Agricultura digital e o ecossistema agrícola brasileiro: Uma jornada de ressignificação e um convite para ação no contexto de Sistemas de Informação
Autor (*): Sean Siqueira
Comentários e revisão: Renata Araujo
Ilustração da capa: Sean Siqueira usando StableDiffusion
(*) Este texto foi inspirado pelas discussões realizadas no XIX Simpósio Brasileiro de Sistemas de Informação (SBSI 2023) (vide os anais do evento), sediado em Maceió, Alagoas, que promoveu um ambiente rico em trocas de conhecimento e de alegria, marcando o retorno do evento ao formato presencial. O tema desta edição foi: “Sistemas de Informação Verdes para a Sustentabilidade Ambiental”. Outra motivação foram as discussões para a definição do tema do XX Simpósio Brasileiro de Sistemas de Informação (SBSI 2024), que será sediado em Juiz de Fora, Minas Gerais: “Perspectivas e Tendências dos Sistemas de Informação na Agricultura Digital”.
Prezado leitor, você já parou para refletir sobre o termo “agricultura digital”? Neste texto, convido você a embarcar comigo em uma jornada de reflexão sobre o contexto atual de agricultura digital no ecossistema agrícola brasileiro. Vamos explorar a etimologia dessas palavras e construir uma linha de pensamento sobre como podemos ressignificar algumas percepções sobre este tema.
A agricultura digital vai além da simples digitalização dos processos de plantar, colher e comercializar os produtos. É importante expandirmos o questionamento para o que queremos colher enquanto sociedade e enquanto seres humanos. A partir dessa reflexão, podemos nos conscientizar sobre o que devemos plantar neste mundo digital que estamos construindo, para conseguirmos alcançar o ecossistema social brasileiro que desejamos.
O que entendemos literalmente por agricultura digital e o ecossistema agrícola brasileiro?
Acredito que seja importante passarmos por certas definições colocadas por alguns autores nos últimos anos para uma reflexão mais profunda.
Por exemplo, quando pensamos em agricultura digital, é comum fazermos uma associação direta com a digitalização dos processos relacionados à agricultura. A digitalização tão presente nas empresas e em nossas vidas, também faz parte do contexto agrícola. Klerkx et al. (2019) exploram o foco da digitalização “como uma força transformativa nos sistemas de produção agrícola, cadeias de valores e sistemas alimentares”. Shepherd et al. (2020) apresentam a agricultura digital por meio da adoção e uso de novas tecnologias, como capacidades avançadas de sensores, melhoria na conectividade de dados e apoio a decisão por meio de inteligência artificial e aumentada e sistemas de autoaprendizagem.
Agricultura digital (digital agriculture) (KEOGH e HENRY, 2016; SHEPHERD et al., 2020) é um termo amplo que se refere ao uso de ferramentas digitais para coletar, armazenar, analisar e compartilhar dados e informações eletrônicas ao longo da cadeia de valor agrícola. Entretanto, não há um consenso na definição e, com isso, diferentes termos e conceitos estão relacionados a agricultura digital (veja a Figura 1). Vamos explorar alguns destes conceitos?
Figura 1: Termos e conceitos relacionados à agricultura digital
Digitalização na agricultura, agroinformática e agricultura inteligente (BLOK e GREMMEN, 2018; WOLFERT et al., 2017) são discutidos mais em uma perspectiva tecnológica. A digitalização na agricultura é o processo de aplicação de tecnologias digitais para melhorar a eficiência e a sustentabilidade da produção agrícola. Agroinformática é a ciência da informação agrícola, processamento de informações agrícolas e sistemas de informações. A agricultura inteligente (smart farming) é um conceito que busca conciliar a gestão agrícola com tecnologias de dados para otimizar os sistemas complexos e dinâmicas voláteis da agricultura.
Em uma perspectiva mais de gestão, temos a agricultura de precisão (precision agriculture ou precision farming) (WOLF e BUTTEL, 1996; EASTWOOD et al., 2017) e a agricultura de decisão (decision agriculture) (LEONARD et al., 2017). A agricultura de precisão é uma estratégia de gestão agrícola baseada na observação, medição e resposta à variabilidade temporal e espacial para melhorar a sustentabilidade da produção agrícola. A agricultura de decisão pode ser entendida como o processo de aplicação de técnicas agrícolas adequadas, ou seja, aplicando apenas a quantidade suficiente e necessária de nutrientes, sementes, água e outros recursos agrícolas para evitar o desperdício de recursos enquanto aumenta a produção de culturas. Quando o foco está na medição, temos a agricultura numérica (agriculture numérique ou numerical agriculture) (BELLON-MAUREL e HUYGHE, 2016).
Finalmente, a agricultura 4.0 (agriculture 4.0) (ROSE e CHILVERS, 2018) é um termo utilizado para contemplar a implementação de tecnologias emergentes e serviços inovadores na agricultura, mas que também requer uma mudança cultural e comportamental em todos os atores envolvidos na cadeia produtiva agrícola. Isto permite aumentar sua produtividade e eficiência e apoiar uma agricultura mais sustentável usando informações precisas e momentâneas que ajudarão a tomar decisões estratégicas.
Complementar à agricultura digital, temos o conceito de agronegócio, que é o setor empresarial que engloba atividades agrícolas e comerciais relacionadas à agricultura. Envolve todas as etapas necessárias para enviar um bem agrícola ao mercado, ou seja: produção, processamento e distribuição.
Em resumo, esses termos estão relacionados à aplicação de tecnologias digitais avançadas no setor agrícola para melhorar a eficiência, a sustentabilidade e a rentabilidade da produção agrícola. Embora possam ter algumas semelhanças em termos do uso de tecnologias digitais, eles também têm diferenças importantes em termos do escopo e do foco específico das tecnologias aplicadas. A Figura 2 destaca algumas das tecnologias relacionadas à agricultura digital, mas não pretendemos aprofundar na exploração das tecnologias neste texto.
Figura 2: Conceitos e tecnologias relacionados à agricultura digital
Alguns outros termos relacionados incluem agricultura sustentável, agricultura orgânica e agroecologia. Esses termos se concentram mais nas práticas agrícolas sustentáveis e no uso responsável dos recursos naturais.
Uma preocupação constante ao se discutir a agricultura digital é como mitigar os efeitos de mudanças climáticas e insegurança alimentar. Balasundram et al. (2023) discutem os impactos da mudança climática no processo do solo devido ao aumento de CO2, o aumento da temperatura e a variação na precipitação. Discutem também o impacto na pecuária e na pesca. A agricultura digital pode auxiliar na gestão de colheitas, da pecuária, do solo, água e nutrientes e do carbono e energia. Por outro lado, explorando uma visão mais sistêmica, os autores alertam para a falta de informação empírica sobre a eficácia da agricultura digital na redução das emissões de gases de efeito estufa e na garantia da segurança alimentar, principalmente em países subdesenvolvidos. Outras questões importantes levantadas pelos autores são: a equidade no acesso à tecnologia e infraestrutura, o alto custo de implementação de tecnologias de agricultura digital, o fornecimento de energia, a produção e o descarte da tecnologia. Deste modo, é importante considerar todo o ecossistema da agricultura digital, incluindo a necessidade de uma ação integrada por meio de políticas públicas, pesquisas e ações dos fazendeiros para assegurar que os benefícios da digitalização sejam concretizados de forma sustentável e equitativa.
A edição de número 50 da Computação Brasil, revista da Sociedade Brasileira de Computação tem como tema as “Tecnologias Digitais para o Meio Ambiente” e destaca “artigos que retratam alguns esforços nacionais no combate às mudanças climáticas”. A Associação Brasileira de Agroinformática promove bianualmente o Congresso Brasileiro de Agroinformática (SBIAgro), que visa discutir “a importância do fator humano na denominada Sociedade 5.0 como aliado para que as tecnologias habilitadoras 4.0 alcancem os objetivos e impactos nos processos ao longo das cadeias produtivas animal e vegetal, do campo à mesa”. E, certamente, o leitor deve estar familiarizado com a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, que viabiliza soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira.
Um estudo etimológico de agricultura digital e ecossistema agrícola brasileiro
Bom, caro leitor, no início deste texto indiquei que “vamos explorar a etimologia das palavras e construir uma linha de pensamento sobre como podemos ressignificar algumas percepções sobre este tema”. Chegou o momento de abrir o escopo de “agricultura digital”. O termo agrícola vem do “ager” (campo), mais “colligere” (apanhar, reunir, colher), formado por “com” (junto), mais “legere” (colher, apanhar). Então temos esta ideia de colher junto, reunir, no campo.
Podemos aprofundar no entendimento de campo, que vem do latim “campus” (área aberta). “Campus” foi também relacionado a área cercada ou área plana, adequada para o plantio. Posteriormente, “campus” passou a designar os hábitos e modo de viver de pessoas que se dedicavam à agricultura e à criação. Outro uso de “campus” foi para designar a área de uma universidade (começou em Princeton, 1774).
Vamos dar sequência a este estudo etimológico explorando o termo agricultura, que deriva do latim “ager” (campo) e cultura. Cultura vem do latim “cultura” (cultivar, ato de plantar) e de “colere” (cuidar de plantas). Posteriormente, desenvolveu-se o sentido de “colere” como cultivar a mente, os conhecimentos, a educação.
Por outro lado, o termo digital vem do latim “digitalis” (relativo ou semelhante a dedos) e tem relação com os dígitos. Pode ser entendido com as impressões deixadas pelos dedos.
Assim, podemos entender a agricultura digital não apenas como a digitalização das atividades de agropecuária e agronegócio, mas também trazer o conceito de como estamos cultivando a mente, os conhecimentos, neste mundo digital e que impressões estamos deixando ou queremos deixar na sociedade. E nesta perspectiva, como direcionamos a área de Sistemas de Informação na construção deste cuidar, colher um mundo melhor, um ser melhor.
Podemos reforçar essa ideia pelo entendimento de “cultura” metaforicamente como cuidado, ato de honrar; e “colere” como vigiar, cuidar, acompanhar o crescimento. Aqui, caro leitor, espero que aproveite para refletir sobre o que você está colhendo, os estudos que anda fazendo, as pesquisas que desenvolve e as relações que cultiva.
Outro aspecto interessante de “ager” ou campo, é que aparentemente vem do indo-europeu “kamp” (dobrar). Neste sentido, podemos trazer a perspectiva do “pli” de Latour (2010, 2012), entendendo o modo de ser da técnica como uma “dobra”, que exclui tudo que remete a ideia de dominação do homem sobre a matéria. A dobra quebra a sequência linear, curva, cria um grau de instabilidade, abre campo para novos entendimentos que podem não ser perceptíveis em planos lineares ou tradicionais. Assim, temos dobras, desdobras, redobras, saímos do controle e racionalidade da técnica. Assim, Latour (2012) nos convida a “pensá-la como uma dobra astuciosa que traduz, desloca, esconde um processo de metamorfose sob um resultado passível de se reproduzir, de resistir ao tempo, estendendo essa condição a outros conjuntos nem sempre vistos como técnicos” (QUEIROZ E MELO e MORAES, 2016). Que estudos e reflexões podemos trazer das dobras, das transformações mútuas, das relações complexas (MORIN, 2007) que envolvem e se envolvem (ou entrelaçam) na técnica e pela técnica? Como podemos promover novos olhares sobre os sistemas de informação? Como podemos reverter a necessidade de controle e racionalidade, para um observar constante da dobra, da metamorfose e reprodução? De quais diferenças podemos ter outros entendimentos? Quais os reflexos desta visão (ou abordagem) para Sistemas de Informação?
Para complementar, direcionemos o foco para o ecossistema brasileiro. Ecossistema tem origem no grego “oikos” (casa), mais “synístanai” (colocar junto ao mesmo tempo), de “syn” (junto) e “hístanai” (estar). “Systema” passou a designar reunião de diversas partes diferentes. E a palavra brasileiro deriva de Brasil, mas cuja origem vem do germânico “brasa” (fogo). Neste sentido, o título deste artigo também traz a perspectiva de iluminar e aquecer o estar junto e, juntos, construirmos o que queremos para nossa casa, a área de Sistemas de Informação e a sociedade. Quais são as questões particulares da sociedade brasileira? Quais são as especificidades de Sistemas de Informação no Brasil? Como essas especificidades estão relacionadas ao contexto global? E como do contexto local podemos impactar o global?
Convite para a construção coletiva no SBSI 2024
O Simpósio Brasileiro de Sistemas de Informação (SBSI) é um evento realizado pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC), por meio da Comissão Especial de Sistemas de Informação (CESI). Trata-se de um evento que congrega pesquisadores, profissionais da indústria e estudantes (de doutorado, mestrado e graduação) para discutir o estado da arte, da prática e inovação em Sistemas de Informação.
A temática central do XX Simpósio Brasileiro de Sistemas de Informação (SBSI 2024) é: “Perspectivas e Tendências dos Sistemas de Informação na Agricultura Digital”. Com esta temática e tendo este escopo mais amplo de agricultura digital e ecossistema agrícola brasileiro proposto neste texto, espero que o SBSI 2024 seja o cenário perfeito para excelentes discussões sobre o estado da arte, da prática e inovação em Sistemas de Informação e sobre os novos rumos desta área no Brasil. Espero que possamos aprofundar nosso entendimento sobre como a área de Sistemas de Informação pode apoiar a agricultura digital e o ecossistema brasileiro, na construção de um mundo físico-digital melhor, com pessoas mais humanas, mais conscientes de seu propósito e de suas conexões. Convido a todos para participarem desta construção colaborativa.
Nesta edição histórica (20ª edição) do SBSI 2024, vamos aproveitar a oportunidade para lembrar a história do evento e repensar os caminhos e atuação da área, alinhando os Sistemas de Informação com a construção de um futuro sustentável e mais humano.
O SBSI 2024 será realizado de 20 a 23 de maio de 2024 em Juiz de Fora – MG. Juiz de Fora é reconhecida como uma das cidades mais amigáveis do Brasil, graças aos serviços, turismo, gastronomia, hospitalidade e à cultura do povo mineiro. Podemos mencionar também o polo cervejeiro, com sua variedade de cervejas artesanais. Assim, desfrutaremos da hospitalidade e gastronomia mineiras, enquanto avançamos o estado da arte, prática e inovação em Sistemas de Informação no Brasil. Venha fazer parte desta história!
Figura 3: SBSI 2024
Referências
BALASUNDRAM, Siva K. et al. The Role of Digital Agriculture in Mitigating Climate Change and Ensuring Food Security: An Overview. Sustainability, v. 15, n. 6, p. 5325, 2023. https://doi.org/10.3390/su15065325
BELLON-MAUREL, Véronique; HUYGHE, Christian. L’innovation technologique dans l’agriculture. Géoéconomie, n. 3, p. 159-180, 2016.
BLOK, Vincent; GREMMEN, Bart. Agricultural technologies as living machines: toward a biomimetic conceptualization of smart farming technologies. Ethics, Policy & Environment, v. 21, n. 2, p. 246-263, 2018.
EASTWOOD, Callum; KLERKX, Laurens; NETTLE, Ruth. Dynamics and distribution of public and private research and extension roles for technological innovation and diffusion: Case studies of the implementation and adaptation of precision farming technologies. Journal of rural studies, v. 49, p. 1-12, 2017.
KEOGH, Mick; HENRY (M.). The implications of digital agriculture and big data for Australian agriculture: April 2016. Australian Farm Institute, 2016.
KLERKX, Laurens; JAKKU, Emma; LABARTHE, Pierre. A review of social science on digital agriculture, smart farming and agriculture 4.0: New contributions and a future research agenda. NJAS-Wageningen journal of life sciences, v. 90, p. 100315, 2019.
LATOUR, Bruno. Prendre le pli des techniques. Réseaux, n. 4, p. 11-31, 2010.
LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos. Editora Vozes, 2019.
LEONARD, Emma et al. Accelerating precision agriculture to decision agriculture: Enabling digital agriculture in Australia. Summary rapport, Cotton Research and Development Corporation, 2017.
MORIN, Edgar; LISBOA, Eliane. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007.
QUEIROZ MELO, Maria de Fatima Aranha; MORAES, Márcia Oliveira. A técnica como modo de existência: um diálogo entre as ideias de Latour e Simondon. Memorandum: Memória e História em Psicologia, v. 31, p. 276-297, 2016.
ROSE, David Christian; CHILVERS, Jason. Agriculture 4.0: Broadening responsible innovation in an era of smart farming. Frontiers in Sustainable Food Systems, v. 2, p. 87, 2018.
SHEPHERD, Mark; TURNER, James A.; SMALL, Bruce; WHEELER, David. Priorities for science to overcome hurdles thwarting the full promise of the ‘digital agriculture’revolution. Journal of the Science of Food and Agriculture, v. 100, n. 14, p. 5083-5092, 2020 (First published on 2018).
WOLF, Steven A.; BUTTEL, Frederick H. The political economy of precision farming. American Journal of Agricultural Economics, v. 78, n. 5, p. 1269-1274, 1996.
WOLFERT, Sjaak et al. Big data in smart farming–a review. Agricultural systems, v. 153, p. 69-80, 2017.
Sobre o autor
Sean Siqueira é professor titular no Departamento de Informática Aplicada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Informática (área de concentração Sistemas de Informação) da UNIRIO. É coordenador do grupo de pesquisa Semantics and Learning (SaL), que explora as áreas de Sistemas de Informação, Informática na Educação e Ciência da Web para entender o significado das coisas e apoiar a aprendizagem, seja automática ou das pessoas. Em uma abordagem mais filosófica, trata-se de uma busca por entender as diferentes perspectivas, aprender com as diferenças e explorar as relações complexas da vida. CV Lattes.