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Desinformação, censura e alienação no ambiente digital

Desinformação, censura e alienação no ambiente digital

Crédito da imagem: Nathan Creigton-Kelly


Neste artigo, o autor discute questões fundamentais acerca de desinformação, censura e outros fenômenos de crescente importância na ecologia comunicacional das redes sociais digitais. Recomendamos a leitura!


Por: Alisson Andrey Puska

Você com certeza já sofreu censura online e nem percebeu. Veja como as redes sociais, governos autoritários e algoritmos controladores impõem as suas vontades ao fluxo de informações online de forma inconsequente, promovendo a desinformação e a alienação.

A desinformação no ambiente digital, em especial nas redes sociais, tem um potencial prejudicial que afeta a sociedade organizada, desde relações pessoais até as fundações do Estado democrático de direito. Esse fenômeno endógeno – intrínseco às relações humanas – sempre existiu, revelando-se por meio das limitações cognitivas do indivíduo ao tentar compreender o que seus sensores biológicos capturam [1]. Na era da informação, a desinformação se ampara na tecnologia de comunicação para emergir como um fenômeno sócio-técnico, ou seja, que possui aspectos sociais e técnicos provenientes da interação entre pessoas e tecnologias. Essa relação tem o poder de ampliar ou limitar a capacidade e o alcance da expressão humana, incluindo o conteúdo falso [2].

Recentemente, empresas privadas que controlam as redes sociais, pressionadas por soluções capazes de mitigar os efeitos da desinformação online, tomaram para si o papel de moderadoras do fluxo das informações em suas plataformas, retirando conteúdo falso e restringindo o acesso de usuários. Isso tem sido feito sem uma discussão abrangente com os membros da sociedade sobre a explícita violação da neutralidade da rede, e sem consideração ao funcionamento saudável do Estado democrático. A Figura 1 exemplifica o caso em que as redes sociais agiram de forma inconsequente bloqueando as contas do ex-presidente dos Estados Unidos.

Figura 1 – Decisões arbitrárias de censura.
Fonte: BBC.

Na falta de uma regulação do Estado que seja adequada e eficiente para lidar com os impactos da desinformação, a censura parece ser o procedimento digital que mais traz resultados, ao menos no curto prazo. Tal censura representa o controle da expressão humana, exercido através da tecnologia no meio de comunicação digital.

Quem censura quem?

No meio de comunicação das redes sociais, a censura simboliza um controle absurdo por parte da sociedade privada sobre o que os usuários podem ou não consumir. Ao retirar de circulação um conteúdo falso, as redes sociais se transformam em árbitros do conteúdo fornecido para seus usuários. Isso significa que a distribuição de conteúdo pode ser enviesada por decisões unilaterais, que consideram a perspectiva daquele que tem esse poder de veto.

Obviamente as redes sociais não são os únicos atores moderadores a utilizar esse procedimento. Os mecanismos digitais automatizados criados para facilitação do processo de comunicação nessas plataformas, como os algoritmos de distribuição de conteúdo, também simbolizam entidades “arbitrais” do fluxo de informação, introduzindo seus próprios vieses com potencial para alienar comunidades digitais inteiras [3]. A diferença desses dois procedimentos está na ideologia que distribuem: um é informado por escolhas dos usuários, o outro informa essas próprias escolhas.

No ambiente digital, o número de dados gerados diariamente ultrapassa a compreensão humana de quantidade. Assim, a censura é um procedimento que necessita de estratégias e ferramentas que amparem a tarefa de detectar, avaliar e decidir sobre essa imensa quantidade de conteúdo gerado pelas pessoas nas redes sociais. Não há como organizações humanas sozinhas lidarem com tanta informação em tempo hábil para mitigar impactos não desejados. Nesse sentido, cientistas e desenvolvedores investigam maneiras de agilizar essa tarefa, buscando soluções para facilitar o processo de comunicação. Muitas iniciativas tecnológicas encontram na censura – seja ela explícita na forma de um moderador humano, ou implícita em uma ferramenta digital – um jeito de controlar os impactos da desinformação na sociedade em um curto prazo. A Figura 2 apresenta um exemplo de um mecanismo digital automático de detecção e bloqueio que censurava conteúdo legítimo no Instagram.

Figura 2 – Algoritmo do Instagram com viés na seleção e bloqueio de conteúdo. 
 Fonte: The Verge.

A censura não é um procedimento restrito aos aspectos tecnológicos da plataforma de comunicação. O mundo social possui aspectos igualmente impactantes. Em situações particulares, atores populares que censuram um conteúdo em seus canais de comunicação, falso ou não, podem levar a audiência a buscar por ele em outros canais [4], correndo o risco de consumir ainda mais conteúdo falso em mídias alternativas e predatórias. Quando autoridades sociais, como presidentes com perfis públicos e verificados em redes sociais, bloqueiam o acesso de outras contas em seus perfis, acabam promovendo somente ideologias favoráveis à sua própria. Isso tem o potencial de alienar os seguidores, como em uma câmara de eco ideológica que se retroalimenta com perspectivas polarizadas e unilaterais [3]. A censura exerce controle sobre a percepção e expressão das pessoas que se comunicam pelo meio digital. Assim, a censura não promove o silêncio sobre um assunto, mas instiga a desinformação sobre ele.

Outra forma de moderação ocorre quando autoridades do Estado agem sobre os meios de comunicação digitais, impondo restrições e obrigações às redes sociais. A determinação judicial de vetar um conteúdo específico fomenta a discussão de ideias enviesadas pela perspectiva permitida. Isso caracteriza o controle estatal sobre os meios de comunicação, acarretando a alienação da comunidade em um contexto autoritário e antidemocrático. Dessa forma, a censura opera em diferentes aspectos da comunicação, tanto tecnológicos quanto sociais, com consequências na liberdade de pensamento e expressão das pessoas.

Quais as consequências?

O fato é que a censura nas mídias sociais tem um potencial de alienação [5]. Privar uma comunidade do contato com perspectivas diferentes sobre temas da sociedade, sejam essas perspectivas embasadas em falsidades ou não, pode trazer consequências prejudiciais a longo prazo. Nesse contexto, a censura priva o indivíduo de avaliar suas perspectivas, de reformular seus ideais sobre sua realidade à luz de novas informações, de aprender e expandir sua base de conhecimento, e construir uma interpretação abrangente de sua realidade. Dessa forma, a alienação significa a redução da capacidade dos indivíduos em pensar ou agir por si próprios.

Não é de hoje que “assuntos-tabus” desencadeiam consequências relevantes na vida das pessoas. Por exemplo, não falar sobre sexualidade com jovens ou então sobre sexo com crianças priva-as do conhecimento sobre si e sobre o consentimento do que pode ou não ser feito com seus corpos, o que acarreta muitas vezes dor e sofrimento [6]. Não discutir abertamente os problemas mais incômodos em uma sociedade, como o suicídio ou a igualdade de direitos dos membros de uma comunidade, limita a capacidade dessa mesma sociedade em perceber, prosperar e encontrar soluções responsáveis, dignas e sustentáveis. Dessa forma, a censura oculta vulnerabilidades na organização social, que podem abalar suas próprias estruturas com o passar do tempo. A Figura 3 mostra um exemplo em que a censura autoritária do Estado causou consequências prejudiciais à individualidade em uma comunidade.

Figura 3 – Exemplo de consequência da censura online. 
Fonte: O Globo.

Em uma sociedade altamente conectada, que se informa cada vez mais em seus círculos sociais digitais exclusivos, a censura limita a capacidade da comunidade discutir um tema complexo, de diferentes atores se posicionarem, da comunidade transformar seus valores e de corrigir os erros. Essa alienação pode fazer com que uma perspectiva unilateral sobre um tema atravesse gerações em uma sociedade.

O que pode ser feito?

A censura, aparentemente, serve a um propósito iminente que traz resultados em detrimento de uma ideologia em um contexto social imediato. No curto prazo, esse tipo de controle pode ajudar, de forma pontual, a diminuir os prejuízos da desinformação na vida das pessoas. Por outro lado, o potencial de perdurar uma visão desinformada da realidade, ou no mínimo enviesada, também resulta em consequências devastadoras para a prosperidade da vida em sociedade a longo prazo. Se a sociedade for condescendente com algoritmos e ferramentas digitais automatizadas, desenvolvidas sem cuidado e ponderação, corre-se o risco de a comunidade digital humana ficar desamparada para perceber e lidar com seus problemas endógenos, empoderando a máquina ao invés das pessoas.

Claramente, o árduo e desgastante trabalho de debater perspectivas conflitantes, sobre temas delicados em um círculo social, pode nos impulsionar na direção de soluções confortáveis e atrativas, como essa da censura, sem responsabilidade ou consideração sobre suas consequências na vida das pessoas no futuro. Porém, limitar a expressão dos indivíduos pode se tornar um tremendo tiro no pé para a prosperidade das comunidades. Nesse sentido, surge a necessidade de entender e considerar a desinformação de forma mais abrangente, de revelar as armadilhas que esse fenômeno esconde, nas diferentes dimensões de interação entre pessoas, tecnologias e conteúdos [7]. É preciso ter cuidado no desenvolvimento de estratégias e ferramentas para mitigar os impactos da desinformação online, sem ocasionar ainda mais problemas sociais.

Talvez a maturidade das organizações sociais e das entidades que constituem a democracia seja ainda infantil e condescendente demais para lidar com a pluralidade de perspectivas da diversidade dos indivíduos que constituem as sociedades. Se esse for o caso, precisamos ampliar o debate sobre a mitigação da desinformação online para além dos legisladores, políticos e cientistas. Deve-se dar crédito à capacidade das pessoas em compreender seu contexto, em entender o que é uma solução ou decisão benéfica para sua comunidade, promovendo sua autonomia. Nesse sentido, o poder da comunicação, do debate, da construção do conhecimento e da conscientização pavimenta o caminho para uma organização humana mais sustentável, socialmente responsável e consciente.

Como cientistas e desenvolvedores, é necessário cuidado ao propor e criar soluções contra a desinformação no ambiente digital. Seria mais adequado construir ferramentas digitais que capacitem os usuários de tecnologias de comunicação. Devemos buscar respostas que auxiliem na educação das pessoas, que instiguem sua plena conscientização como membros da comunidade global digital humana, ao invés de produtos que elegem a máquina como um ator controlador disfarçado de facilidade e induzem cada vez mais o usuário a um estado de dormência social.

Referências

[1] Kahneman, D. (2012). Rápido e devagar: duas formas de pensar. Objetiva.

[2] McLUHAN, M. (1974). Os meios de comunicação: como extensões do homem. Editora Cultrix.

[3] Cota, W., Ferreira, S. C., Pastor-Satorras, R., & Starnini, M. (2019). Quantifying echo chamber effects in information spreading over political communication networks. EPJ Data Science, 8(1), 1-13.

[4] Jansen, S. C., & Martin, B. (2015). The Streisand effect and censorship backfire.

[5] Reveley, J. (2013). Understanding social media use as alienation: A review and critique. E-Learning and Digital Media, 10(1), 83-94.

[6] Foucault, M. (2012). História da sexualidade I.

[7] Puska, A., Piccolo, L., & Pereira, R. (2020). DisMiss False Information: A Value Matter. Human Computer Interaction and Emerging Technologies: Adjunct Proceedings from, 75.

Sobre o autor

Alisson Andrey Puska é cientista da computação, mestre em Informática pela UFPR (2015). Atualmente é doutorando no laboratório de Interação Humano-Computador na UFPR, investigando o fenômeno da desinformação online. Seus interesses de pesquisa englobam aspectos humanos na segurança computacional (cyber deception, cyber social engineering, developers blind spots), e filosofia da ciência e tecnologia. Alisson também é músico, adora filosofia e escrever.

Como citar este artigo

PUSKA, Alisson Andrey. Desinformação, censura e alienação no ambiente digital.  SBC Horizontes, set. 2021. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2021/09/desinformacao,-censura-e-alienacao-no-ambiente-digital>. Acesso em: DD mês. AAAA.

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