Entre bits e justiça: o legado de Mary Allen Wilkes na Computação e no Direito
Por Raquel de Oliveira
Esse texto foi produzido no contexto do projeto “Emíli@s – bits de representatividade: participação feminina atuante e falante na Computação” da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus Campo Mourão.
Mary Allen Wilkes, nascida em 25 de setembro de 1937, na cidade de Chicago, Illinois (EUA), é uma grande figura feminina que desafiou expectativas e fez contribuições significativas para a área da computação [1]. Entretanto, sua ambição inicial era voltada para a área jurídica: Mary sonhava em se tornar uma advogada. Quem primeiro despertou a atenção de Mary para a Computação foi uma de suas professoras do ensino fundamental, que sugeriu que ela investisse em uma carreira nesta área. Essa sugestão, apesar de não ter sido acatada inicialmente, foi o ponto de partida para a entrada da Computação na vida de Mary.
Ainda quando pensava em se tornar uma advogada, Mary cursou Filosofia e Teologia na Universidade de Wellesley, em 1959. Mas, após se formar, foi desencorajada pelos seus mentores a ir para a faculdade de direito devido aos desafios que as mulheres enfrentavam na área durante aquele período. Isso pois, durante a década de 60, nos Estados Unidos, as mulheres ainda eram legalmente impedidas de exercer muitas profissões. Além disso, eram negados a elas salários iguais e benefícios adicionais para trabalhos equivalentes realizados por homens [2]. As faculdades de Direito primeiro recusaram-se a admitir mulheres, depois mantiveram o número de admitidos artificialmente baixo, admitindo uma percentagem muito menor de mulheres qualificadas do que de homens. Já na década de 70 as mulheres representavam somente 8% do total de matrículas em faculdades de direito nos Estados Unidos [3]. Para aquelas que conseguiam se formar, encontrar um emprego na área era ainda mais difícil, visto que escritórios de advocacia e juízes nem mesmo entrevistavam mulheres para as vagas disponíveis. Para essas, restavam apenas trabalhos como secretárias ou em áreas pouco conhecidas (e pouco remuneradas) do Direito naquela época.
Desencantada com as perspectivas para o seu futuro como advogada, Mary recordou-se do conselho dado pela sua professora do ensino fundamental sobre a Computação. As palavras de seus professores universitários também ecoavam em sua mente, destacando a importância que os chamados computadores teriam para as suas vidas futuramente. Naquele período, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) estava buscando por programadores, e ao saber disso, Mary foi até a instituição a procura de um emprego. Assim, mesmo sem nenhuma experiência em programação, Mary ingressou no MIT.
A decisão de contratar alguém sem experiência pode parecer peculiar nos dias de hoje, mas naquela época isso era comum, uma vez que a área da computação em si era muito nova (faculdades de renome como Stanford e Yale abriram seus departamentos de computação apenas em 1965 e 1969, respectivamente, por exemplo). Em razão disso, a maior parte das pessoas ainda careciam de experiência na computação. Para encontrar programadores, as faculdades apenas aplicavam testes de aptidão que avaliavam a capacidade dos candidatos de pensar logicamente. Nesse teste de aptidão, a formação de Mary revelou-se uma vantagem significativa, visto que no curso de Filosofia ela havia estudado lógica. Aliás, sua habilidade de pensar logicamente tornaria-se um recurso valioso.
O primeiro trabalho de Mary Allen no MIT foi programando o IBM 704, o primeiro computador produzido em massa com hardware para aritmética de ponto flutuante [4], que requeria que ela escrevesse códigos em linguagem Assembly. Apesar da sua importante função, a capacidade de armazenamento do IBM 704 era limitada, exigindo que cada instrução fosse cuidadosamente elaborada. Esse ambiente de programação restritivo incentivou Mary e a sua equipe a aprimorar suas habilidades, analisando minuciosamente cada linha de código. Sua busca por eficiência tornou-se uma característica distintiva, moldando-a como uma programadora excepcional. Essa experiência não apenas aprofundou seu entendimento prático da programação, mas também a instigou a buscar constantemente as melhores práticas para escrever código eficientemente. Essa ênfase na construção de um código bem escrito mostra a mentalidade inovadora que as mulheres trouxeram para a computação naquela época e que afeta a nossa maneira de programar até os dias de hoje.
Em 1961, Mary foi designada para um novo projeto, a criação do LINC, um dos primeiros computadores pessoais da história. Ela foi a responsável por criar um sistema operacional iterativo, denominado LAP6, para o LINC. Nesse projeto, Wilkes tinha como um de seus objetivos tornar a tecnologia mais acessível para os usuários e não apenas para profissionais de informática. O LINC permitiu que declarações em linguagem simples fossem traduzidas em instruções de máquina, como Wilkes resumiu em seu manual intitulado “Acesso conversacional a uma máquina de 2.048 palavras” [5]:
“ O LAP6 é usado para gerar e editar strings de texto e para manipular entradas de arquivos (salvar, recuperar, substituir, excluir ou copiar). Sequências de texto formatadas como programas fonte LINC são convertidas para o formato de máquina binária, arquivadas, carregadas e verificadas dentro da estrutura LAP6.”
Ao terminar o projeto LINC, Mary ficou conhecida como uma grande programadora, porém apesar dos estímulos intelectuais proporcionados pelos computadores, ela começou a sentir o peso do isolamento social que acompanhava a profissão. Assim, em 1972, Mary se inscreve na faculdade de Direito em Harvard, área na qual ela atuou pelas seguintes quatro décadas. Essa decisão não só reflete a diversidade de interesses e habilidades de Wilkes, mas também destaca a importância de seguirmos nossos sonhos, mesmo quando já alcançamos sucesso em uma área específica.
Em suas últimas palestras, Mary observou como a indústria tecnológica é menos povoada por mulheres hoje em dia. Em 1960, quando ela começou a trabalhar no MIT, a proporção de mulheres em profissões de computação e matemática era de 27%, atingindo 35% em 1990 [6]. Nos dias atuais, essa proporção é de 28% [7]. Números como esses revelam uma estagnação na representação feminina na área de computação, apesar dos avanços em outras esferas. A persistência dessa disparidade enfatiza a necessidade de ações que inspirem e encorajem a nova geração de mulheres a se envolverem ativamente na tecnologia, área onde muito dos avanços obtidos surgiram de mentes e esforços femininos.
O legado de Mary Allen serve como um lembrete de que a diversidade de perspectivas é essencial para impulsionar avanços significativos e construir um futuro tecnológico mais inclusivo.
Referências:
[1] MARY Allen Wilkes. Wikipedia, 2024. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Allen_Wilkes>. Acesso em: 20 de jan. de 2024.
[2] LAUS, Maria. A Short History of Women in the Law. Law Crossing, 2013. Disponível em <https://www.lawcrossing.com/article/900014530/A-Short-History-of-Women-in-the-Law/>. Acesso em: 20 de jan. de 2024.
[3] KAY, Fiona; GORMAN, Elizabeth. Women in Legal Profession. Annual Review of Law and Social Science 4(1). Disponível em <10.1146/annurev.lawsocsci.4.110707.172309>. Acesso em: 20 de jan. de 2024.
[4] IBM 704. Wikipedia, 2024. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/IBM_704>. Acesso em: 20 de jan. de 2024.
[5] WILKES, Mary Allen. Conversational Access to a 2048-Word Machine. Washington University. Disponível em <https://www.digibarn.com/stories/linc/documents/LINC-Mary-Allen-Wilkes/Conversational-Access-CACM-1970.pdf>. Acesso em: 20 de jan. de 2024.
[6] THOMPSON, Clive. The Secret History of Women in Coding. The New York Times Magazine. Disponível em <https://www.nytimes.com/2019/02/13/magazine/women-coding-computer-programming.html>. Acesso em: 20 de jan. de 2024.
[7] WOMEN in Tech Stats 2024. WomenTech Network, 2024. Disponível em <https://www.womentech.net/en-br/women-in-tech-stats>. Acesso em: 20 de jan. de 2024.
Sobre a autora
Raquel de Oliveira
Bacharelanda em Ciência da Computação na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), com interesse em Ciência de Dados e Inteligência Artificial.
Sobre o Projeto Emíli@s – bits de representatividade:
Somos o projeto “Emíli@s- bits de representatividade : participação feminina falante e atuante em Computação”, um grupo de estudantes e professores do curso de Ciência da Computação da UTFPR, campus Campo Mourão.
Inspiradas em nossa irmã “Emíli@s: Armação em Bits” da UTFPR campus Curitiba, nascemos com o objetivo de promover a participação ativa e o incentivo a permanência de meninas e mulheres na área de tecnologia para promover a igualdade de oportunidades nesse setor.
Como citar este artigo
DE OLIVEIRA, Raquel. Entre bits e justiça: o legado de Mary Allen Wilkes na Computação e no Direito. SBC Horizontes, fev. 2024. ISSN 2175-9235. Disponível em: <horizontes.sbc.org.br/index.php/2024/02/entre-bits-e-justica-o-legado-de-mary-allen-wilkes-na-computacao-e-no-direito/>. Acesso em: DD mês. AAAA.