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Memes, viralização e redes sociais: dinâmicas metafóricas

Memes, viralização e redes sociais: dinâmicas metafóricas

Neste artigo, o autor aborda um fenômeno muito presente na cultura digital dos dias de hoje: os memes. Para isso, retoma a origem do conceito de meme; contextualiza-o nas dinâmicas da Internet e nos estudos de Linguística Cognitiva, à luz das teorias da metáfora; e discute alguns memes que viralizaram nas redes sociais no ano de 2020. Boa leitura!


Por José Mauro Ferreira Pinheiro

O termo meme abarca em si um sem-número de valores, desde tradições repassadas de uma geração a outra, como vestimentas, cantigas, a própria arte, até práticas comunicativas on-line, como compartilhamento em massa de imagens, vídeos, hashtags. E vem ganhando crescente notoriedade nos discursos em meio digital. O primeiro grupo de sentidos, de cunho mais estritamente cultural, estava ligado à maneira como o zoólogo britânico Richard Dawkins visualizou o fenômeno nos anos 1970. Já o segundo relaciona-se à realidade das redes sociais e às dinâmicas de produção de sentido nesses ambientes virtuais. Se o sentido original pretendido por Dawkins parece ter desaparecido na fala corrente sobre memes, algumas de suas implicações parecem estar presentes até hoje, quase 50 anos depois, no pensamento e na ação de seus usuários.

Em O gene egoísta, livro publicado em 1976, Dawkins pretendia dar conta da evolução humana e os mecanismos que a engendraram. Ele se posiciona de maneira diversa de uma corrente evolucionista bastante popular que entende que a espécie humana só conseguiu atingir sua primazia e manter-se viva até hoje porque aprendeu a viver em grupos e investiu na cooperação (seleção de grupo). Para Dawkins, esse não foi o real motivo para termos chegado até aqui. Ele entende a evolução como centrada no gene (seleção genética), que exibe uma lógica interna e própria de replicação e que nem sempre é altruísta.

Capa de O gene egoísta, de Richard Dawkins (1976)

Mais adiante no livro, ao tratar de fenômenos culturais, Dawkins afirma que na verdade essa verve replicadora não precisa estar presente apenas em nossos constituintes genéticos. Qualquer forma de replicação pode ser produtiva para a manutenção de uma espécie no globo. Se outrora o caldo primordial onde a replicação do DNA se deu era biológico,

O novo caldo é o caldo da cultura humana. Precisamos de um nome para o novo replicador, um nome que transmita a ideia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. (…) Procuro uma palavra mais curta que soe mais ou menos como “gene”. (…) podemos pensar, alternativamente, que a palavra “meme” guarda relação com “memória”, ou com a palavra francesa même .

(DAWKINS, 2007, p330)

Portanto, o termo meme é cunhado a partir de uma visão altamente biológico-genética, embora hoje venha sendo usado em espaços digitais descolado desses pressupostos. O meme é proposto como um reduto de imitação de materiais culturais. Para Dawkins, a própria noção de Deus podia ser percebida como um meme, uma vez que sua disseminação dependia da passagem de valores de uma geração para outra. Também a noção de Deus múltiplas vezes replicada contribuiu para a coesão dos grupos humanos e para sua continuidade no ambiente. Deus é uma ideia replicável e poderosa, que pode ter sido tão relevante para o Homo sapiens quanto foi a replicação de seus conteúdos cromossômicos.

A questão da agência dos usuários

Se essa percepção dawkinsiana de meme como um gene cultural fosse atualizada para a forma como hoje o concebemos, algumas questões importantes emergiriam. A primeira delas é a questão da agência. Ora, essa visão de replicação involuntária é cabível ao gene. Pode-se dizer com algum conforto que nós, seres vivos, reagimos a algum tipo de programa genético top down, que existe alguma maquinação intransitiva que nos escapa e que estamos, assim, em algum grau à mercê desse programa. Sobre os memes contemporâneos, esse fator de passividade pode ser descartado facilmente. É o que apontou o comunicólogo estadunidense Henry Jenkins, ao falar da maneira como compartilhamos memes, a saber, a partir de uma lógica com bastante participatividade. Não existe uma programação memética acima de nós, que nos induz a compartilhar memes sem qualquer tipo de reflexão anterior. Na verdade, o consumidor de memes, diz Jenkins (2009, n.p.), está sempre “transformando, ressignificando ou distorcendo seu conteúdo, conforme passa-o adiante”[1] (tradução minha).

De fato, um usuário corriqueiro de redes sociais sabe que existe espaço para manipulação do conteúdo memético que compartilha. Além de existirem diversos aplicativos e filtros que permitem a edição direta desses conteúdos, até a forma como alguém publica um meme em alguma rede pode ser compreendida como alteração e recriação efetiva. Por exemplo, se alguém escreve alguma legenda na postagem original onde o meme está veiculado, esse conteúdo composto (meme + legenda) pode se configurar um novo meme. É por isso que alguns autores preferem fazer uma distinção mais específica entre “virais” e “memes”. Por exemplo, para Shifman (2014), o primeiro grupo engloba aqueles conteúdos que são compartilhados muito rapidamente entre os usuários, gerando pouca oportunidade de efetiva participação: o espalhamento é mais automático. Já os com os memes propriamente ditos, o que se observa é uma coletânea de textos ressignificados em conjunto por vários usuários. Ou seja, esses usuários conseguem reelaborar os memes-textos de maneira a exprimir novos sentidos por meio deles.

Exemplos de memes com ressignificação coletiva são abundantes e fáceis de rastrear. O Museu de Memes (estilizado #MUSEUdeMEMES) traz bastantes contribuições nesse sentido. O site, criado pelo Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense, traz um acervo de memes relevantes dentro da cultura brasileira, catalogando suas tipologias, explicando suas origens e seus desdobramentos. Um exemplo elucidativo encontra-se ao investigar o verbete “né, minha filha”, meme arrolado nesse webmuseu. Em uma entrevista para o Fantástico, da Rede Globo, em março de 2020, o médico Drauzio Varela conversa com a detenta Suzy de Oliveira.  Eles falam sobre a situação de abandono que mulheres trans vivenciam naquele contexto carcerário. Ela afirma na ocasião da reportagem que estava há 8 anos sem receber visitas, ao que recebe um compassivo abraço do médico, após lhe dizer a frase “Solidão, né, minha filha?”, que mais tarde seria emblemática. A matéria gerou grande comoção por parte de alguns setores da sociedade brasileira, que, solidarizados, passaram a enviar para Suzy cartas, livros, bíblias, chocolate, maquiagens, como diz matéria no G1. Essa resposta em massa, motivada pela peça televisiva, poderia ser pensada como uma forma de meme, nos moldes de Dawkins: um indivíduo realiza o gesto, que contagia o próximo, e depois mais um, até atingir um grupo inteiro. Ao cabo de algum tempo, o gesto já se configurava como resposta altamente replicável e unificadora de afetos coletivos.

Num segundo momento, é divulgado no site O Antagonista que o crime cometido por Suzy foi estupro e estrangulamento de uma criança de 9 anos. Essa revelação ativou resposta de uma outra parcela da sociedade, que repudiou o crime e demonstrou esse sentimento de revolta através de memes. A essa altura, o trecho da entrevista onde Drauzio e Suzy se abraçavam já tinha ganhando as redes, num ritmo de compartilhamento que já se podia identificar como de caráter memético. Portanto, neste ponto, já circulavam memes com visões dissidentes sobre o mesmo fenômeno. O vídeo da matéria do Fantástico tinha o intuito de solidarizar o público sobre Suzy ao passo que a charge com a criança morta e sangue tencionava recriminar tanto a detenta quanto a Rede Globo.

Em seguida, o médico divulga em seu portal um vídeo solidarizando-se com a família da criança morta e dizendo que não endossa esse crime, apesar de ter se tocado bastante com o sofrimento de Suzy. Esse vídeo ganha também uma onda de novos compartilhamentos.

Por fim, o meme começa a se espalhar de vez por várias redes, agora com um forte apelo cômico, repetindo a estrutura “né, minha filha?”. São em geral piadas sobre comportamentos risíveis do cotidiano e muitas imagens com motivação temática da pandemia do Covid-19, uma vez que o vírus tinha acabado de impor confinamento no Brasil. Assim, o que se observa é um meme fortemente multifásico. Ou seja, ele encontrou diversas releituras no rastro de sua propagação, que iam sendo modificadas à medida que as pessoas descobriam coisas novas sobre a história motivadora e refabricavam seu conteúdo nas redes sociais. Trata-se, pois, de um modelo de espalhamento onde os usuários das redes são também atores dessas peças e podem contar com arbítrio para decidir qual vertente compartilhar on-line.

Meme sobre o excesso de lives na pandemia do coronavírus

Meme é linguística

Um ponto central colocado por Jenkins em sua crítica à biologização do meme tem natureza linguística. O meme ganhou associação com gene já no momento de cunhagem do termo, mas o comunicólogo estadunidense vai além. Essa indexação com o biológico também está presente em metáforas correntes como “o meme viralizou”, “virou viral” etc. É como se identificássemos a propagação dos memes como um contágio viral, algo do qual não se pode escapar. E mais uma vez, segundo essa concepção, o usuário das redes que lida com memes é visto como vítima contaminada, um manipulador sem agência. Em artigo, Jenkins questiona colocações como de Douglas Rushkoff, estudioso de mídias estadunidense. Segundo Rushkoff (1994 apud Jenkins, 2009), “os vírus midiáticos se espalham na dadosfesra da mesma maneira que os vírus biológicos fazem (…) Mas em vez de viajar por um sistema circulatório orgânico, eles circulam pelas mídias digitais”[2] (tradução minha).

No fim das contas, o que Jenkins está refutando é o uso linguístico que Rushkoff faz do termo meme. Por não estar de acordo com as formas mais modernas de lidar com o meme, essa metáfora seria “errada”, “indesejável”. No entanto, uma investigação impressionista de falante de português brasileiro revela a insistência dessa metáfora nas trocas cotidianas. Quase sempre meme é atribuído a viralização quando se fala sobre o fenômeno. Em matéria para a Gazeta Digital, vê-se a seguinte manchete: “Coronavírus ‘espalha’ novos memes nas redes sociais em MT’ (AMARAL, 2020). Nessa construção, o que está posto é uma metáfora que identifica o meme como fator viral advindo do coronavírus. É como se o meme tivesse uma natureza viral sólida, que é espalhado por um vetor e que encontra no âmbito digital espaço para propagação.

Meme sobre a pandemia do coronavírus

Essa metáfora citada não é empregada com o intuito de embelezar o texto. Ela, na verdade, reflete a forma como pensamos e agimos em relação ao conceito de meme. Ela está na mente, dando origem a diversas outras possíveis expressões linguísticas que seguem caminho análogo. Um leitor contemporâneo de português não estranharia essas construções, nem possivelmente as enxergaria como rebuscado recurso estilístico, porque essa mesma metáfora está presente na nossa fala cotidiana. Trata-se de uma noção partilhada por nossa sociedade, a saber, a metáfora conceptual MEME É VÍRUS.

Lakoff e Johnson, em Metáforas da Vida Cotidiana (2002 [1980]), discutem essa noção de metáfora que vai além da visão aristotélica tradicional. Segunda essa visão anterior, a metáfora habitaria tão-somente o domínio linguístico, podendo, portanto, ser selecionada ou evitada de acordo com o contexto, para melhor se adequar ao que se quer dizer. Na contramão dessa perspectiva, já no âmbito da Linguística Cognitiva, a metáfora conceptual não é algo a ser facilmente retirado do discurso porque ela subjaz a ele. Ela se encontra na mente do falante, determinando nossa forma de pensar e agir. É como se compreendêssemos um domínio experiencial (MEME) por meio de outro (VÍRUS). Para a Linguística Cognitiva, as metáforas conceptuais são motivadas. Elas acontecem porque o domínio de onde se parte nesse mapeamento é mais simples, concreto e mais próximo do falante do que o domínio alvo. Assim, MEME estaria num campo mais abstrato do que VÍRUS, o que nos leva a utilizar metáforas virais para falar de memes. De fato, a noção de meme é menos tangível para os falantes, por estar sempre apoiada em artefatos experienciais menos físicos e corpóreos. Já a ideia de vírus é mais atrelada à nossa fisicalidade, mais íntima por assim dizer, pois sabemos com mais clareza o que é ter um vírus no nosso corpo. Isso motivaria, na visão cognitiva, o mapeamento MEME É VÍRUS.

Esquema da metáfora conceptual MEME É VÍRUS

Horizontes epistemológicos

Resgatando a refutação das metáforas biológicas (e passivas) empreendida por Jenkins, agora à luz da Teoria da Metáfora proposta por Lakoff e Johnson, pode-se perceber campo fértil para pesquisas futuras nas interfaces entre áreas como Linguística, Comunicação, Estudos de Mídia e Computação. Como analisaram os autores, não é possível liquidar uma metáfora que está calcada em valores partilhados socialmente, mesmo que ela não aponte para uma verdade. A própria noção de verdade ou realidade foi revista pelos estudos cognitivos, porque não se trata de um dado terminado, esgotado em si. A realidade emerge da experiência, de uma mente corporificada que interage com um espaço, físico, social, cultural e tecnológico.

O que seria interessante verificar é se ocorrências linguísticas contemporâneas de MEME dariam a entrever novas maneiras de pensar e viver o conceito. Em outras palavras, cabe averiguar se os falantes/usuários de redes sociais já estão revendo a forma como se relacionam com o fenômeno meme, uma vez que atualmente podem manipulá-lo em grande medida, em vez de simplesmente ser “contaminado” por ele. Existem evidências para acreditar nisso. Em pesquisa preliminar realizada pelo autor desse artigo, algumas ocorrências destoantes do âmbito genético e viral têm se apresentado em diferentes sites da internet.


[1] No original: “Ideas get transformed, repurposed, distorted as they pass from hand to hand.”

[2] No original: “Media viruses spread through the datasphere the same way biological ones spread through the body or a community. But instead of traveling along an organic circulatory system, a media virus travels through the networks of the mediasphere.”


(As ideias constantes nesse artigo são baseadas em pesquisa em andamento do autor no programa de pós-graduação em Linguística da UERJ, sob orientação da Profa. Dra. Fernanda Carneiro Cavalcanti)


Referências

AMARAL, T. Coronavírus ‘espalha’ novos memes nas redes sociais em MT. Gazeta Digital, 2020. Disponível em: <https://www.gazetadigital.com.br/editorias/cidades/coronavrus-espalha-novos-memes-nas-redes-sociais-em-mt/610453>. Acesso em: 1 dez. 2020.  

DAWKINS, R. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

G1. Detenta trans Suzy já recebeu 234 cartas após reportagem do Fantástico, diz secretaria de São Paulo. Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/03/07/detenta-trans-suzy-ja-recebeu-234-cartas-apos-reportagem-do-fantastico-diz-secretaria-de-sp.ghtml >.  Acesso em: 1 dez, 2020.

JENKINS, H. If It Doesn’t Spread, It’s Dead (Part One): Media Viruses and Memes. 2009. Disponível em: < http://henryjenkins.org/blog/2009/02/if_it_doesnt_spread_its_dead_p.html>. Acesso em: 1 dez. 2020.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação da tradução: Mara Sophia Zanotto. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Educ, 2002.

MUSEU DE MEMES. Né, minha filha? Disponível em < https://www.museudememes.com.br/sermons/ne-minha-filha/>. Acesso em: 30 nov. 2020.

RUSHKOFF, D. Media Virus: Hidden Agenda in Popular Culture. Nova Iorque: Ballantine, 1994 apud JENKINS, H. If It Doesn’t Spread, It’s Dead (Part One): Media Viruses and Memes. 2009. Disponível em: < http://henryjenkins.org/blog/2009/02/if_it_doesnt_spread_its_dead_p.html>. Acesso em: 1 dez. 2020.

SHIFMAN, L. Memes versus virals. In: ______. Memes in digital culture. Cambridge: MIT Press, 2014. P. 55-63.

Sobre o autor

José Mauro Ferreira Pinheiro é graduado em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduando em Letras Português/Alemão pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista pelo LerUERJ (DEPEXT) e vinculado ao Projeto Metaphor Bibliography Brasil UERJ, sob orientação e coordenação da Profa. Dra. Fernanda Carneiro Cavalcanti. Esse projeto, por sua vez, está afiliado à editora acadêmica John Benjamins e tem parceria com a Universidade de la Rioja (Espanha). Atua nas seguintes áreas: ensino de língua estrangeira, léxico, semântica cognitiva, teoria da metáfora conceptual, estudos de mídia, estudos germanísticos.

Como citar este artigo:
PINHEIRO, José Mauro Ferreira. Memes, viralização e redes sociais: dinâmicas metafóricas. SBC Horizontes, dez. 2020. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/12/memes-viralizacao-e-redes-sociais-dinamicas-metaforicas/>. Acesso em: DD mês. AAAA.

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