Valores, Jogos Digitais e uma Missão Verde-Oliva

Valores, Jogos Digitais e uma Missão Verde-Oliva

Por Luiz Paulo Carvalho

Na capa, uma homenagem aos dons artísticos dos militares que lutaram bravamente contra o uso de máscara e mostraram um show de habilidades no Paint.

Vamos falar de valores (ou Valores, dependendo do seu apego à caixa alta). Para falar de valores, temos que falar de ética (ou Ética, dependendo do seu apego à caixa alta). Tradicionalmente temos duas áreas que lidam com valores, compreendidas pela teoria dos valores (ou Teoria dos… ah, vocês entenderam já), a ética e a estética. A ética lida com os comportamentos livres e conscientes, a estética lida com o belo e a poesia. Bem resumido mesmo, para não ficar tipo aquela aula chata e te perder como leitor nos primeiros parágrafos.

Importante que a ética e a estética andam de mãos dadas, tipo aquelas menininhas d’O Iluminado. Quando você passa o olho não tem nada demais, conforme você estuda e se aprofunda é um show de horrores. Parafraseando um dos maiores filósofos da história brasileira, ET Bilu, “Busquem conhecimento, mas não muito se não dá vontade de chorar”. Conflitos conceituais e ontológicos à parte, ética e estética estão intrinsecamente associadas uma com a outra. Um exemplo simples está culturalmente associado à ideia de “arte” e “artesanato”/“artesão” e “artista”, enquanto as pessoas rotulam confecções de indígenas como “artesanato”, rotulam um urinol como “arte”. Quem vende seus produtos na orla do calçadão é “artesão” e quem pinta uma faixa de cor sólida em uma tela branca e exibe em uma galeria de arte é “artista”. “Mas Luiz Paulo, que absurdo você pipipi popopo… o urinol é arte contemporânea patati patatá”, não estou dizendo que isso é arte e aquilo não é, só expondo um fenômeno de entrelaçamento entre ética e estética.

Mas e na computação? Temos vários exemplos, você olha um código bem identado, encadeado, comentado, com nomes de variáveis bons e diz “que código bonito”. Você olha aquele armário com cabos CAT-5E bem separados, organizados, etiquetados, encaixados de forma ordenada, bem crimpados e diz “que cabeamento bonito”. Você vê um banco de dados com as dimensões bem nomeadas, os dados limpos e semanticamente plausíveis, metadados disponíveis, boa estruturação, consistência de termos e diz “que bê-dê bonito”. Sendo que a prática de comentar o código, ou etiquetar os cabos, ou disponibilizar metadados é relacionada à ética (ou moral), a apreciação destes elementos como “beleza” é relacionada à estética. Este código terá maior valoração se comparado com um código que tem essas qualidades comprometidas. Veja que um código não precisa necessariamente estar bem identado, encadeado, comentado, ou com nomes de variáveis bons para funcionar… entretanto há uma moralidade que chamamos de “boas práticas”.

Finalmente, vamos para o que efetivamente se trata, o jogo Missão Verde-Oliva projetado/proposto pelo exército brasileiro. Um jogo digital, que também é um artefato computacional, é imbuído de valores éticos (ou morais) e estéticos. Para elaborar esta matéria eu busquei por conteúdos jornalísticos informativos diversos, e também aprendi umas coisas muito exóticas sobre assuntos indiretamente relacionados, por exemplo, que pintar a base do tronco das árvores de branco é nocivo para elas. Só para vocês verem onde eu fui parar… Enfim, as referências online estão no final deste texto, e eu vou tentar cobrir um ponto de cada vez. O que vamos falar aqui? Sobre valores, sobre ética, estética e sobre o jogo Missão Verde-Oliva (MVO). Talvez pareça de início que é apenas pedrada feroz no exército ou no próprio MVO, só que no encaminhamento para o final deixo uma reviravolta curiosa, e uma saída plausível.

America’s Army

Vamos abrir um parênteses e começar pela “inspiração” do MVO.

America’s Army (AA) é um jogo estadunidense desenvolvido e produzido pelo exército estadunidense. Entre o ano de 1999 e 2009 o jogo custou, em impostos dos contribuintes, US$32 MILHÕES. Note que este valor não está corrigido para a atualidade (2021), o que equivaleria a um valor bem mais alto.

A ideia base era relacionada a recrutamento. Nos EUA o alistamento militar não é obrigatório, como no Brasil. E o governo de George W. Bush dedicou aproximadamente US$700 milhões de dólares para propaganda de recrutamento. Eu não sei quanto a vocês, mas estes valores sempre me assustam… e cabe apontar que esse valor é apenas para recrutamento. O jogo é gratuito e está online, operante e funcional até hoje (outubro de 2021).

Lançado oficialmente em 2002, já tem muitas versões. A bola de neve realmente ganhou corpo e proporções enormes, e o jogo conseguiu massa crítica e base sólida de jogadores.

Alguns pontos controversos são importantes:

  • o “investimento” inicial previsto, em cinco anos de projeto, era de US$7 milhões de dólares;
  • os jogadores incorporam militares estadunidenses e o jogo combina dois times de pessoas jogadoras, e neste esquema elas tem a impressão de estar jogando contra “inimigos do exército dos EUA”, mas basicamente são outros integrantes do próprio exército dos EUA (que irônico)…
  • é criticado por avançar uma agenda de militarização da sociedade, focando em aspectos de guerra e violência, ao invés de moral;
  • é criticado por ser um misto de publicidade, propaganda e educação implícita, focando apenas em aspectos fetichistas e extremamente limitados, ao invés de expor a realidade ampla do próprio exército;
  • há uma agenda de divulgação e promoção do jogo em escolas, duramente criticada pela exposição consciente e direcionada de uma agenda de militarização aos jovens menores de idade no ensino médio;
  • duramente criticado pelos próprios veteranos do exército estadunidense, favoráveis à uma agenda de paz e não guerra.

Como ponto positivo favorável, aparentemente o jogo realmente cumpriu seu propósito e auxiliou na alavancagem do recrutamento e na melhoria da imagem pública do exército entre seus jogadores. Não consegui encontrar trabalhos acadêmico-científicos consolidados, publicados e qualificados sobre isso, então é basicamente o que o próprio exército anunciou.

Poderíamos discorrer apenas sobre o próprio AA neste texto, só que nosso interesse é no Brasil, no exército brasileiro e nos brasileiros. Não teria como falar do MVO sem falar do seu “pai” em ideologia. Ademais, o Brasil não é o único país que pegou essa receita e resolveu imitar, em 2009 o exército britânico fez o mesmo. No nosso caso, felizmente demoramos mais de 20 anos para idealizar essa desgraça ideológico-militar e infelizmente ela está para ser efetivamente concretizada.

O exército brasileiro e sua imagem

Este não é um texto sobre o exército, então se quiserem conhecer ou aprender melhor sobre o exército, tem a Wikipédia. Não, eu não vou recomendar a página do próprio exército porque ela é basicamente uma festa propagandística.

O exército brasileiro é uma fábrica de memes. Compete com o BBB, com as eleições, com a Inês Brasil, a Tulla Luana, alienígenas macunaísticos, com o brasileiro desavisado sendo filmado fazendo coisas triviais e viralizando ou com o brasileiro conservador chucro desumano escroque filmado fazendo coisas horríveis… e viralizando. Por exemplo, quando supostamente o Bolsonaro “engrossou” o discurso com os EUA e fez um discursinho meio ameaçador. E só isso já se tornou gatilho para uma enxurrada de memes. Deixo o meu favorito abaixo.

Meme do exército e a famosa pintura branca

Aí pede, né?

Não apenas o exército como instituição é sujeito a estas pérolas relacionadas à sua imagem, os militares dos mais altos escalões também. Como no evento que o general Heleno publicou seu CPF e RG perfeitamente nítidos nas suas redes sociais e a internet, como sempre, não perdoou. O que fizeram ou cogitaram fazer? Inscrever ele como sócio do Vasco, inscrevê-lo como mesário voluntário para as próximas eleições, filiá-lo ao PSOL, fazer um cartão da Renner para ele, assinar o PPV do BBB para ele, dentre outros.

Só que, independentemente de “imagem” ou não, o alistamento brasileiro ainda é obrigatório. Então não faz diferença quem gosta ou não do exército, porque no final das contas você é OBRIGADO a engolir ele, sem água para ajudar.

Precisamos nos indagar sobre a real necessidade de “melhorar” a imagem do exército brasileiro. Este tipo de jogo é consumido, principalmente, por um público infanto-juvenil, e em segundo plano por jovens adultos. Então faz sentido que o exército estadunidense “invista” para que seu jovem perceba-o melhor, é basicamente uma iniciativa ideológica propagandística para angariar mais recrutas. Principalmente enquanto estavam no contexto da guerra do Iraque, quando o exército urgentemente precisava de recurso humano. Não vou entrar no mérito de juízo moral dessa abordagem, isto é, “cooptar quasi-espontaneamente jovens através de um jogo fantasioso para que eles se alistem inebriados pelos valores expostos nesta peça publicitária gratuita de entretenimento”. É algo digno de Goebbels e que Adorno escreveria três livros sobre se ainda estivesse vivo.

Mas é um jogo de violência, Luiz Paulo, os jovens não podem jogar porque a classificação indicativa não deixa”. Isso em ideia, não na prática. Classificação indicativa nunca impediu a grande maioria dos jovens de nada…

Isso é, ao invés do exército estruturalmente e ativamente engajar em uma agenda materialista construtiva, ele resolveu fazer um joguinho para seduzir culturalmente os jovens. Os objetivos, por alto, são impressionar positivamente os jovens entre 16 e 24 anos; melhorar a integração do exército à sociedade; expor a importância dos assuntos de defesa do país. E para isso, senhoras, senhores e outros, vamos desenvolver um jogo de tiro gratuito (tiro gratuito e gratuito de preço, vale as duas interpretações) em primeira pessoa.

Por que “vamos”? Porque esse jogo será desenvolvido com o meu, o seu, os nossos impostos. 😃

Você, responsável pelo seu filho, já estava preocupado dele jogando “jogos violentos demais” na internet. Não se preocupe, o próprio exército brasileiro está desenvolvendo MAIS UM, com o seu dinheiro, para promover os próprios valores e a sua imagem para com os jovens.

O valor FINANCEIRO do projeto

Na década de 2000 fazia todo o sentido os EUA socarem investimento no AA. Claro que tinham opções de investimento bem melhores, sem dúvidas, mas em quesito de priorização e emergência, estava tudo de boa.

O valor inicial do projeto brasileiro é de aproximadamente R$4 milhões.

Agora no caso brasileiro precisamos estender a análise ao contexto, que é o contexto da pandemia de COVID-19. Simultaneamente, há uma crise financeira no próprio Ministério da Defesa. E este valor é o dobro do investido pelo Ministério da Defesa no apoio à presença brasileira na Antártida e o mesmo valor do que foi aplicado em pesquisa aeroespacial durante 2020.

Ainda mais em um caso de emergência generalizada como COVID-19, onde já ultrapassaram 600 mil mortos; ou o ministro da defesa reclamando sobre dificuldades financeiras que podem “comprometer a imagem do Brasil no exterior”. R$4 milhões são alocados para um jogo online, sem resultados claros ou devidamente comprovados (pelo menos para o cenário brasileiro).

E o cenário pode piorar.

Lembra que o AA custou em torno de US$32 milhões em 10 anos. Para fazer um jogo atraente aos jogadores brasileiros jovens, que seja equiparado com outros muito famosos (Free Fire, Valorant, CoD, CS:GO, APEX, dentre outros), um preço como piso seria R$15 milhões de reais iniciais. Iniciais. Para ter um mínimo de concorrência com outros jogos AAA (triple-a). E não estamos nem dizendo qualidade, mas potencial de concorrência.

Este não é um texto sobre jogos triple-a, mas mantendo no custo de desenvolvimento, um jogo nesta categoria, que é o queridinho da massa crítica da juventude (e o que meus alunos jogam, por exemplo), custa mais de US$50 milhões. Sim, dólares. E isso está sendo razoável. Um dos jogos de tiro em primeira pessoa mais bem colocados na indústria, Call of Duty: Modern Warfare 2, custou quase US$300 milhões. E outros, como Valorant, não há transparência sobre os custos de desenvolvimento porque é um produto de uma organização privada. As empresas escolhem transparecer este tipo de informação ou não.

Pensando nisso, o que a gente faz com R$4 milhões? Sinceramente, eu não sei. Isso não paga direito nem os servidores de hospedagem e manutenção do jogo. Considerando também que é um jogo gratuito (como AA), se ele permanecer gerido pelo exército, será o nosso (o meu e o seu) dinheiro que vai custear a operação contínua e longitudinal dele.

Mas pode piorar.

Não é anormal em engenharia de software e gestão de projetos que as partes encabeçando as iniciativas simplesmente “subestimem” os custos. E este pode ser um fator de vida ou morte para um projeto. Porque precisa ser feita uma análise de viabilidade efetiva de uso do sistema. Não uma análise tipo “entrar no reddit de games no brasil e perguntar quem jogaria um joguinho de tiro fps desenvolvido pelo exército brasileiro e gratuito”, uma análise sólida, com método e boa qualidade.

Se você não tem essa noção, é um tiro no escuro. Melhor ainda, é que nem no AA, é brasileiro atirando em brasileiro mesmo. Por que? Dos possíveis cenários, analisaremos 3, (i) colocar mais dinheiro no MVO; (ii) abandonar o MVO; (iii) sustentar o MVO com esta versão inicial super beta. Vamos analisar cada uma?

(i) Colocar mais dinheiro no MVO. Para se equiparar com outros concorrentes GRATUITOS e com a mesma qualidade de serviço e desempenho, precisa injetar uns R$100 milhões. Isso porque ele vai continuar concorrendo com estes adversários que também estão “se aprimorando”. Isto é, quando ele der um passo que o coloque no degrau abaixo deles em 2021, em 2022 eles subiram dez degraus.

É simplesmente ingênuo acreditar que o estado da arte de jogos vai todo frear para assistir o MVO ser desenvolvido e lançado. Chega a ser engraçado.

E PIORA! Vamos pensar com lógica? Se a imagem do exército é ruim, por que as pessoas vão jogar um jogo do exército que é essencialmente um objeto intrinsecamente associado ao exército? Não faz sentido. Elas poderiam jogar um excelente jogo bem desenvolvido e com ultra jogabilidade excelente e inovadora. Mas não é isso que o MVO propõe. E para isso já tem vários outros. Logo, inexequível. Isso porque estamos considerando o jogo nas fronteiras do jogo em si, sem contar publicidade, propaganda, divulgação, gestão de imagem…

(ii) Abandonar o MVO em estágio avançado. Jogaram R$4 milhões no lixo, parabéns.

Mas, curiosamente, este pode ser um resultado positivo ou absurdamente negativo. Positivo, você fez uma licitação e com um processo idôneo contratou um estúdio brasileiro que fez das tripas coração para fazer essa incógnita se tornar realidade concreta e usável, e o projeto foi descontinuado e você aqueceu o mercado interno de jogos. Os profissionais foram pagos, os fluxos ocorreram e o ecossistema de jogos teve um avanço. Eba!

Absurdamente negativo, desde o início a ideia era fazer pagamentos por fora, lavar dinheiro, nepotismo (direto ou indireto) e outras corrupções tradicionais. Todo dinheiro é meramente direcionado para partes já planejadas e o esquema de desvio é óbvio. Foi tudo enviesado, superfaturado e prejudicou o ecossistema de jogos orgânico, criando um pequeno tumor imagético. Uma desgraça!

Em suma, todo bom gestor de projeto sabe que “abandonar o barco” muitas vezes é a melhor opção, só que a gente precisa sempre estar atento aos pormenores dessa estratégia. Às vezes toda a ideia desse barco só foi proposta para que ele afundasse mesmo, e para que apenas pouquíssimos tivessem vantagem desse naufrágio…

(iii) Sustentar o MVO com esta versão inicial super beta. Essa é uma opção mais complexa, e a mais plausível realisticamente. Todavia, esta não é uma opção simples. Sendo um jogo online, e com a expectativa de 15 mil jogadores online e 3 milhões de downloads em até dois anos, há custos de manutenção e sustentação mercadológica envolvidos.

Um jogo online é hospedado em um servidor dedicado, e sem os requisitos técnicos mínimos vai ter atraso (lag) e desconexão, o que os concorrentes já têm resolvido bem, isenta instabilidade pontual. Então não é só o jogo, é toda uma infraestrutura por trás dele.

A sustentação mercadológica é especificamente mantê-lo interessante, vivo e fomentar engajamento. Valorant aproveitou tanto a massa crítica e a rede já bem estabelecida e formada de League of Legends, quanto a cultura de FPS (First Person Shooter) de outros jogos, como CS:GO. Isto é, não “começou do zero”. E MVO não pode aproveitar os antecedentes de AA, como Valorant de CS:GO, já que são massas sociais críticas totalmente diferentes.

E não há garantia de mais verba ou mais capital injetado em MVO a médio e longo prazo, isto é, ele é um jogo gratuito que não se paga e não é pago por ninguém (além de dinheiro público). Se ele não “avançar”, ele morre. E tudo indica que esse é o caminho nesse caso…

Enfim, financeiramente a proposta parece totalmente inviável concreta e realisticamente. Além de estar vinculada à iniciativa pública, o que tem muito mais contras do que prós nesse projeto específico. Parafraseando uma piadinha liberal de má qualidade: não existe hospedagem grátis.

Valor financeiro se torna diretamente relacionado aos valores morais quando extrapolamos a análise aos fatores discricionários do que se está relacionado. Principalmente quando lidamos com dinheiro público e sua alocação. Isso não significa que projetar, produzir, desenvolver, implementar e manter um jogo seja um desperdício ou uma opção sempre ruim (ou, logicamente, pior que todas as outras), principalmente na iniciativa pública. Só que, como já discorri aqui, os fatores conjugados neste caso específico estão, agora sim com um juízo de valor, ruins e surreais.

Agora vamos aos requisitos não-funcionais do jogo. Qual o diferencial de MVO amplamente veiculado pelas mídias? Vamos analisar algumas que são cabíveis de crítica moral.

Requisitos

Tem alguns requisitos triviais que não cabe análise aprofundada, como “jogo ainda deverá respeitar as realidades e as características de armamentos, uniformes e a velocidade do deslocamento de tropas a pé ou em veículos militares do Exército Brasileiro”. Quando lidamos com dilemas morais ou éticos, lidamos realmente com dilemas, e como outros requisitos foram expostos, vou me aprofundar neles.

RQ1. Não poderá mostrar muito sangue “para evitar a ideia de violência exagerada”

Qualquer jogador de FPS sabe que um dos objetivos do jogo é, primariamente, matar seus oponentes com armas de fogo (ou armas brancas se você for um fanático psicopata em potencial). Por exemplo, a dinâmica de CS:GO tem a mecânica relacionada com armar e desarmar bombas, entretanto o elemento central é relacionado com assassinar seus oponentes com as armas disponíveis. Isso porque “armar e desarmar” explosivos também não é lá uma dinâmica pouco violenta… mas vamos focar nas armas e no assassinato mesmo.

Vamos supor que não tem sangue nenhum? Isso muda a realidade de que é uma pessoa assassinando outra com uma arma de fogo? Se o jogo REALMENTE reproduzisse os resultados de um dano causado por essas armas de fogo, a maioria dos jogadores efetivos deixariam de jogar, porque um dos fatores-chave nessa categoria é a fantasia. Os jogadores não querem ver fratura exposta, desmembramento, resultado realístico de balística da entrada e saída de uma bala de fuzil de um corpo humano, partes do corpo estouradas, cérebro espalhado… o problema da violência é o sangue?

Então precisamos de uma “medida áurea” do derramamento de sangue. O quão absurdo isso parece? Porque é. Porque a violência não está “na quantidade de sangue”, está no ato de violência de consciente e objetivamente tentar fuzilar seus oponentes, ou explodir tudo. Depois que você fuzilar alguém, você não está preocupado na quantidade de sangue do evento, porque você FUZILOU ALGUÉM. É um falso moralismo.

O que parece claramente como violência exagerada é não ter nenhuma forma de resolver seus problemas ou conflitos sem apelar para elementos de violência, como armas de fogo, armas brancas ou explosivos (ou superpoderes, dependendo do jogo). Enquanto a maioria esmagadora de militares e ex-militares que engajaram em ações deste tipo são totalmente contrários a estas experiências ou memórias, ou seus usos como entretenimento barato, estes jogos incentivam elas como “diversão” e não como o que são: violência.

Bônus: sobre violência em jogos.

Neste texto não vou entrar no tópico de violência e representação de violência em jogos digitais, porque isso merece um texto por si só. Este é um tema em aberto, e em disputa, na literatura. Mas pensando sobre princípios e sobre consequências, o encaminhamento converge.

Sobre princípios, pensando pela perspectiva deontológica, esta categoria de jogo é efetivamente imoral. Porque elas só oferecem a saída pela violência e seu agenciamento está diretamente relacionado com elementos de violência, como armas e interações relacionadas a assassinato e morte. Por consequência, pensando na perspectiva teleológica, o debate é dominado por disputas acadêmico-científicas, se estes jogos tornam as pessoas mais violentas; se este “tornar mais violenta” se reflete nos comportamentos concretos dos envolvidos; se dessensibiliza seus jogadores; se casos de violência foram motivados ou inspirados por jogos; se isso cria nos jogadores a ideia de que a violência é o caminho mais fácil e rápido para resolver as coisas; se estes elementos são basicamente simbólicos e não afetam concretamente os jogadores; se estes jogos servem como “válvulas de escape” para negatividade; se o prazer oriundo dos jogos alivia a intenção das partes de engajar em violências de fato; se a indústria de jogos se aproveita e lucra com violência recreativa; dentre outros.

Concluindo este pequeno trecho: o jogo é violento, o jogo é promovido usando elementos de violência; o que ocorre no jogo é violência; fomenta uma ilusão recreativa de algo fortemente traumático e horrível para muitos, e que serve de entretenimento para outros. Estes elementos são objetivamente verdadeiros, os demais estão abertos a debate.

RQ2. Restrição de locais representados no jogo e mapas para jogar

Como a maioria das matérias indica, não poderá ter ambientação de jogo em favelas ou locais de fragilidade social. O que faz sentido, no mundo das ideias e de um idealismo barato.

No mundo real o poder executivo invade as favelas e comunidades, mesmo sem permissão ou com proibição para tal. Faz todo sentido que o exército queira promover esta imagem de afastamento de violência contra grupos marginalizados e fragilizados, só que essa não é a situação real. E isso não apenas para operações militares em favelas ou comunidades, também para cumprir medidas de reintegração de posse e expulsar pessoas de ocupações. Se considerarmos que eticamente as ponderações, e seus consequentes resultados, devem gozar de qualidades associadas à consciência, liberdade e racionalidade, o jogo, de fato, poderia se passar em uma favela.

Por outro lado, são conflitos em favela que fomentam grande parte do imaginário violento da grande mídia para consumo. O sucesso dos filmes Tropa de Elite está aí como demonstração. E o famoso ideário absurdo do “favelado” ou do “pobre preto” como vilão, ou vítima despersonificada e sem humanidade total; e o poder executivo de operação representa o paladino dos valores morais progressistas e positivos. Diferente dos EUA, o Brasil não tem a tradição de missões de guerra, então onde o jogo vai se passar? Canudos? Ou em mapas de armazém aleatórios sem localização real…?

Mais do que isso, é irônico que outros jogos, como CS:GO, tenham “mapa de favela” e o próprio jogo do exército brasileiro não. “Mas é errado representar ambientes como favelas em jogos assim”, eu concordo, mas qual mudança concreta ou instrucional isso gera? Se tiver um mapa de favela, os militares vão se sentir motivados a “invadir favelas”? E se as pessoas da favela ficarem indignadas (com todo direito), excluir um mapa representando uma favela de um jogo do exército vai fazer com que não ocorram mais operações militares nestes locais? Isto é, é uma preocupação simbólica que se resume a isso, simbolismo e imagética barata. Concretamente, tudo continua a mesma coisa, ou até pior.

RQ3. Os oponentes, inimigos, adversários…

Enquanto no AA os jogadores lutam ilusoriamente uns contra os outros, com a ilusão de que uns são inimigos dos outros, mas que efetivamente ambos são militares estadunidenses, em MVO jogadores não jogam contra jogadores. Porque em MVO os jogadores só podem jogar contra a máquina (bots).

Ou o jogo usa a mesma ilusão do AA, onde todos são militares uns matando os outros. Ou o jogo vai ter um problema complicado, que é abrir mão da competição entre jogadores. Para quem joga ostensivamente ou está envolvido nas práticas desta cultura é sabido que isso é uma limitação bem complicada, principalmente porque parte da diversão consiste em confrontos entre jogadores. Não há glória, diversão ou relação dialógica de disputa com bots, porque em jogos de confronto e potencial competição as relações de disputa entre partes é uma variável crucial para muitos. Apesar dos problemas de habilitar jogadores contra jogadores (como comportamento tóxico), quando não há interação social negativa a experiência costuma ser muito gratificante, divertida e recompensadora. E muitos dos elementos de entretenimento estão disponíveis apenas para interação de conflito entre pessoas, até por isso que jogos colocam as modalidades com bots como predecessoras ou como preparação para os modos entre jogadores.

Por trás, não há uma justificativa plausível para “só pode jogar com militares brasileiros”. Isso, óbvio, excluindo ideologia frágil. Porque dizer que jogar com militares para derrotar seus inimigos com armas melhora a imagem do exército com os jovens entre 16 e 24 anos é, além de improvável, absurdo. Seria como dizer que jogadores de CS:GO que gostam de jogar como “terrorista” hoje são terroristas ou anseiam ser terroristas. É óbvio que seria totalmente contraproducente um agente cultural destruir a imagem e os valores da própria organização que o mantém ou representa, só que o inverso não se confirma. Não é porque jogadores incorporam personagens “inimigos” do exército que eles, efetivamente, formam uma personalidade ou motivação anti-exército. Tem uma falácia lógica no meio.

Mas agora que analisamos os três requisitos mais comentados pela mídia, vamos para o que considero o central. O imaginário social e micromito do exército.

Imaginário social e micromito do exército

Enquanto as forças armadas, especialmente o exército, dos EUA (e de vários países europeus) são fortemente associadas a missões de guerra, invasão, colonização militar, violência e domínio; o exército brasileiro é fortemente associado com missões de paz, missões humanitárias e causas sociais.

Então eu fiz uma busca rápida procurando quais missões, independente de categoria, o Brasil se envolveu recentemente. A única que encontrei explicitamente e bem documentada foi a missão brasileira no Haiti entre 2004 e 2017. E é justamente uma “missão de paz”, mesmo que haja certas controvérsias sobre as consequências e efeitos dela…

Tradicionalmente, e como regra e não exceção, o Brasil não se envolve em missões de guerra.

Honestamente, durante a pesquisa sobre as missões brasileiras encontrei o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Alencar Filho (2019) intitulado “As atividades do Exército Brasileiro em prol da sociedade e do desenvolvimento nacional: operações de não guerra e ações indiretas”. E desconsiderando o aspecto enviesado às críticas positivas, beirando quase uma obra publicitária, até o momento eu não sabia que o exército mantinha ações positivas, não destrutivas, não violentas ou construtivas tão pertinentes. E isso, sinceramente, melhorou a imagem que eu tinha da instituição.

Conhecer mais estas tais operações de não guerra, com intuito de progresso social, manutenção da paz e para causas humanitárias fez exatamente o inverso do que eu pretendia com este texto, criticar um projeto do exército. E mesmo que o TCC tenha sido redigido com um excesso de elogios e adjetivos positivos inadequados, o que expõe um claro juízo de valor moral parcial, os juízos de fato são ricos e bem relatados.

Algo que me chamou atenção em Alencar Filho (2019) foi o reforço de que as atividades de não guerra e ações indiretas preparam os envolvidos para situações de conflito ou confronto, como seriam guerras, e edificam valores como disciplina, senso de responsabilidade, respeito e espírito aguerrido. Justamente porque nestes objetivos o medidor de sucesso não é, simplesmente, assassinato, destruição, violência ou coerção. As operações visam melhorar a vida, e respectiva expectativa de vida, dos brasileiros envolvidos e manter a qualidade do estado, visando a ordem e a paz.

E isso é o que realmente o exército brasileiro tem para oferecer, em valores e princípios, aos próprios brasileiros e ao Brasil. Não um mero AA brazilian edition. Pode-se argumentar que um jogo com intenção humanitária ou social não é apelativo aos jovens. Neste caso o objetivo é apelar para um micromito fetichista de violência e construir um imaginário social falso de violência? Ou instruir os jovens sobre ações sociais, construtivas e positivas realistas que o exército realiza, construindo um imaginário social sincero de causa social?

No fim, é uma questão de escolhas e opções, principalmente para um jogo gratuito. Aderir à colonização da agenda de agenciamento da violência típica da cultura estadunidense, e que está de acordo com as ações do exército dos EUA; ou se esforçar para superar o desafio de projetar e desenvolver um jogo com requisitos e ideais realistas e construtivos, que seja interessante e genuinamente divertido?

Porque se o jogo é para promover e melhorar a imagem do exército, e o exército se manifesta através de sua cultura, e esta cultura é formada indissociavelmente de seus valores, por que cometer os mesmos erros e recair nas mesmas controvérsias que AA? Não educar no sentido da violência e resolução destrutiva, mas mostrar que o exército tem iniciativas positivas que, em quase todas as suas ações, são não-violentas.

Construindo um imaginário social construtivo, o exército pode motivar jovens a repensar sua classificação da instituição, baseado nos benefícios efetivos de suas ações. Essa proposta de construir uma percepção de violência é enganosa para o exército, para a sociedade e para os próprios jovens. Para o exército porque mente sobre sua própria imagem, sobre seus valores, o que está em conflito com seus ideais de honestidade; contra a sociedade porque avança o imaginário social de que o exército é violência, de que as ações que a instituição engaja são basicamente todas violentas e que a violência é a solução; e aos próprios jovens porque cultiva a indústria de jogos violentos, que não traz nenhuma instrução ou educação válida à própria vida, mesmo que indiretamente (saber nomes de armas não te ajuda em nada para nada, só se você quiser ser um sem noção que não sabe fazer um arroz, mas sabe nome de pistola de jogo…), e leva eles a crer que esta é a carreira militar no exército e que ações de combate são simples como em joguinhos. Por exemplo, “se tem menos sangue é porque a violência ou o dano são menores” ou “meus inimigos sempre são desconhecidos despersonificados imaginários e apenas as vidas dos militares que valem mesmo”.

E ainda vou propor um encaminhamento controverso, que eu mesmo desgosto em grande parte, o jogo pode ter dinâmicas internas diversas. Então mesmo que haja a possibilidade de optar pelas “missões violentas de guerra” (o que, como já foi dito, é fantasia) também pode ter a possibilidade de optar pelas missões de paz, humanitárias ou para causas sociais, com seus desafios específicos e não implementadas como “infantiloides”, sim levadas a sério.

Encerrando este tópico, vamos pensar hipoteticamente. Vamos supor que esse jogo baseado em violência represente o que o exército quer vir a ser (como pretende ser enxergado), será que essa imagem violenta não atrairá mais interessados em incorporar a instituição pelos seus próprios valores de violência? Isto é, uma instituição violenta é um atrativo para interessados com valores próximos. O que eu vou fazer se eu chego lá e não encontro a violência que eu esperava (que o MVO me “vendeu”), eu vou agenciar esses valores quando surgir oportunidade. 

Por fim…

Assim como os críticos se mostraram apreensivos quanto à probabilidade de sucesso deste projeto, aqui analisamos alguns elementos relacionados a valores, financeiros, de requisitos ou associados à realidade da instituição.

Por mais que o exército queira embarcar nesta onda de mercado lucrativo de jogos e aproveitar a crescente adesão da sociedade aos mesmos, a proposta parece não ter diferenciais determinantes se comparada com seus concorrentes. Poderíamos considerar o apelo aos elementos brasileiros, como nomes de armas ou veículos militares nacionais, assim como a proposta de respeitar as etnias e raças brasileiras. Só que se pensarmos bem, será que esses elementos realmente são apelativos e interessantes per se?

Tentar “gamificar” os valores e operações militares, usando de micromitos de violência disseminados pelas grandes mídias (televisão, cinema e jogos AAA), só engana o jovem dos reais valores, princípios e ideais do exército. Por outro lado, será que um jogo sem apelo à violência, que parece ser um chamariz apelativo, faria sucesso e geraria uma mudança positiva na percepção da imagem do exército? Ou cumpriria a estimativa da quantidade de jogadores esperada?

E durante a crise econômica do estado, sucateamento do ministério da defesa, pandemia de COVID-19 e um orçamento ínfimo se comparado com jogos concorrentes, será que é o momento ideal para essa ideia? Os próprios valores, inclusive morais, do projeto estão pouco convincentes realisticamente. 

Jogos são uma forma de apelar ao universo da imaginação e fantasia, sem uma âncora fixa e presa à realidade, que podem brincar com os limites da ética e da estética, seja para entretenimento, instrução, agenciamento específico ou outros objetivos conscientes ou inconscientes, diretos ou indiretos. Só que nesse caso não estamos lidando com pura fantasia e há uma âncora bem firmada já desde suas premissas, porque jogos como CS:GO ou Rainbow Six Siege não refletem o exército em si, sejam suas práticas ou valores. Ou se espremermos muito a apelação à exceção, podemos dizer que refletem e mesmo assim com muitas outras restrições a mais. 

Desde o início o projeto falha à sua premissa, porque se é “melhorar a imagem do exército” e o que está representado não é a imagem do exército, o marco zero está comprometido. E se, como Alencar Filho (2019) indica, missões de não guerra e progresso social são tão quão importantes ou relevantes, por que não expor esta imagem?

Vamos ver as cenas dos próximos capítulos. E acima de tudo, mantermo-nos críticos em relação aos valores, e discursos estranhos com apelo a elementos dúbios e nebulosos. Um jogo do exército pode ser uma excelente ideia, respeitando a realidade das operações e o dia-a-dia dos próprios militares e sem apologia gratuita à violência.

Referências online

Disponíveis em 18/10/2021

  1. uol
  2. olhardigital
  3. globo ge
  4. tecmundo
  5. tudocelular
  6. yahoo
  7. globo g1

Referências

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ALENCAR FILHO, J. L. (2019) As atividades do Exército Brasileiro em prol da sociedade e do desenvolvimento nacional: operações de não guerra e ações indiretas. Trabalho de Conclusão de Curso. Especialização em Ciências Militares. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro.
PEREIRA, R., Baranauskas, M. C. C., da Silva, S. R. P. (2010) Softwares Sociais: Uma Visão Orientada a Valores. Em Proceedings of the IX Symposium on Human Factors in Computing Systems, pp. 149-158. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
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Sobre as pessoas autoras

Luiz Paulo Carvalho

Bacharel em Sistemas de Informação (SI) pela UNIRIO. Mestre em Informática, com ênfase em SI, pelo PPGI/UNIRIO. Doutorando em Informática pelo PPGI/UFRJ, integrante do Laboratório CORES. Bolsista e pesquisador CAPES. Tópicos de interesse são, não limitados a, Ética Computacional, Discriminação e opressão social em SI, Transparência de SI, Modelagem e qualidade de processos de negócios, Privacidade e proteção de dados, CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade).

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