o intuito de servir de inspiração para as atuais e futuras gerações.

Valéria Menezes Bastos nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cidade na qual morou durante toda a sua vida e que ama. Filha única, seu pai era protético: “fazia sorrisos”. Sua mãe era dona de casa. Sua infância foi simples, humilde e tranquila. Ela e as primas brincavam na rua com os vizinhos, jogavam bola, peteca e pique-esconde. Não havia diferença entre meninos e meninas. Em casa, as bonecas eram suas alunas.

            Com quatro anos, Valéria entrou na escola porque queria aprender a ler e a escrever. Com seis anos, foi convidada a fazer um teste e avançou direto para o terceiro ano. Por ser a mais nova da turma e muito tímida, foi alvo de brincadeiras. Somente quando aceitou e passou a rir de tais brincadeiras, a vida escolar ficou mais fácil.

            Valéria sempre estudou em escolas públicas. Gostava muito de Matemática, Geografia e História, principalmente a anterior a Cristo. Por isso, inicialmente, pensou em fazer o curso de Egiptologia e procurar múmias. Entretanto, quando fez algumas pesquisas na escola, descobriu que esse curso estava disponível somente em Paris e, portanto, era inviável para ela. Já no ensino médio, leu uma matéria sobre Computação em uma revista sobre profissões. Essa matéria informava que o curso estava disponível na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Universidade Católica de Petrópolis (UCP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal Fluminense (UFF). Como as duas primeiras universidades são particulares, ela decidiu que estudaria muito para acessar uma das universidades públicas. No terceiro ano do ensino médio, fez um curso de Computação com uma apostila da IBM. Na época, não entendeu nada, mas tinha a convicção que iria aprender em algum momento.

            Existia cumplicidade na família para que sua formação fosse a melhor possível. Os pais não faziam pressão, mas a mãe sempre falava para que ela fizesse o melhor possível. Fez vestibular para o curso de Matemática na UFRJ, pois leu em um jornal que para fazer o curso de Computação era preciso ingressar nesse curso. Adicionalmente, ela observou que tinha mais vagas para o curso de Matemática, mas que após dois anos o curso permitia a escolha entre um de cinco cursos, incluindo Computação. Naquela época, não havia o preconceito de que mulheres não podiam fazer Computação. Sua turma de graduação tinha o mesmo número de homens e mulheres. Na sua colação de grau, havia, inclusive, um número levemente superior de mulheres.

            Logo após concluir a graduação, optou por fazer mestrado. Nessa época, trabalhava para a Fundação COPPETEC1, prestando serviço para a Petrobrás. Durante um congresso, fez uma entrevista para trabalhar na COBRA (Computadores Brasileiros SA). Foi admitida como analista de sistemas, levando os livros didáticos usados no mestrado para a empresa, e aprendeu muito aplicando a teoria na prática.

            Enquanto trabalhava na COBRA, tornou-se mãe. Assim, precisou conciliar maternidade e trabalho. Embora o filho tivesse a maior prioridade, sempre teve muito compromisso e responsabilidade com as demandas do trabalho. Destaca que o fato de a empresa ter horário fixo para entrar e sair, facilitava a sua organização como mãe. Salienta que, antes dos filhos, ela entrava no horário estipulado e não tinha horário para sair. Considera que para conciliar maternidade e trabalho soube administrar o tempo, embora tenha se sentido sobrecarregada em alguns momentos, porque não existe a mãe e a trabalhadora, existe uma mulher que deve atender as prioridades. Esse senso de responsabilidade ela tenta passar aos filhos e espera que eles o tenham quando for o momento.

            Seu trabalho na COBRA durou quatro anos. Depois alguns colegas que haviam deixado a empresa a convidaram para trabalhar no setor de Informática de uma empresa de Engenharia, a Engevix, na qual atuou por outros quatro anos. Saiu da Engevix para abrir sua própria empresa, que prestava serviço de auditoria de sistemas, ministrava cursos de ambientes operacionais, vendia máquinas e sistemas da IBM a outras empresas. Em paralelo, ela ministrou aulas na PUC-RIO durante 17 anos.

            Quando decidiu fazer doutorado, convidou uma professora da UFRJ que havia sido sua colega de graduação e mestrado para ser sua orientadora. Dada a proximidade entre elas, a amiga considerou que seria melhor ela ser orientada por outra pessoa e indicou o professor Nelson Ebecken. Valéria agradece muito a indicação, visto que ela aprendeu e continua aprendendo muito com ele.

            Depois do doutorado, fez seu primeiro concurso público para atuar no Centro Universitário Estadual da Zona Oeste (UEZO), no estado do Rio de Janeiro (RJ). No ano seguinte, quando a UFRJ abriu concurso para o preenchimento de vaga docente, ela decidiu que lá era seu lugar, já que havia feito sua graduação, mestrado e doutorado naquela instituição. No período do concurso, recebeu apoio de várias pessoas que ficaram ao seu lado e torceram por ela. Além do apoio, destaca que se esforçou muito para conseguir a vaga.

            Antes de ingressar na UFRJ, Valéria nunca havia almejado cargos de liderança porque acreditava não ter o perfil. Porém, um ano após sua posse, já estava na coordenação de curso, o que lhe exigiu novos aprendizados e jogo de cintura. Em sala de aula, ela informa que tenta passar aos estudantes todos os seus aprendizados e tirar os medos do mercado de trabalho. Percebe que o número de meninas na graduação em Computação reduziu bastante quando comparado a sua época.

            Valéria foi casada e tem dois filhos. Ela gosta de ver filmes e documentários, comer pipoca e ama fazer crochê. Sobre a divisão de tarefas em casa, ela disse ser desbalanceada. A maioria das tarefas fica com ela e às vezes ela delega. Em relação aos filhos, ela mencionou que demonstra o que deve ser feito, conversa para que eles colaborem, mas que não é uma tendência eles ajudarem.

            Sobre o preconceito, Valéria acredita que sempre existiu, mas que ela fazia e ainda faz vista grossa. Pensa que seu potencial cativou as pessoas e que isso fez com que ela fosse apoiada, inclusive por muitos homens. Ela supõe que havia diferença salarial entre homens e mulheres nos empregos por onde passou, mas que ela estava mais empolgada com o trabalho do que preocupada com o salário.

            Sobre racismo, ela também diz não ter percebido. Como tinha uma meta, e isso era mais importante, acabava por não perceber falas, olhares ou outras atitudes preconceituosas. Quando perguntada se a gente sente somente as coisas para o que está aberta, ela disse que é possível que sim, porque estava aberta a ouvir coisas interessantes, a aprender e a trabalhar cada vez mais. Os fatos que aconteceram (e foram poucos), ela não percebeu ou fingiu que não viu. Passou por cima, não fizeram a menor diferença para ela.

            No dia 12 de maio de 2021, dia da entrevista que originou este texto, Valéria completou 10 anos de trabalho na UFRJ. Ela ficou muito emocionada de falar sobre sua trajetória justamente em uma data tão significativa. Destacou que gosta de tudo em Computação (Software is beautiful!) e teve a sorte de trabalhar com tópicos interessantes que lhe permitiram aprender tanto nas diferentes empresas pelas quais passou. As transições de trabalho sempre são motivadas por oportunidades e recomenda que as pessoas as aproveitem, principalmente, porque não se sabe aonde elas irão nos levar.

Para mais informações, acesse:

Acesse o e-book Mulheres na Computação no Brasil: histórias e memórias na íntegra: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/266567  
 
Acesse a transmissão online Mulheres na Computação no Brasil: Pretas, disponível no canal YouTube do programa de extensão Programa C, em https://www.youtube.com/watch?v=uc8TPSO_2K0
Acesse a página “PretaLab”, do Projeto ENIGMA, em https://www.ufrgs.br/enigma/valeria-menezes/

Autoria:

Alice Fonseca Finger. Professora adjunta na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), onde exerce a docência no Campus Alegrete desde 2014. É Bacharela em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Mestra e Doutora em Ciência da Computação pela mesma Universidade. Participa como equipe executora das ações de extensão do Gurias na Computação, projeto parceiro do Programa Meninas Digitais da Sociedade Brasileira de Computação. É líder do grupo de pesquisa Laboratory of Intelligent Software Engineering (LabISE). A Matemática sempre foi sua matéria preferida durante o ensino fundamental e médio. Na Computação, não foi diferente: é apaixonada pelas disciplinas matemáticas e teóricas. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/2691501072064698
Aline Vieira de Mello. Professora adjunta na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), onde exerce a docência no Campus Alegrete desde 2011. É Bacharela e Mestra em Ciência da Computação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutora em Ciência da Computação pela Sorbonne Université. Coordenadora do programa de extensão Programa C e do projeto de extensão Motus – Movimento Literário Digital. Participou da concepção da ação de extensão Gurias na Computação, projeto parceiro do Programa Meninas Digitais da Sociedade Brasileira de Computação, na qual atua até hoje. Coordena o projeto de pesquisa Egress@s – coleta, disponibilização e visualização de dados. Desde pequena gostava de estudar e, mesmo sem saber ligar um computador, escolheu fazer o ensino médio técnico em informática. Teve um ótimo desempenho e se apaixonou. Considera que sua trajetória é fruto de bastante dedicação e uma dose de sorte. Optou pela docência porque queria que seu trabalho fizesse diferença na vida das pessoas. É casada e mãe da Maria Fernanda, do Henrique (in memorian) e da Elisa. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/7822927936432169
Amanda Meincke MeloAcesse a página “PretaLabAmanda Meincke Melo. Professora associada na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), onde exerce a docência no Campus Alegrete desde 2009. É Bacharela em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestra e Doutora em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É também Licenciada em Letras-Português pela UNIPAMPA. Participou da concepção da ação de extensão Gurias na Computação, projeto parceiro do Programa Meninas Digitais da Sociedade Brasileira de Computação, na qual atua até hoje. É líder do grupo de pesquisa Grupo de Estudos em Informática na Educação (GEInfoEdu), coordenadora projeto de ensino GEIHC – Grupo de Estudos em Interação Humano-Computador e do programa de extensão TRAMAS, acrônimo para Tecnologia, Responsabilidade, Autoria, Movimento, Amorosidade e Sociedade. Desde muito pequena aprendeu a gostar de Matemática e de jogos de tabuleiro. Na pré-adolescência, foi apresentada ao mundo dos jogos digitais. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/3659434826954635
Clevi Elena Rapkiewicz. Professora de Computação há mais de três décadas, em todos os níveis de ensino (educação básica, educação técnico-profissional, ensino superior e pós-graduação). Atuou em duas instituições públicas, a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Duplamente graduada (Tecnologia em Processamento de Dados pela UFRGS e Pedagogia pela UERJ), é mestra e doutora pela COPPE/UFRJ na linha de pesquisa Informática e Sociedade. Estruturou o projeto de extensão ENIGMA – Mulheres na Computação em 2014. Fundou, em 2022, o Espaço ENIGMA visando ações voltadas para visibilidade de mulheres na área de Computação. Seus pais não concluíram sequer o primário, mas sempre valorizaram o estudo. Egressa de escola pública estadual sempre viu na Educação uma forma de transformar a sociedade. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/0588660330634011
 

Como citar este artigo

FINGER, Alice Fonseca; MELLO, Aline Vieira de; MELO, Amanda Meincke; RAPKIEWICZ, Clevi Elena. Mulheres na Computação no Brasil: histórias e memórias de Valeria Menezes. SBC Horizontes, março de 2024. ISSN 2175-9235. Disponível em: https://horizontes.sbc.org.br/index.php/2024/07/mulheres-na-computacao-no-brasil-historias-e-memorias-de-valeria-menezes/ Acesso em: DD mês AAAA.

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