Do fazer extensão ocasional ao sistemático: desafios e proposições para a Extensão Universitária na Computação
Por Andréa Sabedra Bordin
Introdução
A Resolução nº 7, de 18 de Dezembro de 2018, do Conselho Nacional de Educação (R7) instituiu as diretrizes para a Extensão na Educação Superior Brasileira. Dentre essas diretrizes, uma das mais impactantes determina que 10% do total da carga horária curricular de um curso de graduação deve ser creditada como atividades de extensão. Desde a sua publicação, a R7 vem sendo alvo de discussões, com argumentos a favor (a maioria vindo de extensionistas) e contra a chamada “curricularização da extensão”. Dentre os argumentos contra, que ouço, estão o fato de ter surgido de “cima para baixo”, ou seja, sem que partisse da demanda da comunidade acadêmica; de ter retirado carga curricular de disciplinas, dentre outros. Por outro lado, para os poucos que argumentam a favor, ela traz muitas possibilidades de enriquecer a formação do estudante, preparando-o para os desafios do mercado e para a formação de sua visão crítica e cidadã.
Independentemente dos argumentos, todos os cursos de graduação tiveram que reestruturar seus Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) para inserir a creditação das atividades de extensão. Findado o prazo legal para essa estruturação, em dezembro de 2022, ficam alguns questionamentos: 1) Todos os cursos de graduação na área de Computação conseguiram cumprir o prazo? 2) Quais os desafios encontrados, tanto no processo de reestruturação dos PPCs, quanto na implementação do que foi proposto? 3) Por fim, quais as proposições para esses desafios? Este ensaio pretende contribuir com as respostas para essas questões, embasadas ora em pesquisas, ora na minha visão pessoal.
Desenvolvimento
Levantamentos como o que realizei em Bordin (2023) e o de Pereira Junior et al. (2023) ajudam a responder particularmente a primeira pergunta, apesar das diferentes amostras utilizadas pelos autores. Em janeiro de 2023, Bordin (2023) encontrou apenas 20 PPCs da área de Computação indexados pelo Google com menção às estratégias de curricularização da extensão, em uma população com cerca de 2000 cursos de graduação na área de Computação. No mesmo período, Pereira Junior et al. (2023) realizaram uma busca ativa por PPCs da área em todas as IES públicas da região Centro-Oeste, na qual descobriram que de um total de 67 cursos, apenas 27 (menos da metade) contemplavam estratégias de curricularização. Apesar de os dois trabalhos reportarem dados coletados há 1 ano e o cenário provavelmente ter evoluído, ainda assim suponho que não se conseguiu atingir uma cobertura de 100%. Dentre os motivos podem estar a conhecida resistência à extensão e consequente impacto no trabalho de reestruturação curricular, à morosidade do fluxo institucional que envolve a submissão do PCC a diversas instâncias dentro da IES, à falta de mecanismos de controle e avaliação da implementação da R7, tanto em nível de IES, como em nível nacional. Sobre esse último, a despeito do que consta no Art. 12, que define que as avaliações de responsabilidade do INEP devem levar em conta o disposto na R7, observa-se que os instrumentos que regem a avaliação dos cursos datam de 2017, ou seja, não contemplam ainda os elementos previstos na R7.
Sobre os desafios do processo de curricularização da extensão abordados na segunda pergunta, parto dos levantados anteriormente por mim (BORDIN, 2023), Melo et al. (2023) e Arienti (2023) e acrescento mais alguns, bem como proponho alternativas de solução para alguns.
Um dos grandes desafios apontados por Arienti (2023) é a mudança de paradigma do fazer extensionista ocasional para o sistemático. O autor argumenta que a transformação da extensão como atividade opcional e de oferta minoritária, em termos de dedicação de carga horária de alunos e professores, em atividade sistemática e abrangente exigirá um grande esforço, com vários outros desafios como desdobramentos. Por um lado os professores terão que ofertar ações de extensão para os alunos sob sua supervisão, o que implica em alterar a carga horária dos professores mais concentrada em ensino e pesquisa para incluir também extensão; por outro lado, os alunos terão que buscar o envolvimento em atividades de extensão.
Percebo que essa relação de oferta e procura tem grande chance de ser desbalanceada, uma vez que a oferta depende do corpo docente, que não está habituado, não sabe ou não quer fazer extensão, o que deve gerar um outro desafio, que é uma demanda reprimida por atividades de extensão por parte dos alunos. Essa demanda poderá ser maior ou menor, a depender das estratégias de curricularização adotadas no PPC. Na pesquisa que desenvolvi em 2023 e na de Pereira Junior et al. (2023), a estratégia de curricularização que permite a livre escolha das ações pelo aluno foi a mais adotada nos PPC analisados. Essa estratégia oferece, por um lado, uma flexibilidade ao aluno para ser protagonista de suas próprias escolhas, mas ela requer uma oferta bem maior de ações de extensão pelos docentes. Além disso, como já apontei nessa mesma pesquisa e julgo importante mencionar novamente, com essa estratégia – considerada por alguns como “mais fácil”, o Núcleo Docente Estruturante (NDE) e corpo docente do curso perdem a oportunidade de definirem no PPC outras formas de curricularização da extensão que contribuam melhor para a formação técnica e social dos alunos.
Penso que para evitar ou atenuar esse cenário é necessário um conjunto de ações para educar e motivar os docentes no envolvimento com a extensão universitária, assim como a escolha de estratégias de curricularização que explorem possibilidades mais ricas. Encorajo-me a propor algumas ações:
- Sobre o envolvimento dos docentes, primeiramente é importante que haja uma clara estratégia institucional no sentido de propor espaços de formação e troca de experiências acerca das possibilidades que a extensão enseja, o que é corroborado por Melo (2023) e Pereira Jr (2023). Existe um desconhecimento muito grande em relação a extensão, então penso que é preciso educar os docentes para a extensão. Relacionado à motivação para o envolvimento, não poderia deixar de mencionar a importância de mecanismos de valorização dos docentes envolvidos com extensão no plano de desenvolvimento de carreira. Como Arienti (2023) menciona: “Às múltiplas atividades do professor, será adicionada mais uma.”;
- Sobre as estratégias de curricularização nos PPC, proponho, aos NDEs dos cursos, que reflitam sobre a possibilidade de incluir atividades de extensão nos componentes curriculares de ensino, promovendo assim uma real indissociabilidade ensino-extensão. Ao vincular a extensão a um componente curricular, diminui-se o risco de não haver ações de extensão registradas para atender as demandas dos alunos.
A aproximação da universidade com a sociedade agora, no contexto da R7, torna-se uma necessidade e, mais que isso, uma necessidade com alta demanda. Assim, considero desafiador o processo de mapear demandas e estabelecer o primeiro diálogo com a comunidade, principalmente para os docentes que não têm essa experiência. Nesse contexto, penso que possam ser implementadas algumas estratégias como convidar periodicamente a comunidade para conhecer o que é produzido na universidade e ouvir suas demandas, assim como usar a tecnologia computacional no desenvolvimento de sistemas onde tanto membros da sociedade como da universidade possam inserir demandas e ofertas em termos de ações de extensão.
Ainda no contexto do fazer acontecer a extensão nos currículos, destaco o desafio dos recursos financeiros necessários para viabilizar as ações de extensão curricularizadas. Com a iminente expansão no número de ações, serão necessários recursos institucionais para viabilizar o deslocamento de alunos e professores para locais externos à universidade, assim como disponibilizar espaços físicos para que alunos, professores e comunidade externa se encontrem para planejar e realizar ações. Compartilho aqui, uma iniciativa da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com edital que destinou recursos específicos para apoiar a curricularização da extensão. No referido edital, o Centro de Ciências e Tecnologias do Campus Araranguá, utilizou o recurso para montar o Espaço Coworking para Ações de Extensão Interdisciplinares, um espaço físico destinado somente à ações de extensão no campus.
A segurança de alunos e professores na execução de atividades de extensão fora do espaço físico da universidade é apontada como um desafio por Arienti (2023). Para o autor, somos, como coordenadores de ações de extensão, responsáveis pelos alunos participantes, que devem ser amparados por apólice de seguro de vida quando de realização de atividades. Algumas IES contam com apólices de seguro para estudantes envolvidos em atividades acadêmicas curriculares, onde podem estar inclusas as atividades de extensão, a depender da cobertura contratada. Contudo, parece não existir uma regulamentação que todas as IES devam seguir, como é o caso da Lei do Estágio 11.788/2008 que determina a contratação de um seguro de acidentes pessoais. No caso da Universidade Federal de Sergipe (UFS), tanto atividades de estágios como atividades práticas curriculares obrigatórias que se desenvolvem fora do âmbito da UFS e demais programas que possam oferecer possível risco de acidentes terão direito a um seguro contra acidentes pessoais. Para o reitor da universidade, Valter Santana, o contrato, além de ser previsto legalmente, proporciona uma maior segurança para o corpo discente. “O seguro vem para garantir que os alunos possam realizar as suas atividades, porém tendo a preocupação e o cuidado de resguardar a integridade física desses alunos. E, para garantir isso, a universidade fez uma contratação mais abrangente, com uma empresa que protegerá e dará essa segurança que os alunos precisam para exercer as suas ações de graduação, extensão e pesquisa. Ter essa cobertura é uma forma de proteger o que é mais importante, que é a vida dos alunos”
Outro desafio é a curricularização da extensão nos cursos noturnos, onde o perfil de aluno se caracteriza por trabalhar durante o dia. Para Pereira Junior et al. (2023) é preciso que a oferta ocorra nas condições dos estudantes regularmente matriculados nos cursos. Arienti (2023) vai além, propondo deixar espaços na estrutura curricular na grade curricular noturna para as atividades de extensão, preferencialmente no início dos cursos. Assim, os alunos combinarão disciplinas e atividades de extensão no início do curso e disciplinas e estágio profissional no final do curso.
Por fim, mas não menos importante, menciono a sustentabilidade das ações de extensão executadas junto à comunidade. A interação dialógica com a comunidade frequentemente implica em expectativas desta para a solução de algum problema ou necessidade. Nos acordos firmados, deve existir o compromisso de atender ao que foi combinado e, quando isso não for possível, deve ser dada alguma justificativa. É extremamente importante manter laços de comunicação sustentáveis e respeitosos com as comunidades envolvidas nas ações de extensão. Exemplifico esse desafio com um cenário na Computação/Engenharia de Software: dada a crescente demanda da sociedade por soluções de software, o desenvolvimento deste é uma possibilidade natural a ser proposta em projetos de extensão. Ocorre que o desenvolvimento de uma solução de software não termina com a sua entrega para o demandante. Sabemos que todo o software precisa ser mantido, o que traz, portanto, desafios para garantir a sustentabilidade desse tipo de projeto. A solução, nesse caso, passa por garantir a existência de uma equipe permanente de alunos para manter as soluções desenvolvidas anteriormente. Com esse exemplo, minha intenção é passar a mensagem de que não devemos deixar a comunidade com expectativas não atendidas ou parcialmente atendidas, sob a pena de não termos parceiros interessados nos desenvolvimento de ações de extensão.
Conclusão
Neste ensaio busquei apontar grandes desafios da curricularização da extensão e algumas proposições, resultados das experiências e reflexões da minha prática extensionista e da participação em instâncias onde se discute Extensão Universitária. Não pretendi esgotá-los, mas considero esses alguns dos mais relevantes. Meu sincero desejo é que esses pontos promovam reflexões, trocas e mudanças. Não precisamos esperar os problemas acontecerem, podemos nos antecipar e promover as mudanças necessárias.
Algumas mudanças inclusive já estão acontecendo na própria R7. Na sua primeira versão, cursos na modalidade a distância deveriam oferecer atividades presenciais. Dado que esse é um desafio devido a natureza desses cursos, o parecer CNE/CES Nº 576/2023 revisitou a Resolução n. 7, permitindo a realização de ações de extensão também a distância.
Para concluir, entendo que estamos em um momento de operacionalização da curricularização, assim cabem os desafios postos. No entanto, em um futuro próximo espero que estejamos refletindo sobre a avaliação da extensão.
Referências Bibliográficas
ARIENTI, Wagner Leal (2023). Sobre a implementação da curricularização da extensão: caracterizações e preocupações. Extensio: R. Eletr. de Extensão, v. 20, n. 45,, p. 168-189, 2023.
BORDIN, Andréa Sabedra. Uma Análise da Curricularização da Extensão na Graduação em Computação: Possibilidades e Desafios. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO (EDUCOMP), 3. , 2023, Evento Online. Anais […]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2023 . p. 262-269.
MELO, Amanda Meincke; DE MELLO, Aline Vieira; KREUTZ, Diego; BERNARDINO, Maicon. Curricularização da Extensão Universitária em Cursos de Computação: experiências e possibilidades. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO (EDUCOMP), 3. , 2023, Evento Online. Anais […]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2023. p. 289-299.
Autoria
Andréa Sabedra Bordin. Doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela UFSC, professora universitária na área de Computação há 25 anos, com diversas atuações em ações de extensão nesse período. Atualmente está lotada na Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Araranguá onde desenvolve atividades de ensino, pesquisa, extensão e gestão. É subcoordenadora de extensão do Centro de Tecnologias e Saúde (CTS) e membro da Câmara de Extensão da UFSC. Atualmente coordena o projeto de extensão PyAnaytics – Resolução de Problemas de Análise de Dados e Compartilhamento de Conhecimentos e o programa de extensão Espaço Coworking de Ações de Extensão Interdisciplinares de CTS. Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/3462254816005439 |
Como citar esta matéria:
BORDIN, Andrea S. Do fazer extensão ocasional ao sistemático: desafios e proposições para a extensão universitária na Computação. SBC Horizontes. ISSN 2175-9235. abril de 2024. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2024/04/do-fazer-extensao-ocasional-ao-sistematico-desafios-e-proposicoes-para-a-extensao-universitaria-na-computacao/. Acesso em: dd mês aaaa.