Small data

Small data

“Por mais insignificante que pareça, tudo nessa vida conta uma história”. Marquei essa frase na introdução do livro Small Data, de Martin Lindstrom. Mais adiante, ele pergunta: “Estamos atentos à sequência de small data que deixamos escapar todos os dias – rituais, hábitos, gestos e preferências que acabam expondo quem realmente somos?”

Somos um conjunto de pequenas coisas. Deixamos pistas o tempo todo. Tudo diz um pouco de nós – as fotos que compartilhamos nas redes sociais, as viagens que escolhemos fazer, os lugares que frequentamos. Também os remédios, a pasta de dente, as compras no armário da cozinha. Tudo isso conta um pouco de quem somos. Pequenos dados do cotidiano que nos revelam para aqueles que sabem olhar. Um pequeno dado, visto de forma isolada, normalmente é insuficiente para grandes revelações. Mas várias coisas pequenas, analisadas em conjunto, podem compor insights e desvelar muita coisa sobre nós.

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Ela era fácil de decifrar. Um jeito clássico de ser. Usava sempre as mesmas marcas. Comprava nas mesmas lojas. Sempre tudo igual. Sem Facebook e pouca vontade para usar o WhatsApp. Um pouco estranha, confesso. Parecia viver em um tempo que não o nosso. A casa tinha um ar de passado – ela também. Mas no encontro de nossos tempos, fiquei responsável por organizar as coisas que ficaram quando ela partiu.

Comecei pela sala. A organização do exterior não combinava com a bagunça do interior. As coisas existiam aos milhares. Muitos de cada. Copos, pratos, toalhas, papéis. Fiquei surpresa, confesso. E me demorei ali. Tentativa consciente de adiar o que ainda estava por vir.

Tímida, e um pouco ansiosa, confesso, entrei no quarto. Lembro que parei na porta e pedi licença. E desculpas pela intromissão. Mas fui. Comecei pelas gavetas. As coisas existiam aos milhares. Antigas, muito usadas. Novas, ainda com etiquetas. A bagunça do interior totalmente desconectada da organização exterior. Me senti estranha. Senti ela uma estranha. Não reconheci. Resolvi voltar para a cômoda mais tarde e abri o armário. Casacos longos e vestidos de todas as estampas voavam por cima de bolsas de vários tipos. Gosto de bolsas. Espalhei pela cama e me demorei ali. Explorei cada uma delas. Escolhi uma. Posso ficar com essa? Agradeci.

Estava quente. Mesmo assim experimentei o casaco de lã grosso. Antigo, mas bonito. No bolso, encontrei uma caixinha. Pequena, forrada com veludo azul-marinho. Dentro, algumas poucas cartas em papel de seda e duas fotos. Fiquei surpresa, confesso. Ela não sabia inglês. Senti ela uma estranha. Me senti muito estranha.

Não tive coragem de ler. Nem de me desfazer. Guardei na mochila. Um dia descubro.

Arte: Niki (@ jururuart)
Revisão: Tiago Bergenthal
Texto produzido durante o módulo Circuito Santa Sede (@oficinasantasede & @rubempenz).

Como citar esse artigo:

BASSANI, Patrícia Scherer. Small data. SBC Horizontes, 02 set. 2024. ISSN 2175-9235. Disponível em: < https://horizontes.sbc.org.br/index.php/2024/09/small-data/>. Acesso em: DD mês. AAAA

Patrícia Scherer Bassani é doutora em Informática na Educação, professora titular do PPG em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Universidade Feevale, na linha de pesquisa Linguagens e Tecnologias.

Currículo lattes e redes sociais

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