Curricularização da Extensão Universitária: o que a comunidade brasileira de Computação tem a ver com isso?
Por Amanda Meincke Melo, Ecivaldo Matos, Aline Vieira de Mello e Juliana Oliveira
A proposta de curricularização da extensão já tem mais de 20 anos: foi anunciada no Plano Nacional de Educação (PNE) 2001-2011 e reiterada no PNE 2014-2024. Com a publicação da Resolução CNE/MEC 7/2018, passou a ser obrigatória a sua implantação nos cursos superiores, com, ao menos, 10% da carga horária total integralizada em ações de extensão. Desse modo, todos os currículos dos cursos da área da Computação precisaram ser revisados e alinhados ao que propõe essa resolução.
Ao analisarmos a produção intelectual nos fóruns da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), identificamos inúmeras contribuições que extrapolam o espaço físico das instituições de ensino superior, promovendo impacto e transformação social. Um desses fóruns é o Workshop de Informática na Escola (WIE), que propõe o compartilhamento de experiências de adoção de tecnologias computacionais na educação. Outro é o Women in Information Technology (WIT), que coloca em perspectiva questões de gênero na área de Tecnologia da Informação (TI), incluindo discussões e iniciativas envolvendo o ensino de Computação na Educação Básica. Contudo, é preciso reconhecer que, nesses fóruns e mesmo naqueles que pautam a Educação em Computação, como o Workshop sobre Educação em Computação (WEI) e o Simpósio Brasileiro de Educação em Computação (Educomp), a Extensão Universitária ainda não possui espaços sistemáticos de reflexão e divulgação que valorizem seu modo próprio de produção de conhecimento.
Acreditamos, assim, ser necessário investir, como comunidade que pensa Ciência, Tecnologia e Educação em Computação, na qualificação das discussões sobre a Extensão Universitária nos cursos superiores de Computação (graduação e pós-graduação). Desse modo, com este artigo, inauguramos a coluna sobre Extensão Universitária na SBC Horizontes, com especial interesse no processo de curricularização da extensão. Propomos aqui reflexões sobre esse processo e convidamos outras pessoas da comunidade brasileira de Computação a colaborar conosco. Para tanto, inicialmente dialogamos com as ideias apresentadas no painel da comunidade do III Simpósio Brasileiro de Educação em Computação (Educomp 2023) denominado Curricularização da Extensão: Experiências e Propostas para os Cursos Superiores de Computação (MELO et al., 2023b).
Iniciamos destacando a definição para Extensão Universitária do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileira (FORPROEX), apresentada na Política Nacional de Extensão de 2012: “[…], sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre Universidade e outros setores da sociedade.” (FORPROEX, 2012, p. 15)
A Extensão Universitária, desse modo, além do papel importante na formação profissional dos estudantes universitários, possui papel imprescindível em sua formação humanística, indo além de uma formação meramente técnica. Na relação com o ensino, é uma oportunidade para romper com os modelos a que estamos habituados, criando espaços de diálogo com as comunidades envolvidas, por exemplo, pela realização de rodas de diálogos com pessoas de outras áreas, com múltiplas plateias e em diferentes lugares. Na interação com a pesquisa, tem-se a possibilidade de realização de pesquisas aplicadas em diferentes domínios, apoiadas por métodos como observação participante (BECKER, 1994), pesquisa-ação (THIOLLENT, 1986), entre outros. A Extensão Universitária também é uma oportunidade para situar o profissional em formação com as demandas do mundo real, com forte apelo à criação de soluções favoráveis a situações problemáticas e ao trabalho coletivo.
Na ampliação da carga horária de ações de Extensão Universitária nos currículos de graduação, é preciso ir além do cumprimento da legislação, comprometendo-se genuinamente com a formação dos estudantes de graduação, assim como com o impacto e a transformação social que isso se propõe a promover. Isso implica ir além de ações de comunicação científica e de uma visão assistencialista de prestação de serviços, sendo necessário interagir com os conhecimentos produzidos fora da academia, reconhecendo-os, valorizando-os, interseccionando-os na abordagem de problemas sociais.
Fazer Extensão Universitária, portanto, pressupõe romper com modelos de projetos nos quais os docentes responsáveis realizam toda a interlocução com a comunidade e aos estudantes cabe apenas uma visão fragmentada de seu papel. Aos estudantes devem ser oportunizadas experiências extensionistas amplas, plurais e livres, de modo que possam, em diálogo com as comunidades e grupos envolvidos, desenvolver uma visão crítica para a realidade vivenciada, além de exercitar a criatividade, a cidadania e o protagonismo. Desse modo, em contato com a comunidade ou em eventos técnico-científicos (Quadro 1), poderão desenvolver habilidades e competências técnicas e comportamentais, como comunicação interpessoal, empatia, capacidade de adaptação, criatividade, proatividade, cooperação, pensamento crítico, liderança, comportamento ético, elaboração de materiais de divulgação e de produção técnico-científica, apresentação em público, entre outras.
Quadro 1 – Espaços de produção extensionista
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Colocamos, assim, em perspectiva as diretrizes da Extensão Universitária (FORPROEX, 2012; MELO et al., 2023a):
- Interação Dialógica: envolve o diálogo, o compartilhamento de conhecimentos e experiências, entre comunidade universitária e membros da comunidade local e regional, a partir de uma relação horizontal, com apoio de metodologias participativas e democráticas, para superar a desigualdade e a exclusão social;
- Interdisciplinaridade e Interprofissionalidade: propõe a aplicação de conhecimentos e métodos de diferentes disciplinas, assim como a colaboração entre pessoas com experiências profissionais diversificadas, para abordar problemas em sua complexidade, combinando visão do todo e conhecimento especializado;
- Indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão: reconhece a Extensão Universitária como processo acadêmico e se compromete com a formação de pessoas associada à produção e ao compartilhamento de conhecimentos, a partir de metodologias participativas, em espaços físicos além dos convencionais;
- Impacto na Formação do(a) Estudante: é o efeito da participação em ações extensionistas no processo formativo de estudantes, com intencionalidade pedagógica, que associa teoria à prática, a partir de iniciativas que oportunizem a flexibilização e a integralização curricular;
- Impacto e Transformação Social: é o resultado esperado de uma ação extensionista alinhada a políticas públicas, evidenciando a responsabilidade social das universidades e sua atuação transformadora.
As diretrizes da Extensão Universitária (FORPROEX, 2012) – Interação Dialógica, Interdisciplinaridade e Interprofissionalidade, Indissociabilidade Ensino – Pesquisa – Extensão, Impacto na Formação do(a) Estudante, Impacto e Transformação Social – devem fundamentar a prática extensionista.
Essas diretrizes devem orientar a concepção e a avaliação de ações extensionistas, como programas, projetos, cursos, eventos e prestação de serviços. Constituem referencial teórico-metodológico fundamental para o desenvolvimento dessas ações e, assim, devem ser consideradas na avaliação de artigos com relatos de ações extensionistas.
No processo de curricularização, além da observação cuidadosa das diretrizes da Extensão Universitária, sem querer esgotá-los, tem-se alguns desafios:
- garantir a sustentabilidade das parcerias: a partir da construção coletiva de ações de extensão, que considerem as reais necessidades e interesses da comunidade envolvida; compreensão da infraestrutura técnica e humana necessária a longo prazo; adoção de termo de compromisso que deixe claros os objetivos e as responsabilidades dos envolvidos; abordagem contínua e sistemática dos problemas em perspectiva;
- ampliar as ações extensionistas para atender a todos(as) os(as) estudantes: pela formalização de ações de caráter extensionista já realizadas; proposição de novos componentes curriculares que incorporem carga horária na Extensão Universitária; promoção da formação em Extensão Universitária; aumento do fomento às ações de extensão; valorização da Extensão Universitária, seus atores e práticas;
- envolver mais docentes com a extensão: a partir do reconhecimento e valorização a Extensão Universitária como espaço de produção técnico-científica e nos planos de carreira; ampliação dos espaços para a publicação de experiências extensionistas em eventos tradicionais; incentivo à formação docente para desenvolver Extensão Universitária; trocas de experiências entre extensionistas experientes e iniciantes em processos de tutoria;
- valorizar a Extensão Universitária: a partir de uma mudança cultural que reconheça e valorize as práticas extensionistas; sistematização da coleta de dados e disseminação de resultados das ações extensionistas; associação de pesquisas às práticas extensionistas, com apoio a publicações de projetos de extensão; valorização das práticas extensionistas em editais e processos de progressão e promoção na carreira docente.
E o que nós, acadêmicos, estudantes e profissionais de Computação temos a ver com isso? Espero que ao chegar aqui, você já tenha uma resposta para essa pergunta. Ainda assim, enfatizamos que, no âmbito da SBC, podem ser realizadas algumas ações como: definição de uma agenda de extensão em Computação que contemple metas a médio e longo prazos; desenvolvimento de painéis que dialoguem com políticas públicas e provoquem reflexões sobre o papel da Computação, assim como painéis sobre o fazer extensionista na Computação; fomento à formação de extensionistas em jornadas de atualizações em Computação; definição de trilhas em eventos, que valorizem relatos extensionistas e tenham as diretrizes da Extensão Universitária como referência para a avaliação de trabalhos; ampliação das ações extensionistas integradas a eventos com o protagonismo de estudantes e da comunidade envolvida; incentivo à produção extensionista em periódicos técnico-científicos.
Referências
BECKER, H. Métodos de pesquisa em ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1994.
FORPROEX. Política Nacional de Extensão Universitária. Manaus, 2012. Disponível em: <https://www.ufmg.br/proex/renex/images/documentos/2012-07-13-Politica-Nacional-de-Extensao.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2023.
MELO, A. M.; MELLO, A. V; KREUTZ, D.; BERNARDINO, M. Curricularização da Extensão Universitária em Cursos de Computação: experiências e possibilidades. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO (EDUCOMP), 3. , 2023, Evento Online. Anais […]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2023a. p. 289-299. DOI: https://doi.org/10.5753/educomp.2023.228340.
MELO, A. M.; MELLO, A. V.; MATOS, E. S.; SANTOS, J. M. O. Curricularização da Extensão: experiências e propostas para os cursos superiores de Computação. In: PROPOSTAS DE PAINÉIS – SIMPÓSIO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO (EDUCOMP), 3. , 2023, Evento Online. Anais Estendidos […]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2023b. p. 54-55. DOI: https://doi.org/10.5753/educomp_estendido.2023.229571.
THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 1986.
Autoria
Amanda Meincke Melo. Professora Associada na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), onde exerce a docência no Campus Alegrete desde 2009. É Bacharela em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestra e Doutora em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É também Licenciada em Letras-Português pela UNIPAMPA. Participou da concepção da ação de extensão Gurias na Computação, projeto parceiro do programa Meninas Digitais da SBC, na qual atua até hoje. É líder do grupo de pesquisa GEInfoEdu – Grupo de Estudos em Informática na Educação, coordenadora projeto de ensino GEIHC – Grupo de Estudos em Interação Humano-Computador e do programa de extensão TRAMAS, acrônimo para Tecnologia, Responsabilidade, Autoria, Movimento, Amorosidade e Sociedade. Também integra o Comitê de Gênero e Sexualidade da UNIPAMPA e colabora em outras ações de extensão na Universidade. Além de já ter exercido a função de coordenadora local de extensão em seu campus e representante na Comissão Superior de Extensão, atuou como formadora em duas edições de capacitação de extensionistas. Atualmente é supervisora de extensão do curso de Engenharia de Software. É representante da Região Sul na CEIHC – Comissão Especial de Interação Humano-Computador da SBC. LinkTree: @ammelobr. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/3659434826954635
Ecivaldo Matos. Professor Titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP) e Pesquisador Associado do Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO) e do Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1D, coordenando atualmente o SPIDeLab (Semio-Participatory Interaction Design Research Laboratory) e o Grupo NEGRÉGORA (UFBA/USP). Coordenou o Grupo de Pesquisa e Extensão Onda Digital e mantém projetos de extensão voltados à formação de professores no âmbito do Projeto Raciocínio Computacional em Prática. Desde 2014, coordena o Fórum Interdisciplinar sobre Formação Docente com Tecnologias. Em fevereiro de 2022, lançou o documentário “Eu [não] sou de Computação” como mecanismo de visibilização de situações de superação ao racismo em espaços acadêmicos e profissionais de Computação. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/6875886650307656
Aline Vieira de Mello. Professora Adjunta na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), onde exerce a docência no Campus Alegrete desde 2011. É Bacharela e Mestra em Ciência da Computação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutora em Ciência da Computação pela Sorbonne Université. Coordenadora do programa de extensão Programa C e do projeto de extensão Motus – Movimento Literário Digital. Participou da concepção da ação de extensão Gurias na Computação, projeto parceiro do programa Meninas Digitais, na qual atua até hoje. Coordena o projeto de pesquisa Egress@s – coleta, disponibilização e visualização de dados. Atualmente é coordenadora local de extensão em seu campus, representando-o na Comissão Superior de Extensão e esta comissão no Conselho Universitário. Além disso, integra o Núcleo Docente Estruturante (NDE) do curso de Ciência da Computação do Campus Alegrete da Unipampa. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/7822927936432169
Juliana Oliveira. Mestranda em Ciência da Computação e bacharela em Sistemas de Informação, ambos pela UFBA. Extensionista em Computação há 12 anos, com experiência em gestão, execução, avaliação e comunicação da extensão, atuando no SPIDeLab (Semio-Participatory Interaction Design Research Laboratory), no Grupo NEGRÉGORA (UFBA/USP), no Projeto Onda Solidária de Inclusão Digital (POSID/UFBA) e na diretoria geral do projeto Meninas Digitais – Regional Bahia. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/1942862457809155
Como citar esta matéria:
MELO, Amanda Meincke; MATOS, Ecivaldo; MELLO, A. V.; Oliveira, J. Curricularização da Extensão Universitária: o que a comunidade brasileira de Computação tem a ver com isso? SBC Horizontes. ISSN 2175-9235. agosto de 2023. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2023/08/curricularizacao-da-extensao-universitaria/. Acesso em: dd mês aaaa.