As Redes Sociais e a Transfobia: A Tecnologia do Ódio
Autora: Lucy Venturim Nóbrega
Edição: Sean Siqueira, Mariano Pimentel, Renata Araujo e Tadeu Moreira de Classe.
Ilustração da capa: tereza ferreira – shutterstock, via “Pesquisa revela que 88% das menções no Twitter a pessoas trans são sobre transfobia” por Flavia Correia.
Eu, enquanto mulher trans que nasceu na geração da tecnologia e vive sendo exposta à internet e suas implicações, sou vítima direta dos impactos do ódio nas redes sociais. Navegar nelas faz parte da minha vida e muito frequentemente me sinto intimidada e invalidada como mulher, além de com medo de sofrer algum tipo de violência. Sendo assim, sinto a necessidade de levar as pessoas a uma reflexão sobre como a internet se tornou um espaço livre e seguro para o assédio contra a população trans.
Infelizmente, o discurso de ódio nas redes sociais ainda é muito presente e não existe um consenso quanto ao problema quando o assunto é uma minoria que ainda não foi aceita por grande parcela da sociedade. A população transgênero ainda é alvo de muitos ataques e de um discurso de marginalização e de invalidação social. Os atuais espaços virtuais, dentro da manipulação social que os caracterizam e das ferramentas tecnológicas que os compõem, atualmente se mostram um ambiente compatível com essa transfobia.
O filósofo Byung-Chul Han descreve em seu livro “Psicopolítica” uma suposta “ditadura da transparência”, onde a exposição e a comunicação contínuas, em especial nas redes sociais, são incentivadas. Para Han, o resultado dessa realidade seria a formação de um efeito de conformidade, onde é estabelecido o que é socialmente aceitável e aprovado, e as pessoas, em contrapartida, se sentem forçadas a seguir esses padrões e alinhar seus pensamentos e ações com o que é considerado normativo. “Se tudo tem que ser imediatamente visível, divergências são quase impossíveis. Da transparência surge uma pressão por conformidade que elimina o outro, o estranho, o desviante.” (HAN, 2018, p. 104).
Acredito que isso seja extremamente perigoso, porque a sociedade ainda possui enraizadas as normas e papeis de gêneros binários estabelecidos numa realidade cis-heteronormativa, que são naturalmente desafiados pela maioria da população transgênero. Nesse sentido, a falta de conformidade da população transgênero é usada para potencializar a discriminação desse grupo social, resultando em milhares de pessoas trans — eu inclusa — sofrendo diversos tipos de ataques online envolvendo cyberbullying e transfobia diariamente.
Ainda dentro do conceito de transparência apresentado por Han, também percebo em meus próprios usos das redes sociais, que o incentivo social da autoexposição e da transparência, além da disseminação da sensação de liberdade, fazem com que as pessoas se sintam livres para compartilhar até mesmo o que é considerado ofensivo. Ou seja, a falta de preocupação dos agentes de controle quanto ao que é postado, se importando apenas com a quantidade de posts e de informação nas redes, fomentam a quantidade de publicações transfóbicas na internet, assim como quaisquer outras formas de discurso de ódio.
Da mesma forma, a população trans também se sente propensa a postar mais nas redes, o que pode permitir a visibilidade e a criação de comunidades de apoio. Porém, essa mesma visibilidade também nos torna alvos fáceis de ataques transfóbicos, nos colocando em uma situação de vulnerabilidade.
Somando isso ao fato de que as opiniões transfóbicas e a discriminação dessa comunidade ainda são considerados a norma para a maioria da população, e a fraca aplicação das leis e regulamentos que visam coibir o cyberbullying e crimes de ódio virtuais, as redes se tornaram um ambiente tóxico: um lugar onde as pessoas podem expressar suas opiniões ofensivas em segurança. Isso tudo é potencializado no Brasil que, apesar de ter a transfobia criminalizada indiretamente desde 2019, é, há 15 anos consecutivos, o país que mais mata pessoas trans no mundo, o que reflete a situação de discriminação e marginalização dessa comunidade atualmente no país.
A obra “Computação e Sociedade” explica que: “Os gêneros e suas relações também são manifestados e percebidos de formas diferentes de acordo com a época, o local e a cultura de determinado grupo.” (RIBEIRO et al., 2020, p. 105). No caso do Brasil, a população trans ainda é vista sob uma ótica extremamente negativa em geral. Isso o torna um país extremamente perigoso para esse corpo social, onde os crimes contra o mesmo são extremamente frequentes.
Contribuindo diretamente para a disseminação da transfobia, as fake news são outro fator de grande influência. Também podemos notar, na obra citada anteriormente que: “Profissionais e usuários têm diversas responsabilidades no âmbito ético em relação à Internet. Começando pela questão mais simples, os sites, cujo conteúdo deve ser mantido garantindo veracidade e qualidade da informação.” (SANTORO et al., 2020, p. 202). Na realidade vemos algo diferente, onde a desinformação nas redes sociais se torna cada vez mais regular.
Dentro do contexto anterior, falei sobre como os posts promovidos pelas redes são guiados por algoritmos focados em engajamento, não em ética. Assim, as fake news acabam por tomar conta, sendo muitas vezes usadas como ferramenta para espalhar desinformação sobre a população trans e perpetuar preconceitos existentes a respeito dessa comunidade, com intenção de diminuí-la e depravá-la.
Nos jogos olímpicos de Paris de 2024 tivemos um exemplo de altíssima repercussão com o caso da atleta Imane Khelif, que foi atacada numa campanha de assédio cibernético e desinformação que questionava seu gênero. Imane é uma mulher cis gênero, ou seja, uma mulher que se identifica com o gênero que lhe foi determinado ao nascer. Apesar disso, foi alvo de uma onda de ódio gerada por notícias de alto engajamento que a acusavam de ser uma mulher trans e de ter níveis altos de testosterona, indicando que sua participação na categoria feminina seria injusta. Todas essas informações se revelaram falsas ou questionáveis (O DIA, 2024), mas somente após o caso ter se espalhado drasticamente e ter sido altamente discutido. As fake news direcionadas à atleta surgiram numa tentativa bem-sucedida de atacar diretamente a comunidade transgênero. Usando temas feministas como fachada para um discurso de ódio, e tendo até mesmo o próprio dono de uma das mais famosas e utilizadas plataformas virtuais como agente propagador, muitas pessoas trans, especialmente as de identidades femininas, foram perseguidas durante os jogos olímpicos.
Fonte: “Boxeadora argelina é alvo de transfobia após fake news sobre sua identidade de gênero”
Esse acontecimento, que foi prova de como as fake news são utilizadas ultimamente para disseminar a transfobia na internet e incitar o ódio, teve grande impacto emocional e psicológico em mim e em grande parte da comunidade trans, estabelecendo e reforçando o medo de existir enquanto pessoa trans, dentro e fora das redes sociais.
Nesse caso, também é importante mencionar o quão fácil se tornou a divulgação de desinformações voltadas para o ódio nos espaços virtuais. “Por viver em um mundo virtual, onde o leitor não sabe quem está atrás da tela, é ‘fácil’ criar uma segunda identidade ou fake news” (MELO et al., 2018, p. 81). Assim, as redes se tornaram, em todo o seu funcionamento, um espaço hostil para as pessoas trans, que são perseguidas, atacadas e ameaçadas diariamente na internet, sem nenhuma espécie de consequência para os responsáveis.
Por fim, espero que esse texto estimule o leitor a refletir, a partir da perspectiva de uma mulher trans, sobre a forma em que as redes sociais são usadas como arma, assim como a relevância dos comentários e posts ofensivos que costumamos ignorar. Procuro também alertar sobre o perigo da desinformação e das fake news dentro do contexto da disseminação do ódio. A manipulação e os novos métodos de controle não são justificativa para nos livrarmos da responsabilidade pelo que postamos e compartilhamos nas redes. Por isso, devemos nos monitorar para não participar de nenhum tipo de disseminação de ódio, e questionar a todo momento a veracidade das informações que nos são apresentadas na internet, principalmente se essas informações atacam diretamente uma pessoa, ou grupo social.
Referências
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018b.
MELO, Vanessa; SOUSA, Jéffson; ARAÚJO JÚNIOR, Luíz; LEITE, Charles. (2018). A manipulação da sociedade pela mídia e os efeitos devastadores sobre a democracia. Cadernos de Graduação: Ciências Humanas e Sociais, 5(1), 77-90.
O DIA. Promotores franceses abrem investigação após denúncia de boxeadora argelina na Olimpíada. IG, 20 ago. 2024. Disponível em: https://odia.ig.com.br/esporte/2024/08/6899745-promotores-franceses-abrem-investigacao-apos-denuncia-de-boxeadora-argelina-na-olimpiada.html. Acesso em: 20 ago. 2024.
RIBEIRO, Karen; et al. Gênero e tecnologias. In: MACIEL, Cristiano; VITERBO, José (Orgs.). Computação e Sociedade: A Profissão – Volume 1. 1. ed. Mato Grosso: EdUFMT, 2020. p. 104-140.
SANTORO, Flavia; COSTA, Rosa. Ética profissional em computação. In: MACIEL, Cristiano; VITERBO, José (Orgs.). Computação e Sociedade: A Profissão – Volume 1. 1. ed. Mato Grosso: EdUFMT, 2020. p. 194-220.
Sobre a autora:
Lucy Venturim Nóbrega é estudante de Bacharelado em Sistemas de Informação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Técnica em Desenvolvimento de Sistemas pelo Colégio Pedro II.