Pesquisadoras brasileiras: a trajetória de Cecília Mary Fischer Rubira na Engenharia de Software

Pesquisadoras brasileiras: a trajetória de Cecília Mary Fischer Rubira na Engenharia de Software
Por Raquel de Oliveira
Revisão: Prof. Alane Marie de Lima (DAINF/UTFPR-CT) e Prof. Marco Aurélio Graciotto Silva (DACOM/UTFPR-CM)

 

Esse texto foi produzido no contexto do projeto “Emíli@s – bits de representatividade: participação feminina falante e atuante na Computação” da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus Campo Mourão, em entrevista concedida pela pesquisadora em destaque nesta matéria.

Nascida em Bauru e criada em Marília, no interior de São Paulo, Cecília Mary Fischer Rubira cresceu em um ambiente familiar profundamente ligado ao meio acadêmico. Seus pais e familiares paternos eram educadores em universidades e colégios públicos, o que serviu como um incentivo para que ela pensasse em seguir os mesmos passos da sua família. Por todas as escolas que passou até o seu ensino médio, uma coisa sempre permaneceu a mesma: o seu interesse pela matemática. Sabendo disso, ao folhear com sua irmã mais velha pelos livros dos vestibulares que aconteciam em São Paulo nos anos 80, Cecília procurava por um curso que alinhasse com o seu interesse pela matéria. Foi nesses livros de vestibulares que Cecília se deparou pela primeira vez com o curso de Ciência da Computação, e foi assim que, mesmo com a pressão da família para que ela prestasse Medicina devido às suas notas altas durante o ensino médio, ela decidiu se inscrever para o curso na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 1982.

Como a própria Cecília menciona em entrevista, a escolha do curso para a sua graduação foi como um salto no escuro para a época, pois a área da Computação ainda era muito nova e desconhecida. Foi em 1969, na UNICAMP, que o primeiro curso de Bacharelado em Ciência da Computação foi criado no Brasil, tendo a sua primeira turma de formandos em 1971. Tal curso serviu de modelo para inúmeros outros programas de graduação em todo país [1]. Por ser um curso pouco conhecido, antes de iniciar a sua graduação, Cecília decidiu fazer um curso de programação de COBOL, uma linguagem orientada para o processamento de banco de dados comerciais muito utilizada durante os anos 60 e 80, porém sua experiência com o curso foi tão ruim que Cecília relata que, se tivesse se pautado na experiência que teve, não teria escolhido Computação.

Quando começou a sua graduação, a sua sala tinha 70 pessoas, onde metade eram homens e a outra metade mulheres. Nos anos 80, ainda não existia essa questão de Computação ter um público majoritariamente masculino. Dos 70 alunos, ninguém sabia ao certo o que era ou o que esperar do curso. Mesmo após sua primeira aula, ministrada pelo professor Tadao Takahashi, responsável pela implantação e adoção da Internet no Brasil e em outros países da América Latina, o curso continuou a ser uma incógnita para os estudantes. A área de interesse de Cecília, Engenharia de Software, nem sequer era comentada. Na faculdade, os alunos estudavam sistemas operacionais e hardware, pois o curso tinha uma formação mais voltada para o que hoje entendemos como Engenharia da Computação: a grade curricular que temos atualmente nos cursos de Ciência da Computação foi incorporada nas universidades somente a partir dos anos 90.

Na universidade, os alunos eram ensinados a programar em COBOL e em linguagens parecidas com LISP. Cecília, particularmente, gostava de programar em Assembly, devido aos desafios que a linguagem trazia. Esses desafios, na visão da professora, influenciaram muito a sua maneira de programar. Isso porque, na época, os códigos escritos pelos estudantes eram colocados em cartões perfurados e rodar um programa era algo muito custoso. Para que pudesse testar os seus códigos, Cecília precisava entrar em uma fila e ainda esperar de 3 a 4 horas para que o código fosse processado. Por isso, quando escrevia um programa, ela fazia inúmeros testes de mesa e rodava o programa muitas vezes em sua cabeça antes de colocá-lo no computador, fazendo basicamente o trabalho de um compilador. Isso foi importante para que ela aprendesse a otimizar um código, identificar erros, dentre outras coisas. Todos esses ensinamentos puderam ser colocados em prática nos dois anos em que Cecília estagiou, junto aos seus colegas do curso, no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD) da Telebrás.

Quando se formou, em 1986, o empreendedorismo e a inovação ainda não eram algo forte no mundo da tecnologia. As opções de empregos que os alunos brasileiros tinham após formados eram trabalhos em grandes corporações públicas ou privadas, como bancos ou a IBM, que ofereciam uma estabilidade muito grande. Porém, Cecília sempre soube que queria seguir a carreira acadêmica. Foi com esse pensamento em mente que, após terminar a sua graduação, se inscreveu no Mestrado em Ciência da Computação, na UNICAMP, em 1987, com 22 anos. Seu mestrado teve como foco o estudo da geração de código para uma máquina de fluxo de dados, também conhecida como Dataflow Machine. Essa máquina é um tipo de arquitetura de computador onde as instruções são executadas conforme os dados estão disponíveis, em vez de seguir uma sequência de instruções fixa como em uma arquitetura von Neumann, permitindo que as operações sejam executadas de forma mais eficiente e paralela.

No final dos anos 80, ainda existiam relativamente poucas universidades no Brasil e a Computação era uma área muito nova, por isso não existiam instituições brasileiras que pudessem formar doutores. Como o doutoramento no Brasil ainda não tinha força, o governo concedia bolsas de estudo para que os alunos que tinham interesse em realizar o doutorado fossem para fora, com a esperança de que os mesmos voltassem para o país após a conclusão do doutorado e se tornassem professores. Foi com esse incentivo do governo que Cecília decidiu aplicar para o doutorado em universidades britânicas como Oxford, Cambridge e Newcastle University, nas quais foi aprovada em todas. A escolha pela Newcastle University se deu pelo fato de ser uma universidade que focava mais na prática do que na teoria, o que se alinhava mais aos seus interesses. Apesar de se interessar pela área de processamento paralelo que era relacionada com o tema do seu mestrado, Cecília não se via trabalhando por muito tempo com aquilo e foi assim que, em 1990, enquanto escolhia um orientador para o seu doutorado, ela encontrou a área com a qual trabalharia até os dias de hoje, a Engenharia de Software. O seu orientador, Brian Randell, foi quem cunhou o termo “Software Engineering”. Foi nos anos 90 que a Engenharia de Software começou a ficar mais forte e foi nessa época também que as linguagens orientadas a objetos começaram a ser mais utilizadas pelas indústrias.

Na Engenharia de Software, o que mais a fascinava era a jornada de resolver problemas do mundo real, desde a compreensão das necessidades do cliente até a validação da solução final diante do usuário. Esse ciclo, embora custoso, é o cerne da Engenharia de Software, pois implica em criar sistemas que verdadeiramente atendam às demandas do mercado. Durante o seu doutorado, Cecília mergulhou na construção de sistemas robustos, focando especialmente em técnicas de tolerância a falhas e tratamento de exceções. Lidar com a complexidade desses sistemas, sem um método claro, era desafiador, mas ao mesmo tempo extremamente gratificante. O desafio de desenvolver soluções únicas para problemas únicos é o que a motivou a ficar na área. Além disso, a natureza colaborativa da Engenharia de Software, que requer trabalho em equipe, é algo que ela valorizava profundamente. A professora afirma que todos os aprendizados do seus anos de doutorado continuaram a ser aplicados nos 25 anos de carreira que vieram depois do seu doutorado.

Foi durante os seus estudos na Inglaterra que Cecília se deparou pela primeira vez com um cenário onde a computação era uma área majoritariamente masculina e foi lá que sentiu pela primeira vez uma pressão para o lado das, poucas, mulheres que estavam realizando seus doutorados junto a ela. A mesma relata que sair de um país onde até então sempre dividiu seus ambientes de estudo com outras mulheres para um país popularmente conhecido por ser mais machista e formal fez com que ela percebesse que lá as mulheres não eram tão valorizadas. Os anos de doutorado na Inglaterra e os de pós-doutorado em Portugal também fizeram com que Cecília percebesse que a pesquisa no Brasil enfrenta alguns desafios estruturais em comparação com a Europa. Enquanto na Europa os projetos de pesquisa são associados a bolsas específicas, no Brasil a ênfase está mais na formação de recursos humanos do que na pesquisa em si, resultando em uma abordagem quantitativa em vez de uma qualitativa em relação a essas pesquisas sendo produzidas. A necessidade de avaliar não apenas a quantidade, mas também a qualidade e o impacto social e econômico das pesquisas é crucial para o desenvolvimento do país nesse campo. Comparativamente, ela percebeu que países como Portugal têm comissões mais estruturadas e eficientes para gerenciar projetos de pesquisa.

Com a conclusão do seu doutorado, Cecília iniciou a sua trajetória como professora na UNICAMP, onde ministrou aulas relacionadas a Engenharia de Software e Análise Orientada a Objetos, assumiu posições de liderança, como a chefia do Departamento de Sistemas de Informação (DSI) do Instituto de Computação da UNICAMP (IC-UNICAMP), e também orientou diversos alunos de mestrado e doutorado. Ao olhar para as suas salas de aula e até dentro do departamento de professores, onde é uma das poucas mulheres presentes, ela percebe que uma coisa mudou em relação a quando entrou na universidade: a presença quase máxima de homens na área. Cecília acredita que essa predominância masculina em sala de aula é o resultado do impacto cultural do surgimento do computador pessoal dentro dos ambientes familiares, onde o computador foi logo associado a algo mais masculino. Como ela mesma relata:

 “Você tem o menino pedindo para o pai comprar um computador pra ele jogar, e isso não é um comportamento feminino. Você tem na família a menina ganhando boneca e o menino ganhando computador, ou seja, aquilo é coisa de homem e boneca é de mulher”.

Para combater essa tendência, em 2022, Cecília desenvolveu um projeto de ensino de programação no Scratch para meninas do ensino fundamental, visando eliminar o estigma de que a computação é uma área exclusivamente masculina, projeto que existe até os dias de hoje. Inicialmente, foi organizada uma turma exclusivamente feminina, o que resultou em maior interesse pela área e engajamento das alunas. Os resultados mostraram também que a falta de prioridade para as meninas resultou em uma proporção desequilibrada entre os gêneros nas turmas subsequentes.

Além do projeto com Scratch, Cecília contribuiu para o projeto extensionista de especialização em Engenharia de Software que já existe na UNICAMP há 27 anos. Em 2020, a Comissão Especial de Engenharia de Software (CEES) da Sociedade Brasileira de Computação (SBC) premiou a Profª. Cecília como Pesquisadora Homenageada de 2020 [2]. O prêmio representa todas as contribuições relevantes para a pesquisa de Engenharia de Software no Brasil e no exterior, assim como, orientações que resultaram em novos pesquisadores na área. Hoje, suas contribuições dentro da área de pesquisa estão relacionadas com arquitetura de software e padrões arquiteturais, e nos últimos 15 anos a professora trabalhou com sistemas autoadaptativos usando a tecnologia MAPE-K. Até os dias atuais, Cecília já publicou mais de 100 artigos científicos, capítulos de livros e livros sobre Engenharia de Software [3]. Dentre os vários artigos publicados, destaca-se o artigo “Fault Tolerance in Concurrent Object-Oriented Software through Coordinated Error Recovery”, seu artigo mais citado de acordo com o Google Scholar [4], onde a professora e os outros autores apresentam um esquema para recuperação coordenada de erros entre múltiplos objetos interagentes em um sistema orientado a objetos simultâneo.

A conciliação dos estudos, principalmente durante o seu doutorado, no qual Cecília realizou acompanhada do seu filho ainda pequeno, com a sua vida pessoal foi algo difícil para a professora. Mesmo com toda a infraestrutura que o país tinha, Cecília sentia como se tivesse a metade do tempo dos homens, um sentimento que continuou existindo nos anos seguintes ao seu doutorado:

“Essa é uma realidade que eu enfrentei durante o doutorado e depois como professora, onde a maioria dos seus colegas são homens e quem cuida da casa não são eles, quem cuida das crianças também não são eles. Não estou dizendo que eles não fazem nada, mas a responsabilidade principal não fica no cargo de um homem.”

Para lidar com essa situação, ter uma rede de apoio durante a sua trajetória acadêmica foi algo extremamente importante:

“Você, como professor e pesquisador no Brasil, tem que competir contra europeus e americanos, porque você tem que publicar nos mesmo journals que eles publicam, enquanto somos um país ainda em desenvolvimento, e dentro desse ambiente ainda temos a questão da mulher que tem menos tempo para se dedicar. É esperado que ela seja a mulher maravilha. Ou seja, além de ser injusto a competição que ela deve fazer internacionalmente, nacionalmente você tem os homens com muito mais tempo e disponibilidade do que uma mulher. ”

Em relação às suas expectativas para o futuro, Cecília reconhece que o campo da Inteligência Artificial (IA) vem tendo um crescimento significativo, porém, que é importante reconhecermos que a IA possui limitações. Embora haja um entusiasmo generalizado, é improvável que a IA resolva todos os problemas que temos no mundo. Na Engenharia de Software, a integração dos modelos de IA requer uma sólida metodologia para atender às necessidades dos clientes. Ela prevê que a Engenharia de Software se torne cada vez mais interligada à IA, onde esta última será apenas um componente dentro de uma infraestrutura mais ampla. O futuro provavelmente verá um aumento no uso da Engenharia de Software na IA.

Por fim, o conselho dado pela professora para as mulheres que desejam entrar na área é:

Entrem. A área da computação é promissora e para as mulheres ela proporciona independência. E eu acredito que o que vai fazer uma pessoa feliz é a independência dela. Independente dela ter filhos, ou se casar, as meninas precisam pensar que elas têm que ter o dinheiro e o emprego delas e se preocupar com a sua formação para que elas sejam felizes. A área da computação traz muitas oportunidades, inclusive de você trabalhar de forma remota, assim você consegue conciliar uma família”.

 


Referências:

[1] UNICAMP. Conheça o IC: história. Portal institucional da Universidade Estadual de Campinas, 2024. Disponível em <https://ic.unicamp.br/conheca-o-ic/historia/>. Acesso em: 03 de maio de 2024.

[2] SBC. Homenageados. Portal da Comissão Especial de Engenharia de Software da Sociedade Brasileira de Computação, 2014. Disponível em <https://comissoes.sbc.org.br/ce-es/homenageados.php?lang=pt-br>. Acesso em: 03 de maio de 2024.

[3] LATTES. Cecília Mary Fischer Rubira. Currículo Lattes – CNPq, 2024. Disponível em <http://lattes.cnpq.br/1396497553199632>. Acesso em: 03 de maio de 2024.

[4] GOOGLE ACADÊMICO. Cecília M. F. Rubira. Página de citações do Google Acadêmico, 2024. Disponível em <https://scholar.google.com/citations?hl=pt-BR&user=fJXakRAAAAAJ&view_op=list_works>. Acesso em: 03 de maio de 2024.

 


Sobre a autora

Raquel de Oliveira
Bacharelanda em Ciência da Computação na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), com interesse em Ciência de Dados e Inteligência Artificial.

 

 

 

Sobre o Projeto Emíli@s – bits de representatividade

Somos o projeto “Emíli@s- bits de representatividade : participação feminina falante e atuante em Computação”, um grupo de estudantes e professores do curso de Ciência da Computação da UTFPR, campus Campo Mourão.

Inspiradas em nossa irmã “Emíli@s: Armação em Bits” da UTFPR campus Curitiba, nascemos com o objetivo de promover a participação ativa e o incentivo a permanência de meninas e mulheres na área de tecnologia para promover a igualdade de oportunidades nesse setor.

 


Como citar este artigo

DE OLIVEIRA, Raquel. Pesquisadoras brasileiras: a trajetória de Cecília Mary Fischer Rubira na Engenharia de Software. SBC Horizontes, maio. 2024. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2024/05/pesquisadoras-brasileiras-a-trajetoria-de-cecilia-mary-fischer-rubira-na-engenharia-de-software>. Acesso em: DD mês. AAAA.

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