Nunca é ficção
“Havia um muro.” Assim começa a história no livro Os Despossuídos de Le Guin. “Como todos os muros, era ambíguo, com dois lados. O que ficava dentro ou fora do muro dependia do lado em que se estava.” De um lado, o universo. De outro, o planeta Anarres. Ninguém entra. Ninguém sai. Nunca. Em nenhuma situação ou circunstância. “Mas nunca aconteceu. Nada jamais aconteceu. Quando algo enfim aconteceu, ela não estava preparada”, nos alerta o narrador.
Nunca é tempo demais. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, avisa Mia Couto em Terra Sonâmbula.
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“O que mais existe no mundo são pessoas que nunca vão se conhecer”, comenta Carla Madeira em Tudo é Rio. “Quanto amor se perde nessa falta de sincronia.” Alguns encontros deixam de acontecer porque as pessoas se perdem pelo caminho. Algumas vezes, talvez por acaso, os desencontrados se reencontram. “Em momentos especiais como esse, as pessoas sentem uma certa dor junto com a felicidade”, comenta a gerente da loja para Klara, a amiga artificial imaginada por Kazuo Ishiguro.
Nunca é intenso. “A gente morre cheio de saudades da vida”, anuncia Mia Couto.
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Algumas vezes a gente se perde. Mas em outras a gente vibra diferente. “Nunca tinha sentido aquilo, uma vontade de correr em duas direções, a que junta e a que separa.” Dalva “desencontrou a coragem” ao ver Venâncio em Tudo é Rio.
“Temos mais ontens ou mais amanhãs? O que eu desejava era que o tempo se adiasse, parado como o barco naufragado”, declara Mia Couto. Nunca é previsível.
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Nunca é vida eterna. Um evento único muda tudo. Imortalidade via singularidade. “A singularidade vai nos permitir transcender essas limitações de nossos cérebros e corpos biológicos”, professa Ray Kurzweil. É “o ponto culminante de fusão entre nosso pensamento e nossa existência com nossa tecnologia”. O resultado disso? “Um mundo que ainda é humano, mas que transcende nossas raízes biológicas.” As “máquinas do futuro serão humanas, mesmo não sendo biológicas”. Nunca é linear, a imortalidade é exponencial.
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Nunca é jamais. Jamais pode ser em tempo algum. É muito impreciso. É nunca mudar até que muda. É possibilidade. Uma oportunidade? Nunca é tempo demais. Deixa rolar.
Assim como Mia Couto, “resolvi não resolver nada, deixar que a resposta acontecesse sozinha”.
Arte: Niki (@ jururuart)
Revisão: Tiago Bergenthal
Texto produzido durante o módulo Circuito Santa Sede (@oficinasantasede & @rubempenz).
Como citar esse artigo:
BASSANI, Patrícia Scherer. Nunca é ficção. SBC Horizontes, 15 abr. 2024. ISSN 2175-9235. Disponível em: < http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2024/04/nunca-e-ficcao/>. Acesso em: DD mês. AAAA
Patrícia Scherer Bassani é doutora em Informática na Educação, professora titular do PPG em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Universidade Feevale, na linha de pesquisa Linguagens e Tecnologias.