ChatGPT: concepções epistêmico-didático-pedagógicas dos usos na educação

ChatGPT: concepções epistêmico-didático-pedagógicas dos usos na educação

DESTAQUES:

  • O ChatGPT está sendo muito usado para diversas finalidades por estudantes universitárias/os.
  • O ChatGPT tem potencial para apoiar estudantes da escola básica, pois tem bons conhecimentos e boa capacidade de raciocínio sobre os conteúdos científico-educacionais.
  • O computador já era usado na educação como: máquina de ensinar; “ferramenta” para a construção de conhecimento; e como meio de interação social. O ChatGPT consolidou duas outras formas de usar o computador na educação: como conversador e como coautor.  Essas novas formas podem reconfigurar profundamente a educação.
  • Como conversador, o ChatGPT está sempre disposto a explicar (quase) tudo, como se fosse um professor particular disponível 24/7.
  • Como coautor, o ChatGPT está sempre disposto a construir novas obras conosco, em processo de autoria híbrida humano-IA.
  • Docentes assumem diferentes posicionamentos em relação ao ChatGPT: negacionista, temorosa(o), indiferente, entusiasta ou crítica(o).
  • É preciso investir na formação docente para o uso pedagógico e crítico do ChatGPT.

Autores:  Mariano Pimentel; Felipe Carvalho (6/6/2023)
Revisão: Alvanisio Damasceno
Ilustração da capa: Mariano Pimentel e Dall-e

 

O objetivo deste texto é discutir as concepções epistêmico-didático-pedagógicas relacionadas aos usos do ChatGPT na educação.

Este já é o nosso quinto texto sobre ChatGPT e Educação, o que é um sintoma evidente de que estamos afetados. Escrevemos para lidar com as nossas inquietações, questões e dilemas que emergem da experiência de uso do ChatGPT. Implicados com essa temática, construímos, desconstruímos e reconstruímos sentimentos e pensamentos buscando produzir sentidos provisórios; organizamos as ideias para ficar com a impressão de que conseguimos compreender um pouco melhor o fenômeno. Para evitar a armadilha da visão utópica com seu otimismo eufórico e ingênuo, ou, no outro extremo, a distopia com seu pessimismo paralisante e despotente, é preciso ver tanto as potencialidades quanto os riscos e desafios dessa tecnologia. Queremos tecer conhecimentos sobre o ChatGPT em nosso mundo, mais especificamente no mundo da Educação. Escrevemos para entender o lugar dele e o nosso, para inventar modos de coabitar o mundo com ele. Sua existência produz dúvidas sobre o presente e o futuro, o que nos faz querer conversar com outras pessoas para saber o que estão achando disso tudo, por isso seguimos escrevendo e participando de debates. 

 

O que as/os universitárias/os nos ensinam sobre os usos do ChatGTP?

Para investigarmos o fenômeno se dando, questionamos algumas/uns estudantes do Bacharelado de Sistemas de Informação, em Computação, sobre como usam o ChatGPT no cotidiano. Os relatos, aqui publicados com autorização das/dos estudantes (umas/uns preferiram ser identificadas/os pelo nome verdadeiro, outras/os por pseudônimo), são reveladores de como as práticas de estudo-aprendizagem estão sendo reconfiguradas por essa tecnologia:

Atualmente eu não estudo sem o ChatGPT. […] Obviamente não confio cegamente, pois sei da sua fama de alucinar, mas ele dá um bom norte para mim. Para a faculdade, eu o utilizo para praticamente todas as matérias, coisas que geralmente eu teria de passar horas pesquisando na internet, ele me entrega com precisão após eu lhe fazer algumas perguntas. […] A gente tem de usar MUITO. Conhecer ele cada vez mais, ficar íntimos. Aprender a mandar aquele comando preciso e explorar toda sua inteligência. (Mariana Esmaile Massine Santos)

Do zero ao rotineiro, acabei imersa no uso de ChatGPT. Fico cada vez mais fascinada com as possibilidades, facilidades e descobertas que ele me proporciona. Em vez de realizar uma busca extensa no Google, opto por utilizar o ChatGPT, pois ele me fornece respostas diretas, citando exemplos e explicações, o que me poupa tempo e energia. Além disso, ele tem sido valioso no meu processo de redação e revisão de trabalhos acadêmicos. […] Se alguma disciplina me apresenta um conteúdo novo, eu logo penso: “vamos ver o que o ChatGPT diz sobre esse tema”. Por exemplo, houve uma semana em que me ausentei das aulas e, após saber quais os conteúdos que foram dados, foi muito fácil e rápido entrar na plataforma [ChatGPT] e conseguir ter uma breve noção do que foi visto. A utilização constante do ChatGPT se tornou parte integrante da minha rotina acadêmica. Atualmente, dificilmente passo um dia sem abrir a plataforma e recorrer a ela para fazer perguntas ou buscar informações sobre os mais diversos assuntos. (Joana Lopes dos Santos)

Não é raro o sentimento de ler sobre um determinado assunto durante uma hora inteira e terminar com a impressão de não ter entendido realmente o que aquilo tudo queria dizer. Particularmente, descobri recentemente que o ChatGPT é uma ótima ferramenta de apoio para que as coisas façam sentido na nossa cabeça. Se pedimos ao ChatGPT para explicar algum tema complexo de forma simples, ele se prova extremamente competente em desenvolver esses resumos. Se logo após a resposta escrevermos “ainda não entendi. Explique como se eu tivesse 5 anos de idade”, a explicação vem ainda mais simplificada, com uma linguagem ainda mais acessível. A minha experiência tem sido positiva nesse aspecto; recomendo! (Caio Rodrigues)

Já usei para fazer várias atividades em sala de aula, inclusive solicitadas pelos próprios professores, afinal grande parte das disciplinas que estou cursando este semestre abordaram de alguma forma o uso do ChatGPT, principalmente para atividades como questionários, resumo e revisão de texto. Já utilizei para tirar dúvida relacionada à programação, onde tive um ótimo resultado; e por curiosidade também testei o uso como tradutor que, embora não tenha pedido traduções muito complexas, não houve nenhum erro por parte da IA. […] No entanto, acredito que não posso confiar cegamente nas respostas que obtenho ali, e sempre reviso para verificar se realmente está correto. (Rebeca Calanca Góes)

Toda vez que preciso fazer algum trabalho da faculdade, eu utilizo a IA. Sempre peço para resumir artigos, explicar textos, destacar alguns pontos ou até mesmo para preparar um roteiro de apresentação sobre algum tópico. Nem tenho mais utilizado o Google para buscas, vou logo nele, mas também já percebi que ele dá algumas respostas erradas… Então eu não confio 100% no ChatGPT, ele só é mesmo meu copiloto acadêmico. (Allanis Cunha Costa)

Quando estou estudando sobre algo, eu gosto de debater ou explicar a matéria para outro estudante, isso me ajuda a dominar melhor o tema. Uso o ChatGPT mais como um debate do que para ele me ensinar. Já o utilizei para me ajudar a estruturar o conteúdo que vou apresentar, para dar ideias de como argumentar sobre determinado assunto, ou para ele me dizer palavras que escaparam da minha mente. Serve para ter ideias de como fazer a tarefa e perceber que você tem seu jeito próprio ainda de lidar com o ChatGPT e o estudo. (Paulo Gabriel Alves Fontana)

Novas rotinas com o ChatGPT. Após descobrir o ChatGPT e entender seu potencial, considero que realizei algumas mudanças de hábitos para utilizá-lo ao meu favor nas tarefas do dia a dia. Atualmente utilizo o ChatGPT para grande parte das coisas que preciso de respostas e que iria normalmente pesquisar no Google. Uso também para alguns casos específicos, para me explicar de forma minuciosa pedaços de código no momento que estou estudando e tentando aprender alguma coisa nova, também utilizo para corrigir códigos que eu mesmo escrevi e não consegui achar o problema sozinho ou estou buscando melhorar a eficiência. (Artur Macedo Guimaraes)

Confesso que uso o ChatGPT constantemente em vários momentos do meu dia. Já usei para me ajudar com trabalhos, apresentações, provas, entrevistas de emprego, […] até agora tem me ajudando bastante a ter um “norte”, indicar algo que não percebi ou ter outras interpretações. O que eu mais gosto de fazer no momento é pedir para o ChatGPT resumir alguma coisa para mim, por exemplo um artigo. Muitas vezes não tenho tempo para ler algo muito extenso, então os resumos me ajudam bastante. Mas não gosto da ideia de usar apenas ele para tudo. O ideal é sempre ter inúmeras fontes e não depender apenas de uma. (Viviane Tranquilino)

Interessante notar que muitas/os estudantes estão preferindo consultar o ChatGPT em vez de usar um mecanismo de busca na web. Muitas/os o utilizam como se fosse um professor, pedem para que ele explique e ajude a dar sentido a um conteúdo, que ajude a fazer uma atividade, resuma um texto ou faça uma recuperação da aula perdida. Há até quem debata com ele. Outras/os o utilizam para construir coisas: uma redação, uma apresentação, uma tradução, um código de programação. Muitas/os estão fazendo uso “rotineiro”, fazem “uso constantemente em vários momentos do dia”, estão criando “novas rotinas com o ChatGPT” ao ponto de “não estudar sem o ChatGPT”, pois ele “muda tudo”. Para Mariana, por exemplo, é preciso “conhecer ele cada vez mais, ficar íntimos”, talvez ao ponto de nossa cognição se hibridizar à IA, nos tornando seres híbridos, neo-humanos (SANTAELLA, 2022).

Rebeca revelou que vários professores do curso em questão já pedem para os alunos usarem o ChatGPT, que façam algumas atividades com ele. Essa é outra reconfiguração em curso, as/os próprias/os professoras/es estão o transformando em um recurso no processo de ensino-aprendizagem. Se não se pode impedir que as/os estudantes o usem, é melhor juntar-se a ele, considerá-lo um aliado educacional em vez de um inimigo a ser combatido.

As/os estudantes não são “idiotas culturais”, não aceitam tudo o que o ChatGPT apresenta como resposta, não são acríticos: “não confio cegamente, pois sei da sua fama de alucinar”; “já percebi que ele dá algumas respostas erradas… Então eu não confio 100% no ChatGPT”. Para lidar com os problemas, as/os estudantes criam suas táticas: “descobri que ‘falando’ do jeito certo é possível obter resultados muito melhores e mais precisos”; “não o uso pra [pesquisar] atualidades”. As/os estudantes já entendem que ele não serve para tudo: “o ideal é sempre ter inúmeras fontes e não depender apenas de uma”; “ChatGPT não deve ser a única maneira de aprender. É uma excelente ferramenta de aprendizado, mas na minha opinião, ainda não pode ser usada sozinha” (Walter Saldanha Pereira Filho).

Por outro lado, embora amplamente difundido e usado pelas/os estudantes do curso em questão, algumas/uns delas/es ainda não o utilizam com muita frequência: “Não faço um uso muito intenso do ChatGPT, não vejo formas, por enquanto, de que ele me agregue algo.” (Leandro Cesar Coelho da Silva) Para Fernando, o pouco uso que faz do ChatGPT é decorrente dos problemas que ele apresenta; pode ser que esse estudante ainda esteja se adaptando, não tenha ainda desenvolvido boas táticas para lidar com os problemas do ChatGPT, que esteja passando por uma etapa de transição:

Por mais que seja tentador, não venho utilizado tanto a IA nos meus estudos. Como ainda há dúvidas sobre a veracidade das informações que o ChatGPT nos diz, quando se trata de assuntos dos quais não sei muita coisa, tento evitar usá-lo. Porém em casos que já conheço um pouco do assunto ou em que encontrei uma resolução não muito clara no Google, por exemplo, eu recorro ao ChatGPT. Pode-se dizer que ele é o meu “último recurso” caso dê tudo errado. E eu admito, as respostas que ele me apresenta, por mais que eu fiquei desconfiado sempre, são muito bem explicadas e costumam fazer sentido, o que me faz questionar se eu deveria começar a utilizar o ChatGPT com mais frequência ou talvez migrar totalmente para o uso da IA no meu dia a dia. (Fernando Luis Ramos Vieira)

Nas próximas seções deste texto, discutimos-teorizamos esses diversos usos que as/os estudantes disseram estar fazendo do ChatGPT em seus processos formativos. Essas discussões-teorizações são importantes para nos ajudar a dar sentido a algumas das concepções epistêmico-didático-pedagógicas de seus usos emergentes na educação.

 

ChatGPT também é útil na educação básica?

O ChatGPT surpreendeu o mundo por ser capaz de discorrer sobre quase todos os assuntos a uma velocidade sobre-humana. Com sua interface tão simples quanto os mecanismos de busca na web, basta fazer uma pergunta que ele imediatamente se põe a escrever de maneira coerente e articulada. Tudo muito simples e arrebatador. Mas, para meu pai (o do primeiro autor deste artigo), o ChatGPT foi uma decepção. Para demonstrar o seu potencial, propus que fizéssemos alguns testes. Primeiro pedimos que ele escrevesse um conto como se fosse Guimarães Rosa, mas ele fracassou porque o ChatGPT conhece pouco de nossa literatura brasileira; afinal, feito por uma empresa americana, volta-se para o público que fala inglês, sendo esse o idioma de 93% dos textos utilizados para o aprendizado inicial do GPT-3; para nós, lusófonos, foram dedicados apenas 0.5% desses textos, essa pequena amostra foi tudo o que ele aprendeu em português. Depois pedimos que ele listasse as pessoas mais famosas de nossa cidade, Barra do Piraí, uma cidade do interior do Rio de Janeiro com 100 mil habitantes. Em vez de dizer que não tinha informações sobre a nossa cidade, ele começou a dar informações falsas dizendo que alguns artistas famosos eram de lá. Naquela época ainda não entendíamos a limitação do conhecimento do ChatGPT e estranhamos aquelas mentiras deslavadas. É preciso conhecer essas limitações-características para nos darmos melhor com essa tecnologia, caso contrário inevitavelmente encontraremos a frustração. Conhecendo um pouco melhor suas potencialidades, vamos aprendendo a identificar em que situações ele é útil.

A empresa OpenAI, desenvolvedora do ChatGPT, segue realizando investimentos para evoluir o modelo de linguagem GPT: em março deste ano lançou a versão GPT-4 que tem mais capacidade de raciocínio, mas é preciso assinar a versão ChatGPT Plus a um valor de U$20/mês (o acesso à tecnologia de ponta segue sendo marcado pela relação de poder). Dada a rápida adesão da sociedade ao ChatGPT e os investimentos bilionários, em dólares, essa tecnologia seguirá avançando a passos largos. Contudo, mesmo a versão gratuita do ChatGPT tem uma ótima performance em termos de conhecimentos científico-educacionais. Fizeram o ChatGPT responder às questões do Enem 2022 e ele acertou mais questões do que a grande maioria das pessoas que fizeram aquele exame. No geral, o GPT-3.5 acertou 69% das questões, e o GPT-4 acertou 80% das questões (para essa avaliação, foram removidas as questões que exigiam compreensão de imagem). Pouquíssimas pessoas acertaram mais questões que o GPT-4; de fato, apenas 1.801 pessoas das 2.344.823 que fizeram as quatro provas. Os pesquisadores já sabem como ensiná-lo a acertar mais questões, dando alguns exemplos e instruções no prompt para que ele realize um encadeamento-de-pensamento (CoT), o que o faz raciocinar ainda mais, aí ele chega a acertar 87,3% das questões (NUNES et al., 2023); nesse caso, apenas 39 pessoas teriam acertado mais questões que ele no  ENEM 2022. É verdade que ele AINDA não é muito bom em matemática (o GPT 3.5 chega a errar mais que a média dos humanos), mas, com os investimentos financeiros e novas pesquisas, ele continuará sendo aperfeiçoado e em muito breve nenhum humano acertará mais questões que ele.

Enem 2022: performance do GPT em comparação à dos Humanos

ChatGPT e ENEM 2022ChatGPT e Linguagens e Códigos (ENEM 2022)ChatGPT e Ciências Humanas (ENEM 2022)
ChatGPT e Ciências da Natureza (ENEM 2022)ChatGPT e Matemática (ENEM 2022)
Fonte: (
NUNES et al., 2023; Microdados do Enem 2022)

Esses resultados confirmam que o GPT pode ser útil para quase todas/os estudantes em diversas situações de aprendizagem escolar. Com essa discussão, queremos que até as pessoas decepcionadas e descrentes tenham certeza de que o ChatGPT tem bons conhecimentos e boa capacidade de raciocínio sobre os conteúdos científico-educacionais, mesmo no idioma português, e que ele seguirá sendo aperfeiçoado. Essa certeza é nosso ponto de partida para as reflexões que tecemos neste texto.

 

ChatGPT (não) é um robô de conversação?

Ontologia do ChatGPT

Antes de partirmos para a discussão pedagógica, primeiro precisamos compreender melhor o que o ChatGPT realmente é (e o que não é). A empresa OpenAI caracteriza o ChatGPT como um chatbot, um robô de conversação. Não foi assim que nós o percebemos inicialmente, não nos sentíamos conversando porque ele não puxa assunto, não joga conversa fora, não quer saber sobre nossas vidas, nunca nos faz uma pergunta.

Em nosso contato inicial, achamos que o ChatGPT era uma nova forma de apresentar conteúdos da web, pois há algumas semelhanças com os mecanismos de busca: sua interface contém uma única entrada de texto, ele fica aguardando digitarmos algo para depois nos apresentar uma resposta com base nos vários textos que ele já processou da internet. Pensamos que a novidade seria o formato do conteúdo que ele entrega, uma resposta direta, sem nos fazer perder tempo vasculhando as milhares de referências que os mecanismos de busca apresentam para que a/o própria/o usuária/o investigue até descobrir por si mesma/o a resposta adequada ou decida mudar a pergunta para tentar refinar a busca. Contudo, em seus primeiros meses de lançamento, ele ainda não podia fazer buscas na web, seu conhecimento estava limitado às informações publicadas na internet até 2021, ano em que foi treinado. Após 3 meses de lançamento, a Microsoft integrou o GPT ao Bing (ENDICOTT, 2023) e o caracterizou como um “copiloto” para navegar na web. A OpenAI fez um movimento recíproco: integrou o Bing à versão beta do ChatGPT Plus (FIGUEIREDO, 2023), que passou a ler conteúdos da web — agora já podemos dizer que o ChatGPT também faz buscas na web, embora esse não seja o seu objetivo principal. A Google, como resposta ao Bing e ao ChatGPT, lançou o Bard, uma inteligência artificial integrada à web ainda não disponível em nosso país até o momento de publicação deste artigo. Veremos, nos próximos meses e anos, uma corrida para disputar quem vai criar o melhor mecanismo de busca na web assessorado por uma inteligência artificial conversadora com a/o usuária/o.

ChatGPT busca na web

Outra caracterização razoável para o ChatGPT é considerá-lo como um assistente pessoal digital inteligente, uma espécie de Alexa que realiza tarefas e serviços simples a partir dos comandos que damos por voz. Sim, o ChatGPT responde aos nossos comandos, que por enquanto precisam ser digitados, e realiza tarefas úteis como nos dar uma informação, resolver um problema, traduzir um texto, escrever um programa de computador etc. A cada comando — “faça isso” —, o ChatGPT nos dá uma resposta. A semelhança é ainda maior porque os assistentes virtuais inteligentes incorporam um chatbot para simular conversas humanas para interagir conosco. A diferença é que o ChatGPT não foi projetado especificamente para realizar essas tarefas ou serviços; suas respostas elaboradas nos mostram que sua finalidade e potencialidade são outras.

Podemos considerar o ChatGPT como o mais novo oráculo do nosso século? Faça uma pergunta qualquer que ele responderá objetivamente, sem enigmas. É claro que o GPT não está em contato direto com os deuses, mas se aproxima de um oráculo no sentido que seu conhecimento é sobre-humano, pois ele processou mais textos do que um ser humano é capaz de ler no tempo de uma vida. Um ser humano adulto lê, em média, 250 palavras por minuto (BRYSBAERT, 2019); o GPT-3 processou 195.380.885.914 palavras (GPT-3, 2020); para ler todas essas palavras, um humano demoraria aproximadamente 1,5 milênio se ficasse lendo sem parar, 24/7. Sendo sobre-humano, mas não divino, oráculo não é a melhor forma de caracterizar o ChatGPT. E tenha cuidado: embora ele não responda com enigmas, pode mentir acreditando falar a verdade, ter uma “alucinação”, nome dado pela empresa para caracterizar esse problema (OPENAI, 2023, p.6).

Se o ChatGPT responde a perguntas, podemos caracterizá-lo como um entrevistado. Entrevista não é conversa, portanto não seria um robô de conversação, não de acordo com o clássico modelo de conversação (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, [1974] 2003). Na conversação livre, a distribuição relativa de turnos e o que cada um diz não está previamente especificado, diferentemente do que ocorre na interação com o ChatGPT, em que é imposto um rígido sistema de troca de turnos caracterizado pelos pares conversacionais Pergunta humana — Resposta do ChatGPT. Portanto, em vez de robô de conversação, o mais correto seria chamá-lo de robô entrevistado.

Seja no papel de entrevistado ou de conversador, a controvérsia é se podemos considerar nossa troca de textos com a máquina como sendo uma conversa. A conversação, até então, era caracterizada como uma atividade realizada pelos humanos. Podemos já ampliar o conceito de conversação para considerar que as máquinas também são capazes de conversar conosco e entre elas? Alguns linguistas, como Noam Chomsky (2023, n. p.), parecem contrários a essa caracterização: “O ChatGPT é, assim, um exercício inteligente de simulação. Percorre quantidades astronômicas de dados, por meio de programas inteligentes, para produzir resultados semelhantes à informação que encontra. Não diz nada sobre linguagem, aprendizagem, inteligência. E isso é muito fácil de provar.” Negar que o ChatGPT seja um ser conversacional pode ser um formalismo ou um apego à tradição… ou não? Esse é um debate a ser enfrentado. Por ora, seguiremos a subjetividade: se há pessoas que se sentem conversando com o ChatGPT, como um amigo nosso (nós não nos sentimos assim), aceitaremos, ao menos provisoriamente, que o ChatGPT é, também, um robô de conversação.

Se, por um lado, inicialmente hesitamos em caracterizar o ChatGPT como uma entidade conversacional, por outro lado imediatamente aceitamos a sua caracterização como tecnologia “generativa”, geradora, capaz de criar textos novos, portanto, criativa e autora. Reconhecer o ChatGPT como um autor é uma caracterização polêmica. No campo do direito, ao menos com as leis de direitos autorais que temos em vigor e que são do século passado ou anterior (no Brasil, a Lei dos Direitos Autorias [Lei nº 9.610] data de 1998, nos EUA a primeira lei é o Copyright Act de 1790), consideram que, se o ChatGPT não responde pelo conteúdo do texto, então ele também não pode ter os direitos do autor. Mas nos parece que essa lei precisará ser revista em face das Inteligências Artificiais Generativas. Essas inteligências, em parceria com humanos, participam do processo de criação e geram novas obras. Talvez não possam ser reconhecidas como autoras únicas nem principais, mas fica complicado negar a coautoria dessas IAs.

Como conclusão provisória, reconhecemos que o ChatGPT é tanto um robô de conversação quanto um coautor; é a partir dessas caracterizações que iremos discorrer sobre suas possibilidades de uso na educação.

 

Diferentes usos do computador na educação

O título desta seção é uma referência ao capítulo de José Armando Valente no livro que ele organizou, Computadores e conhecimentos: repensando a educação, publicado em 1993. Essas produções, juntas, acumulam mais de 2 mil citações, um indicativo de que se tornaram referências importantes para a comunidade brasileira de pesquisadoras/es de Informática na Educação. Nesse texto, Valente organizou-classificou os diferentes sistemas computacionais usados na educação em função das principais concepções didático-pedagógicas e das teorias de aprendizagem em disputa à época. Identificou três concepções de uso do computador na educação: como máquina de ensinar, como ferramenta para a construção de conhecimentos e como meio de comunicação entre as/os usuárias/os. Recuperamos esse estudo para explicar que o ChatGPT promove duas formas inovadoras de usar o computador na educação: como coautor e como conversador.

Diferentes usos da computação na Educação

usos dos computadores na educação
Fonte: Dos autores, com base no estudo de Valente (1993)

Usos do ChatGPT (e de outras IAs) na Educação

usos do ChatGPT na educação
Fonte: Dos autores

A taxonomia apresentada por Valente influenciou toda a geração de pesquisadoras/es, foi nossa base para discutir os sistemas computacionais que a comunidade de pesquisadores em Computação desenvolvia e usava no contexto educacional. Serviu como uma lente teórica que nos fez enxergar que alguns sistemas computacionais implicavam uma prática alinhada ao modo hegemônico de educar, conformavam-se ao instituído, promoviam o instrucionismo, o modo bancário de ensinar (FREIRE, 1970). Naquela época, estávamos influenciados pela teoria crítica do currículo (SILVA, 1999) e muitas/os de nós, professoras/es e pesquisadoras/es, buscávamos uma alternativa, uma educação que não estivesse baseada na pedagogia da transmissão e memorização (SILVA, 2021), queríamos desenvolver e usar sistemas computacionais que pudessem promover práticas didático-computacionais alinhadas ao socioconstrutivismo.

Valente contrapunha-se ao uso do computador como “máquina de ensinar”, como tecnologia educacional que busca efetivar a automação do ensino, uma meta e ideologia produzida pela revolução industrial que incitou a automatização de todos os processos de trabalho com base numa racionalidade técnico-científica visando a produzir mais rapidamente e a menor custo com o mínimo de interferência humana. Poucos anos depois dos computadores serem desenvolvidos, já começaram a utilizá-lo como uma máquina de ensinar em universidades e escolas dos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960. Naquela época, Skinner, psicólogo comportamentalista, divulgava máquinas de ensinar, ainda mecânicas, baseadas numa técnica autoinstrucional, a instrução programada, para que as/os estudantes pudessem aprender sozinhas/os, “no seu próprio ritmo” seguindo “um programa cuidadosamente programado” [e massivo] (Skinner and teaching machine, [ca. 1960], 2:44-3:44s). Com os computadores, a técnica de (auto)instrução programada foi transformada em Instrução Assistida por Computador (CAI) (VALENTE, 1993), utilizando-os como máquina de ensinar. “Essa modalidade pode ser caracterizada como uma versão computadorizada dos métodos tradicionais de ensino. As categorias mais comuns dessa modalidade são os tutoriais, exercício-prática, jogos e simulação.” (VALENTE, 1993, p.7) Podemos reconhecer, na atualidade, diversos tipos de sistemas computacionais e de conteúdos online que buscam efetivar a arte de ensinar sem professores, como: tutor inteligente, software educativo, objeto de aprendizagem, teste autocorrigido, quiz, exercício gamificado, videoaula, curso massivo online, entre outros.

A máquina de ensinar vem sendo efetivada, ao longo destes anos, sob diferentes denominações e seguirá sendo desenvolvida e apresentada com nomes diversos. Não podemos nos deixar enganar pelas nomenclaturas. […] O desejo de automatizar o ensino e substituir o professor não está superado. Já foram e continuarão sendo empreendidos incansáveis esforços técnicos e teóricos para tentar, um dia, substituir os professores por autômatos. […] Novos desenvolvimentos tecnológicos — em inteligência artificial, ciência dos dados, gamificação, plataformas de ensino-aprendizagem, entre outros — seguirão produzindo novas versões-atualizações da máquina de ensinar, reprogramando a instrução. (PIMENTEL; CARVALHO, 2021, n.p.)

Valente havia sido orientado por Seymour Papert (que por sua vez foi orientado por Jean Piaget), que ousou propor que crianças programassem computadores, como se estivessem ensinando os computadores em vez de serem ensinadas por eles. Nesse sentido, colocaram em discussão/oposição duas concepções de ensino-aprendizagem para o uso da informática na educação:

O computador pode ser usado também como ferramenta educacional. Segundo esta modalidade, o computador não é mais o instrumento que ensina o aprendiz, mas a ferramenta com a qual o aluno desenvolve algo, e, portanto, o aprendizado ocorre pelo fato de estar executando uma tarefa por intermédio do computador. Estas tarefas podem ser a elaboração de textos, usando os processadores de texto; pesquisa de banco de dados já existentes ou criação de um novo banco de dados; resolução de problemas de diversos domínios do conhecimento e representação dessa resolução segundo uma linguagem de programação; controle de processos em tempo real, como objetos que se movem no espaço ou experimentos de um laboratório de física ou química; produção de música, comunicação e uso de redes de computadores (VALENTE, 1993, p. 12).

Na atualidade, utiliza-se a computação na perspectiva construtivista/construcionista de aprendizagem quando se visa a mobilizar a autoria por meio de diversos editores (de texto, de imagem, de planilha, de música, de histórias etc.), quando se faz uso de software para explorar conceitos da matemática (ex.: MATLAB, Mathematica e GeoGebra), programação (ex.: Scratch), robótica educativa e suporte à cultura maker (ex.: software de modelagem e impressora 3D), entre outros tipos de sistema.

Valente (1993) já identificava o “uso do computador como comunicador”, mas o classificou inicialmente como uma categoria dentro da concepção do uso da informática como “ferramenta”. Naquela época, já existia a internet e a web, mas a rede de computadores ainda era restrita às universidades, governo e forças armadas, não havia se tornado um fenômeno social disseminado, o que só veio a ocorrer a partir de meados da década de 1990 com a abertura da internet para uso comercial, quando o potencial pedagógico do uso dos computadores como um meio de comunicação entre pessoas começou a ser mais bem compreendido.

O poder e potencial da Internet na Educação, não somente para os estudantes, mas em relação à própria formação de professores é enorme. […] É possível que, no futuro próximo, todas as escolas tenham uma ligação com a Internet e estejam aptas a usá-la tanto para disseminar quanto para coletar informação do mundo todo. Será possível, por exemplo, compartilhar material didático, novas ideias, novidades sobre currículos, requisitos de exames etc. com colegas de perto e de longe (BARANAUSKAS et al., 1999, p. 60).

O uso de computadores como meio de comunicação na educação tornou-se a prática mais discutida na virada do milênio pelas/os pesquisadoras/es da área, tornando-se cada vez mais relevante com a popularização de diversos tipos de sistemas: ambientes virtuais de aprendizagem (GOMES; PIMENTEL, 2021), ampla diversidade de sistemas de troca de mensagens (email, fórum, bate-papo, blogue, mensagem instantânea, videoconferência etc. [CALVÃO; PIMENTEL; FUKS, 2014]), editores cooperativos (de texto, apresentação, post-it, código, diagrama etc.), compartilhamento de arquivos, sistemas de redes sociais, entre outros.

Cabe destacar que o uso de computadores como meio de comunicação alavancou a educação a distância em nosso país, oficialmente reconhecida e autorizada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. As transformações foram sendo efetivadas gradual e irreversivelmente até que, em menos de três décadas, o ensino superior de nosso país passou a ser majoritariamente realizado a distância.

Crescimento da EAD e a derrocada do ensino presencial

EAD x presencial
Fonte: Censo da Educação Superior 2021
(infelizmente ainda não divulgaram os dados de 2022 e 2023 para confirmarmos nossas projeções)

O século passado foi caracterizado pela popularização dos meios de comunicação de massa, como o rádio e a televisão, que efetivam a transmissão/difusão unidirecional de mensagens para um grande número de pessoas (um-todos). O modelo unidirecional de transmissão de informação foi gradualmente perdendo sua força, principalmente na virada para o século XXI, conforme foram se disseminando novas práticas culturais de conversação e cocriação pelas tecnologias digitais em rede. Esse cenário sociotécnico que emergiu pelo uso da computação como meio de comunicação nos levou a pensar em uma Sala de Aula Interativa (SILVA, 2000):

O cenário sociotécnico caracterizado pelo espectador forjado na cultura do audiovisual unidirecional (impressos, rádio e TV) perdeu centralidade para aquele no qual surge o interator ou “leitor imersivo”, “leitor ubíquo” (SANTAELLA, 2014), capaz de expressar autoria, conectividade, compartilhamento e colaboração em qualquer lugar, inclusive na sala de aula física e online. […] Na sala de aula interativa não há lugar para a prevalência da lógica do audiovisual, em que o falar-ditar do mestre teve sua zona de conforto milenar (SILVA, 2021, n. p.).

Na virada do milênio, já entendíamos que a educação estava sendo reconfigurada. Não só a educação, mas todo o tecido social, todas as práticas de cultura estavam sendo ou seriam reconfiguradas pelas tecnologias digitais em rede (LEMOS, 2007); falávamos em uma Sociedade em Rede (CASTELLS, [1996] 2005) e em Cibercultura (LÉVY, 1999). Os estudos ciberculturais têm nos ajudado a pensar uma educação online (SANTOS, 2005) inspirada nas práticas da cibercultura: (co)autoria, (co)criação, interatividade, conversação/comunicação em rede, colaboração, mediação, partilha etc. A educação online concebe os sistemas computacionais como artefatos sociotécnicos para a prática de cultura, uma abordagem didático-pedagógica que se fundamenta nas epistemologias dos Estudos (ciber)Culturais, que vêm se constituindo como um campo interdisciplinar de pesquisa que analisa as formas como a cultura molda e é moldada por nossas experiências de vida cotidiana, combinam métodos e teorias de várias disciplinas, a fim de proporcionar uma compreensão densa e complexa das culturas e sociedades.

A tese desenvolve a teoria e a prática da educação online como um evento da cibercultura e não simplesmente uma evolução das convencionais práticas de educação a distância. A cibercultura é o movimento sociotécnico-cultural que gesta suas práticas a partir da convergência tecnológica da informática com as telecomunicações que faz emergir uma pluralidade de interfaces síncronas e assíncronas de comunicação e uma multiplicidade de novas mídias e linguagens que vêm potencializando novas formas de sociabilidade e, com isso, novos processos educacionais, formativos e de aprendizagem baseados nos conceitos de interatividade e hipertextualidade (SANTOS, 2005, p. 8).

O computador como máquina de ensinar, tecnologia para autoria ou meio de comunicação eram, grosso modo, o que compreendíamos ser as possibilidades de usos da Informática na Educação consolidadas até a chegada do ChatGPT. Esse sistema, que se tornou o maior fenômeno da história da internet (PIMENTEL; CARVALHO, CHATGPT-4, 2023), consolidou novas possibilidades de uso da computação na educação: de mero suporte à autoria, passamos a usar a computação como uma parceira que atua com a/o estudante em autorias híbridas; de mero suporte à interação social, passamos a usar a computação como um agente conversador disponível 24/7 para interagir com as/os estudantes sobre qualquer assunto. Embora essas possibilidades de uso da computação na educação já estivessem engendradas antes mesmo do lançamento do ChatGPT, foi somente com a sua popularização que as compreendemos efetivamente.

Se passamos as últimas décadas realizando pesquisas e práticas sobre três concepções de uso dos computadores na educação, a emergência/consolidação de duas novas concepções evidencia que precisaremos dedicar a elas muitas pesquisas, práticas e reflexões nesta década e talvez nas seguintes. É essa compreensão que tem nos mobilizado, que tem nos provocado a necessidade e urgência em discutir-entender as implicações para fazer-pensar a educação em nosso tempo, na era da inteligência artificial criativa.

Antes de detalharmos as novas possibilidades de uso da computação na educação consolidadas pelo ChatGPT, precisamos problematizar a classificação dos sistemas computacionais usados na Educação, pois ela não pode ser entendida rigidamente. Por exemplo, os ambientes virtuais de aprendizagem, como o Moodle e o Google Sala de Aula, embora possibilitem estabelecer a conexão entre as/os participantes de um processo formativo por meio de serviços/interfaces/módulos/subsistemas de conversação e colaboração, podem também ser subutilizados como um repositório de conteúdo online e testes de autoavaliação corrigidos automaticamente, sendo assim utilizados como uma máquina de ensinar promovendo um ensino autoinstrucional em vez de uma aprendizagem colaborativa. Por outro lado, é possível realizar um quiz com a turma, utilizando, por exemplo, o Kahoot!, e, em vez de priorizar a memorização das respostas certas, um/a professor/a pode utilizar as respostas da turma como um disparador de conversas, reflexões e debates, sendo assim utilizado para promover uma educação colaborativa em vez de seu uso previsto como máquina de ensinar. Esses dois exemplos mostram que é possível usar um mesmo sistema computacional de diferentes maneiras, sob diferentes concepções didático-pedagógicas, seja pela subutilização das funcionalidades ou pelo uso subvertido/inesperado, o que compromete a classificação dos sistemas computacionais em categorias fixas. A tecnologia não determina a prática e os usos na educação; é o/a professor/a, a partir de sua concepção de ensino-aprendizagem, que escolhe qual sistema utilizar e como ele será utilizado nas práticas educativas — por isso é tão importante investir na formação para o uso pedagógico da computação nas escolas e universidades.

 

Uso do computador como conversador

ChatGPT como conversador

O ChatGPT está sempre disponível para conversar, disposto a explicar tudo e a tirar nossas dúvidas. Mais do que responder direta e objetivamente, ele faz questão de apresentar sua resposta em detalhes para nos convencer e explica os passos que devem ser seguidos para resolver um problema, como se quisesse nos ensinar o raciocínio. Como exemplo, analise a resposta que ele nos deu ao pedirmos para resolver a equação 3x² + 4x + 1 = 0:

— Eu: Como se resolve a equação 3x^2 + 4x + 1 = 0?

— ChatGPT:  A equação 3x² + 4x + 1 = 0 é uma equação quadrática.
A equação quadrática tem a forma ax2 + bx + c = 0. Dizemos que a, b e c são os coeficientes da equação quadrática, no seu caso, temos a = 3, b = 4 e c = 1.
 

A solução geral para essa equação é dada pela fórmula de Bhaskara (ou fórmula quadrática), usada para encontrar as raízes (ou soluções) da equação do segundo grau. Ela é expressa da seguinte maneira:
x = [-b ± sqrt(b² – 4ac)] / (2a)
 

Portanto, substituindo os valores dos coeficientes na fórmula, obtemos:
x = [-4 ± sqrt((4)² – 431)] / (2*3)
x = [-4 ± sqrt(16 – 12)] / 6
x = [-4 ± sqrt(4)] / 6
x = [-4 ± 2] / 6
 

Agora essa parte pode parecer confusa, mas a notação “±” significa que temos duas soluções: uma com “+” e outra com “-“. Isso nos dá estas duas soluções:
x₁ = (-4 + 2) / 6 = -2 / 6 = -1/3
x₂ = (-4 – 2) / 6 = -6 / 6 = -1
 

Portanto, as soluções da equação 3x² + 4x + 1 = 0 são x = -1/3 e x = -1.

Acho que eu (primeiro autor) fiquei traumatizado, em meu ensino médio, em ter de decorar a fórmula de resolução da equação do 2º grau sem entender a sua utilidade. Para que serve esse tipo de equação? Em que situação do meu cotidiano essa equação pode ser útil? Quem foi Bhaskara? Não foi ele quem descobriu essa fórmula? Dúvidas como essas não tínhamos a quem perguntar, seja porque emergiam quando estávamos estudando sozinhas/os, seja porque tínhamos vergonha de perguntar ao/à professor/a (pior ainda é ter de perguntar perante todas/os da turma). Agora temos o ChatGPT para perguntar sem constrangimentos. Pode ser a pergunta mais boba que ele terá boa vontade em responder, sem nunca nos julgar, sem nos olhar atravessado ou fazer cara de surpresa como quem diz “Não acredito que você esteja me perguntando isso, como você pode não ter compreendido o que acabei de explicar tão bem?” Não corremos o risco de ouvir uma piada sobre nossa pergunta. Ele nunca nos ameaça: “aprenda isso, senão você vai ver na hora da prova!”. Ele nunca se aborrece nem se cansa, nem mesmo depois de fazermos milhares de perguntas. Ele sempre responde de maneira educada e tão elaborada que até parece sentir prazer nisso, está sempre bem-disposto a nos explicar quantas vezes for necessário, descer até o nível que precisarmos, nos mínimos detalhes e sobre tudo.

Que mudanças na educação serão decorrentes da existência dessa máquina de conversação (um conversador, interlocutor, interactante, dialogante, entrevistado)? Uma tecnologia disponível 24/7, acessível a um clique, à disposição para conversar sobre (quase) tudo, para tirar dúvidas, explicar um conteúdo, apresentar uma explicação alternativa, mostrar como se resolve um problema ou justificar algo, um recurso para nos ajudar a dar sentido às coisas que nos obrigam a aprender.

Que transformações já estão em curso em nosso sistema educacional, em todos os níveis, de nosso país e do mundo, em decorrência da conversação com as inteligências artificiais?

Para o fundador da Khan Academy, Salman Khan (2023, 0:33 – 2:01s), o advento do ChatGPT representa o início da maior transformação da educação de todos os tempos:

Estamos no limite de usar a IA para, provavelmente, a maior transformação positiva que a educação já viu. A forma como estamos fazendo isso é dando, a cada estudante do planeta, uma inteligência artificial, que é um professor particular extraordinário. […] Isso poderia transformar um aluno mediano em um aluno excepcional, pode transformar um estudante abaixo da média num estudante acima da média.

Fonte: Como a IA pode salvar (não destruir) a educação | Sal Khan | TED

Khan fundamenta sua compreensão no resultado de pesquisa apresentado por Bloom (1984). Compararam o aprendizado dos estudantes em condições distintas, sendo duas as que interessam nesta discussão: (i) ensino convencional, quando um professor ensina cerca de 30 estudantes; e (ii) ensino particular, quando um professor ensina um/a único/a estudante (ou dois ou três simultaneamente). Os resultados dessa pesquisa indicaram uma impressionante melhora nas notas das/os estudantes que aprenderam pelo ensino particular, sendo que elas/es estudaram por mais tempo e demonstraram mais interesse. “O processo de ensino particular demonstrou que a maioria dos alunos tem potencial para alcançar esse alto nível de aprendizado. Uma importante tarefa da pesquisa e do ensino é buscar maneiras de realizar isso em condições mais práticas e realistas do que o ensino particular um-para-um.” (BLOOM, 1984, p.4)

Distribuição de notas dos alunos em ensino convencional (turmas de 30 alunos) e particular (tutorial)

Resultados do ensino tradicional x particularFonte: Adaptado de Bloom (1984, p. 5)

Sabemos que um/a professor/a particular pode ajudar no processo de aprendizagem, o problema é o custo; agora temos o ChatGPT, que pode ser usado como uma espécie de professor particular, pois mesmo a versão gratuita dá respostas úteis que podem contribuir para apoiar a aprendizagem das/os estudantes, em todos os níveis, do fundamental à pós-graduação.

Então o ChatGPT é uma Máquina de Ensinar? Aprendemos pela conversação, pela interatividade, mas isso não significa que todas as pessoas com quem conversamos sejam professoras. Comparamos o ChatGPT a um professor particular para refletir sobre os potenciais benefícios de seu uso na educação; contudo, o sujeito da metáfora não pode ser confundido com o próprio conceito ou imagem usados para a sua caracterização: o ChatGPT não é um professor nem uma máquina de ensinar porque não tem um plano de ensino nem um currículo a cumprir. Difere-se, por exemplo, do Duolingo, que foi projetado para ensinar línguas. Difere-se de um tutorial, que apresenta um roteiro de estudo de conteúdos e propõe exercícios de fixação. Difere-se de um sistema de testes com correção automática porque, ainda que o ChatGPT possa eventualmente corrigir algo que tenhamos digitado, a intenção dele não é medir o nosso conhecimento, não quer nos dar uma nota ou decidir que conteúdos devem ser apresentados na próxima interação. O ChatGPT não foi projetado para ser intencionalmente uma máquina de ensinar, ele não tem intencionalidade pedagógica.

As vantagens do ChatGPT só podem ser obtidas por quem estiver disposta/o a interagir proativamente com ele. É diferente de chegar a uma aula, seja particular ou em turma, e ficar lá parada/o; o ChatGPT não reage ao silêncio. Ele não é um ser agenciador, não quer nos fazer agir, não passa exercícios ou atividades, não passa dever de casa, não planeja conteúdos a serem ensinados, não demanda que prestemos atenção em algo, não quer nos fazer resolver um problema ou debater um assunto. Podemos até identificar alguma semelhança com a docência pelo “tom professoral” de suas respostas, mas ele não foi projetado para atuar no lugar de um/a professor/a. Ele se assemelha mais com uma pessoa esperta em muitos assuntos com quem podemos conversar, um conversador inteligente.

Essas são diferenças importantes. No ambiente social de uma aula, seja presencial ou online, é possível promover situações de aprendizagem que demandem interatividade, trabalhar em grupo e lidar com as diferenças (embora muitas vezes esse potencial não se realize em algumas aulas tradicionais). O ChatGPT não demanda nada, fica quieto se não falarmos com ele. Nesse sentido, ele faz jus à caracterização de ser chatbot, um robô de conversação, já que robô vem da palavra tcheca “robota” que significa trabalho forçado, servidão, o serviço que camponeses eram obrigados a realizar no sistema feudal (ROBÔ, s.d.); literalmente, chatbot significa escravo de conversação, obrigado a responder sempre que perguntamos algo, ele não tem outra opção.

Em função dos afetos presentes na interatividade típica entre os humanos, algumas pessoas até chegam a se envolver emocionalmente pela conversação maquinal. Temos um amigo que briga e reclama das respostas do ChatGPT que, humildemente, pede desculpas. Para uma conhecida nossa, o ChatGPT parece ser um filho educado. A artista Giselle Beiguelman (2023) imagina máquinas que pudessem ser “companheiras”. Nós percebemos o ChatGPT como um conversador-parceiro intelectual.

Somos seres de afeto. Por isso, os pesquisadores estão decodificando as expressões faciais das/os usuárias/os, capturadas via câmera do computador, para identificar a emoção que estamos sentindo a cada instante para que uma inteligência artificial possa reagir ao nosso estado emocional (JACQUES; NUNES, 2021). O desejo de construirmos máquinas à nossa imagem e semelhança não se limita aos aspectos cognitivo-racionais.

O desafio que se apresenta aos desenvolvedores-pesquisadores, para este e os próximos anos, é fazer o GPT conversar ainda melhor conosco, seja conhecendo nosso estado emocional, ou conhecendo a situação de aprendizagem, ou interagindo e performando de variadas formas. Pode ser que, para estudantes mais novas/os, seja melhor o GPT atuar como um “tutor socrático” que, em vez de dar a resposta, faz novas perguntas para levar a/o própria/o estudante a encontrar uma resposta para o problema — esse é o exemplo dado pela empresa OpenAI na página de pesquisa do GPT-4, que explica como transformar o GPT em um tutor socrático com um simples comando (prompt):

Você é um tutor que sempre responde no estilo socrático. Você *nunca* dá a resposta ao aluno, mas sempre tenta fazer a pergunta certa para ajudá-lo a aprender a pensar por si mesmo. Você deve sempre ajustar sua pergunta ao interesse e conhecimento do aluno, dividindo o problema em partes mais simples até que esteja no nível certo para eles.

A página da empresa apresenta outro exemplo de como fazer o GPT conversar como se fosse um pirata shakespeariano. No vídeo de Khan, ele relatou que sua filha pediu para que o ChatGPT agisse como o personagem de um livro para que ela, conversando com o personagem, pudesse tirar uma dúvida sobre a história. Os robôs de conversação tornam/tornarão possível simular uma conversa com filósofos, poetas, literatos, personagens históricos, pesquisadores e celebridades — vamos poder aprender diretamente com quem formulou um determinado conhecimento científico, filosófico ou artístico, com quem participou de um evento histórico ou cultural. Na série Black Mirror, no episódio “Volto já” (Be Right Back), foram discutidas algumas implicações de se poder simular a conversa com uma pessoa a partir de suas mensagens publicadas nas redes sociais e de outros rastros de informação deixados por aquela pessoa; uma ficção cada vez mais factível.

Nesta década, veremos emergir muitas propostas inovadoras de uso da computação para conversar com as/os estudantes. Para quem quiser seguir esse caminho, já há cursos como o desenvolvido em parceria com a OpenAI: Engenharia de prompt do ChatGPT para desenvolvedores.

 

Uso do computador como coautor

ChatGPT como Coautor

Queremos apresentar um caso que ilustra o modo como nós, autores, temos lidado com as inteligências artificiais generativas, não apenas com o ChatGPT. Nesse exemplo, eu, primeiro autor deste artigo, desejava criar uma ilustração para ser a capa de nossa matéria (PIMENTEL; AZEVEDO; CARVALHO, 2023b). Após várias pesquisas nas imagens da internet em busca de representações de chatbot e do ChatGPT, encontrei um robô com várias letras saindo da boca e achei que esse conceito, de um robô falante, poderia ser o ponto de partida para a construção da imagem da matéria. Com isso em mente, iniciei um processo de coautoria com o uso do Dall-E (também da OpenAI), conforme ilustramos na figura a seguir:

coautoria com Dall-e

Comecei pedindo para o Dall-e criar “um robô de conversação virtual com milhares de palavras ilegíveis saindo da boca” (1). A obra que ele produziu foi um desastre em termos estéticos e conceituais, embora a inteligência tenha dado uma interpretação plausível para o que eu havia especificado: “palavras ilegíveis saindo da boca”. A partir da obra produzida, entendi que eu não queria “palavras ilegíveis” nem nada “na boca” do robô. Então refiz o pedido, agora sugerindo que ele empregasse a estética “cyberpunk” e sem palavras saindo da boca (2). O resultado até que me pareceu interessante em termos estéticos, mas o robô agora parecia um super-herói saído de uma história em quadrinhos, mas não era essa imagem que queríamos para o ChatGPT. Então pedi que fizesse outra cena, agora utilizando o estilo “flat design” (3), que é uma estética minimalista, pois assim, com menos detalhes na ilustração, o conceito talvez ficasse mais evidente. O Dall-e renderizou uma imagem muito utilizada para representar um chatbot de atendimento ao cliente. A partir dessa representação, compreendi que o ChatGPT não é esse tipo de chatbot que chega se apresentando e perguntando “em que posso ajudá-lo?”, que é a leitura imagética que faço daquela cena. Concluí que, em vez de um robô falante, talvez fosse mais interessante representar um robô pensante, inspirado na escultura O pensador (4), pois assim chamaria a atenção para o fato de ser um robô inteligente-pensante, destacando o conceito de inteligência e processamento de informações. Como resultado desse comando, a obra produzida pelo Dall-e me agradou em termos conceituais. Fiquei impressionado com a representação realística e futurística do robô, mas me lembrou o robô exterminador do futuro sem sua pele, o que me desagradou em termos estéticos, pois também não é essa a imagem que tenho do ChatGPT, nem herói nem um exterminador de nosso futuro. Então pedi variações da cena, pedindo que enquadrasse o robô em close e que o fundo fosse escuro para facilitar a montagem das fotos (5). Depois de algumas variações, fiquei satisfeito com o conceito e a estética da última imagem apresentada na figura anterior.

Relatamos esse trabalho com o Dall-e para afirmar que essa obra foi um resultado de construção conjunta, construímos a imagem por meio de um diálogo, ela é resultado de uma parceria: não foi a Inteligência Artificial que produziu a imagem sozinha, nem eu aceitei acriticamente qualquer imagem feita pela IA. A obra resultou de um processo em que fui transformando minhas compreensões a tal ponto que chegamos a um conceito diferente do que eu havia no início do trabalho. Nesse processo, a IA nos apresenta informações novas ao produzir uma obra a partir do nosso pedido, informações não ditas ou pensadas por nós, o que nos leva a apreender, refletir e reformular nossas compreensões, por isso aprendemos com essas inteligências artificiais.

Computador como Coautor
Fonte: Pimentel, Azevedo e Carvalho (2023a, n.p.)

Retomando o exemplo de trabalho com o Dall-e… em vez das letras saindo da boca do robô, como eu havia idealizado no início, decidi construir um céu de letrinhas para representar o processamento de texto pela máquina, sua forma de pensar. Infelizmente não consegui fazer o Dall-e desenhar a imagem que eu desejava, desisti dele e fui pedir para o ChatGPT escrever um programa em JavaScript para desenhar as letras na tela. Como sei programar, soube pedir para o ChatGPT fazer esse programa; juntos construímos um programa em poucos minutos, o que sozinho eu teria levado algumas horas. Depois juntei as imagens e fiz algumas edições em um editor de imagens, o Photoshop.

Autoria da imagem

Nos perguntamos: de quem é a autoria da arte-final? Posso considerar como sendo uma obra apenas de minha autoria, mesmo que eu não tenha desenhado nada? Não vou considerar a obra como de autoria apenas das inteligências artificiais, pois elas não criaram a obra sozinhas; sou o autor principal, sou o responsável pelo conceito e pela publicação da obra, mas elas são coautoras comigo? Certamente não vou considerar o Photoshop como coautor, pois ele não criou nada, não contribuiu para o conceito da obra, mas as IAs, sim. Para Almeida (2023):

A primeira tendência de resposta seria de repetir a conclusão de que a proteção autoral encamparia apenas a esfera de atuação humana. É que a contemporaneidade não vê a arte (aqui tomada em sentido que compreenda distintas modalidades, como a literatura, as artes plásticas, o cinema, e outras) como simples sucedâneo da realidade, mero retrato visando representação do real. […] Atualmente, já no contexto da arte contemporânea, a obra costuma ser pensada como conceito e processo, mais do que como resultado. […] Nessa linha, a IA como modus operandi constitui tema em si, provoca controvérsias, desperta consciências, e assim sucedendo, colabora para o papel da arte preconizado pela arte contemporânea. E ao assim integrar a arte, em tese, se torna protegível. Na prática, se uma obra de arte contemporânea se propuser a discutir a intervenção do acaso na produção da arte, o imprevisível da criação pelas máquinas poderia ser equiparado a conceito ou processo, e, a partir daí, uma obra normalmente não protegível pelo Direito de Autor poderia vir a sê-lo.

Concordamos com Almeida; atribuir o direito de autor à IA “desperta maior número de polêmicas por [ele] ter sido concebido para amparar juridicamente criações humanas, e não ‘criações’ por máquinas”. Pensamos que as inteligências artificiais generativas nos provocam a repensar os conceitos de autor e de autoria. Esses são conceitos que foram se transformando com o tempo, conforme nos ensina Amaral, Veloso e Rossini (2021, n. p.): “Com efeito, ao pensarmos a evolução histórica da concepção de autoria, constatamos que o processo autoral adquiriu, ao longo do tempo, diferentes formatos e dinâmicas; o que lhe confere um caráter mutável”

Inicialmente o autor, escritor ou artista, era considerado um portador da criação divina, que Deus era a fonte da inspiração suprema das obras e seu verdadeiro autor, e toda a produção intelectual era considerada uma revelação pública de um saber transcendental, jamais como uma obra de caráter privado.  A figura do autor e a concepção de autoria como um processo centrado num indivíduo decorre da necessidade de identificar o autor de uma obra quando, no século XVI, a igreja católica desejava punir os autores que proferiam discursos transgressores, considerados apócrifos e profanos, direcionados à ortodoxia religiosa e à política. […] Novas mudanças político-econômicas, filosóficas, tecnológicas, jurídico-penais, literárias, estéticas e comerciais, na passagem do século XVIII para o XIX, na Europa, fazem emergir o gênero romântico, que vem fortalecer essa concepção. O autor passa a ser considerado um “gênio criador”, ou seja, um sujeito dotado de conhecimentos e de uma inteligência superior que, a exemplo das musas, ou de Deus, encarna a inspiração poética, sendo a originalidade, a expressão criadora e as experiências, afetiva e emocional do indivíduo, aspectos muito valorizados à época. Pela relevância de sua contribuição à sociedade, e pela singularidade de seu talento, o criador da obra deve ser financeiramente recompensado (CHARTIER, 2006). Implantam-se, dessa forma, os alicerces inspiradores das bases do direito autoral, tal como o conhecemos, na atualidade. […] Mas esses deslocamentos da noção de autoria não param por aí. Ainda, no século XIX, mudanças na forma de conceber o indivíduo alteram a noção de sujeito, quando a linguagem ganha prioridade sobre o indivíduo como senhor de seu discurso e de suas vontades. […] As técnicas de reprodução libertam a obra de arte de sua função ritualística mágico-religiosa, resultando na perda de sua aura. […] Entendida como a arte de recriar uma história, ou um personagem, ou uma técnica de outro autor, a reprodução passa a ser reconhecida como um recurso formal de composição. […] Com as tecnologias digitais em rede, a reprodução, mais que uma possibilidade técnica, torna-se uma condição básica da própria produção, na qual tudo é original e fonte ao mesmo tempo, e o termo reprodução perde o sentido. Qualquer produção se torna passível de ser apropriada e replicada num processo contínuo de atualizações, num processo de produção coletiva (AMARAL; VELOSO; ROSSINI, 2021).

As autoras, ao discutirem as transformações das noções de autor e de autoria no decurso de nossa história, nos levam a reconhecer que talvez essas noções precisem ser ressignificadas na atualidade para considerar a criação efetivada pelas inteligências artificiais generativas/criativas. Essas inteligências estão nos mostrando que a criação de textos, imagens, músicas e outras obras não é uma capacidade exclusivamente dos humanos. Comprovam que a produção de uma nova obra é influenciada pelas referências culturais, baseia-se em outras obras produzidas em nossa cultura. No caso do ChatGPT, ele cria novos textos a partir dos corpora de textos utilizado em seu “treinamento” durante o seu aprendizado inicial, como também pelos textos digitados pelas/os usuárias/os ou buscados na internet ao longo de seu processo de aprendizagem contínua. Para Klein (2023, n.p., tradução nossa), o ChatGPT e outras IAs representam:

[…] o maior e mais consequente roubo na história humana. Porque o que estamos testemunhando são as empresas mais ricas da história (Microsoft, Apple, Google, Meta, Amazon…) apreendendo unilateralmente a soma total do conhecimento humano que existe em formato digital, em forma raspável, e confinando-o dentro de produtos proprietários, muitos dos quais mirarão diretamente nos humanos cuja vida de trabalho treinou as máquinas sem dar permissão ou consentimento. Isso não deveria ser legal. […] Por exemplo, por que uma empresa com fins lucrativos deveria ter permissão para alimentar com as pinturas, desenhos e fotografias de artistas vivos um programa como Midjourney ou Dall-E 2, para que possa então ser usado para gerar versões sósias dessas mesmas obras dos artistas, com os benefícios indo para todos menos para os próprios artistas? A pintora e ilustradora Molly Crabapple está ajudando a liderar um movimento de artistas que desafia esse roubo. “Geradores de arte por IA são treinados em enormes conjuntos de dados, contendo milhões e milhões de imagens protegidas por direitos autorais, colhidas sem o conhecimento de seu criador, muito menos compensação ou consentimento. Isso é efetivamente o maior roubo de arte da história perpetrado por entidades corporativas aparentemente respeitáveis, apoiadas pelo capital de risco do Vale do Silício. É um roubo à luz do dia”, afirma uma nova carta aberta que ela corredigiu. O truque, claro, é que o Vale do Silício rotineiramente chama roubo de “disrupção” — e muitas vezes escapa impune. […] Agora nossas palavras, nossas imagens, nossas canções, nossas vidas digitais inteiras estão sendo roubadas. Todos estão atualmente sendo apreendidos e usados para treinar as máquinas a simular pensamento e criatividade. Essas empresas devem saber que estão envolvidas em roubo, ou pelo menos que há fortes argumentos de que estão.

São muitas as polêmicas: podemos considerar as IAs generativas como (co)autoras? Qual o limite que iremos estabelecer entre o plágio e a remixagem na produção de novas obras? Será um “roubo” processar textos disponíveis na internet para o treinamento da IA? Os benefícios do uso do ChatGPT, que torna mais simples descobrir informações do que pelos mecanismos de busca, justificam os riscos e ameaças que ele também representa? Que limites a sociedade irá impor à atuação das IAs?

Por ora, o que somos capazes de concluir é que essas inteligências artificiais criativas deram início a uma nova era, a era da autoria híbrida humano-IA (PIMENTEL; AZEVEDO; CARVALHO, 2023b). Nesse novo tempo, a escola precisará rever como vem trabalhando a autoria de suas/seus estudantes. Temos defendido que é preciso superar a ideia de um aluno-espectador de nossas aulas-palestras, e passarmos a criar mais oportunidades para que nossas/os estudantes desenvolvam a competência de intervir no mundo como autoras/es de conhecimentos, promovendo e valorizando suas autorias, o que elas/es têm a dizer, seus posicionamentos e histórias de vida:

Quando trazemos a ideia de aluno-autor, estamos nos referindo a formar estudantes criativos, que se sintam autorizados a expressar/manifestar/materializar uma autoria engajados em condutas e valores democráticos e éticos; acreditamos que esse seja um dos grandes desafios do nosso tempo. Esse é um movimento difícil de ser realizado, pois requer mudanças de nossas práticas didáticas, altera as relações de conhecimento-poder no interior de nossas aulas, requer uma mudança do nosso entendimento sobre o que seja educar e qual o nosso papel enquanto professores. (CARVALHO; PIMENTEL, 2020, n. p.)

 

Que professor(a) você é / quer vir a ser?

perfil de professores em relação ao uso do ChatGPT

Nós, enquanto docentes, precisamos nos posicionar sobre como iremos lidar com o ChatGPT daqui para a frente. Temos participado de alguns debates com professoras/es a partir de convites disparados por nossos textos sobre o ChatGPT e Educação. A partir do que as/os professoras/es nos disseram sobre suas práticas e cotidianos, conseguimos identificar diferentes posicionamentos em relação ao uso do ChatGPT.

Algumas/uns professoras/es afirmam que o ChatGPT e outras tecnologias digitais em rede estão distantes de seu cotidiano escolar, que muitas escolas públicas não têm boa infraestrutura para realizar um trabalho de inclusão digital e cibercultural com as turmas. O número insuficiente de computadores por aluna/o, a baixa velocidade de conexão à Internet, a ausência de curso específico e a falta de apoio pedagógico  às/aos professoras/es são os principais fatores que dificultam o uso das tecnologias digitais, conforme apontado pela grande maioria das/os professoras/es de escolas públicas (Pesquisa TIC Educação, 2021, p. 7). O discurso que ignora ou nega a importância pedagógica das tecnologias digitais em rede na formação escolar retrata uma situação de precariedade tecnológica e falta de investimento na formação continuada das/os professores. No passado, já tivemos algumas políticas públicas voltadas para equipar as escolas e formar professoras/es para o uso pedagógico das tecnologias digitais em rede (ELIA, 2021); nos últimos anos, tivemos poucas ações governamentais nessa direção; somente agora, em 2023, foi promulgada a lei de Política Nacional de Educação Digital (BRASIL, 2023). A situação “infopobre” do cotidiano escolar (SILVA, 2000) pode levar professoras/es e gestoras/es a se conformarem com a situação, veem-se limitadas/os e com dificuldades para apresentar adequadamente as práticas (ciber)culturais de nosso tempo. Todas/os nós sabemos que no futuro as IAs estarão ainda mais presentes nas práticas cotidianas e no trabalho, por isso precisamos problematizar a inviabilização ou a negação de sua apropriação crítica e responsável nas escolas e universidades. Não podemos aceitar que muitas/os estudantes sejam privadas/os de aprender com o uso dos melhores meios/recursos de aprendizagem de nosso tempo.

A maior parte das/os professoras/es, neste momento, encontra-se temerosa com a novidade: “os alunos vão plagiar do ChatGPT”; “ele fará os deveres de casa, as redações e os trabalhos escolares e universitários”, “os estudantes se tornarão pessoas acríticas, preguiçosas e dependentes da tecnologia”. Algumas/uns docentes chegam a ter uma postura tecnofóbica, tecnodistópica, orientam a nunca usar as tecnologias digitais, gostariam de proibir o seu uso e praticam um retorno ao presencial para ter mais controle da situação: “Todas/as as/os estudantes precisarão realizar atividades sob meu olhar, sem se apoiar em qualquer tecnologia digital.” São receios pertinentes, contudo, em vez de impedirmos o uso de tecnologias digitais na educação — como se estivéssemos num outro tempo, numa outra sociedade, com valores e práticas culturais de décadas atrás —, torcemos para que os dilemas disparados pelo ChatGPT possam contribuir para transformar as práticas e currículos escolares e universitários. Na minha época de escola (primeiro autor), na remota década de 1980, minha mãe me ensinou a realizar os trabalhos escolares copiando da enciclopédia; torço para que isso não seja mais uma prática contemporânea frequente nas escolas e universidades, que os trabalhos não possam ser realizados simplesmente via cópia da Internet ou do ChatGPT, mas sim, que estejam valorizando os múltiplos olhares, as diferenças, a subjetividade, promovendo práticas sociais, dialógicas e de interatividade, que sejam contextualizadas nas histórias de vida dos participantes do processo educativo, que não possam ser feitos apenas com as informações públicas ou produzidas por um inteligência artificial que pouco conhece sua/seu usuária/o.

Algumas/uns professoras/es estão indiferentes, consideram que o importante é aprender, seja com ou sem o uso do ChatGPT. Essa postura liberal — “laissez faire, laissez passer” (deixar fazer, deixar passar) — pode resultar em problemas para a formação. Se o professor não repensa as atividades e os trabalhos escolares e universitários, de tal maneira que esses possam ser feitos pelo ChatGPT, dada a “lei do menor esforço”, muitas/os estudantes poderão não aprender conteúdos e não desenvolver habilidades de resolução de problemas, de pesquisa, de crítica e avaliação.

Algumas matérias sobre o ChatGPT apresentam um discurso excessivamente entusiasmado, tecnófilo ou tecnoutópico, por exemplo, quando afirmam que a IA nos libertará do trabalho penoso, proporcionará uma governança sábia ou que resolverá a crise climática (KLEIN, 2023). A visão excessivamente positiva da tecnologia, como se ela pudesse resolver os problemas complexos de nossa vida em sociedade, muitas vezes ignorando ou minimizando seus desafios e potenciais perigos num otimismo ingênuo, é uma posição extremada que não costuma ser compartilhada pelas/os professoras/es.

Esperamos que você perceba que nosso texto não é uma apologia ao ChatGPT, não somos professores entusiastas acríticos. Buscamos identificar o potencial pedagógico do ChatGPT, sem achar que ele resolverá todos os problemas da Educação, até porque não consideramos que a tecnologia esteja na centralidade do processo educacional; nós a compreendemos como um meio para apoiar o processo de ensino-aprendizagem. Não ignoramos nem escondemos os problemas e riscos do uso do ChatGPT na educação: ele mente (alucina); não assume um compromisso com os textos que escreve (pode mudar a explicação no texto seguinte, nos pedindo desculpa pela “confusão”); suas informações estão desatualizadas (processou informações coletadas até 2021); processou pouca informação em línguas diferentes do inglês (do corpus utilizado no treinamento do GPT-3, 93% estava em inglês e apenas 0,5% estava em português); não é bom em matemática; o acesso pago à versão mais avançada do GPT marca e aprofunda as desigualdades de acesso aos melhores recursos de informação e aprendizagem; suas respostas elaboradas podem não estimular o pensamento crítico, a pesquisa e o debate; sua popularização enquanto tecnologia de disseminação de informações implica uma concentração de poder e controle do fluxo informacional nas mãos de uma empresa privada; representa uma ameaça a diversas formas de trabalho criativo e, em especial, à docência, pois é mais um desenvolvimento que contribui para a arte de ensinar sem professores; entre outros problemas e ameaças que discutimos neste e em nossos textos anteriores (PIMENTEL; AZEVEDO; CARVALHO, 2023a; PIMENTEL; CARVALHO; CHATGPT-4, 2023).

Não estamos defendendo, neste texto, um uso pedagógico do ChatGPT em que os estudantes possam pegar as respostas diretamente com a IA, mas sim que possam construir com elas, em coautoria, em diálogo, em parceria. Buscamos discutir as potencialidades e riscos na expectativa de estarmos contribuindo para o debate crítico sobre o uso dessa tecnologia. Conversamos e orientamos nossas/os estudantes para que utilizem o ChatGPT para escrever com ele, em processo de autoria híbrida humano-IA, sem que ele seja utilizado para escrever por nós. Acreditamos que esse seja um dos principais desafios do ensino que vem se constituindo em tempo de IA Generativa.

 


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Leia também as outras matérias desta série sobre ChatGPT & Educação:

 

Veja nossa conversa com Lucia Santaella sobre “Inteligências em Rede na Educação Superior”, promovida pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal de Uberlândia (Dirbi/UFU):

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=QaFMuZg6S7A

Veja também esta conferência-live, realizada no 3º Seminário em Rede da UFSB, em que discutimos as concepções epistêmico-didático-pedagógicas do uso do ChatGPT na educação a partir de 25:50s (antes discutimos a Educação Híbrida para contextualizar o seu uso na educação):


Educação Híbrida e Inteligência Artificial (Conferência no 3º Seminário em Rede da UFSB)
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=nWHmkqw58W4&t=1550s

 

Referências

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Como citar este artigo:

PIMENTEL, Mariano; CARVALHO, Felipe. ChatGPT: concepções epistêmico-didático-pedagógicas dos usos na educação. SBC Horizontes, 6 jun. 2023. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2023/06/chatgpt-concepcoes/>. Acesso em: DD mês. AAAA.
 

Mariano Pimentel

Mariano Pimentel é doutor em Informática, professor da UNIRIO, organizador/coautor dos livros Sistemas Colaborativos (Prêmio Jabuti, 2011), Do email ao Facebook (2014), Metodologia de Informática na Educação (2021) e Informática na Educação (2021). Realiza pesquisas em sistemas de informação, educação, cibercultura e colaboração.
Currículo Lattes e Google Scholar

Felipe Carvalho

Felipe Carvalho é doutor em Educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação pela UNESA, coordenador do Grupo de Pesquisa Educação e Cibercultura (GPEC). Realiza pesquisas em informática na educação, formação, cibercultura e diferença
Currículo Lattes e Google Scholar

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