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LGBTQIA+, streaming e jogos digitais. Um bate-papo de milhões com a drag queen Mirana

LGBTQIA+, streaming e jogos digitais. Um bate-papo de milhões com a drag queen Mirana

Por Luiz Paulo Carvalho e Gabriel Barcelos

Na capa, da esquerda para a direita, de cima para baixo: Mirana Drag, Samira Close, Wanessa Wolf, Rebeca Gamer, Bryanna Nasck, Sher

Já estamos todos cansados dos textos nos metralhando com os clichês de que “cada dia a Computação se torna mais presente nas nossas vidas”, “a Informática pervade a sociedade de forma crescente” ou “é cada vez mais difícil viver em sociedade sem inclusão digital”. Com o evento da pandemia de COVID-19 a transformação digital se acelerou, intensificando estes clichês analíticos.

Paralelamente à pervasividade computacional, as qualidades computacionais técnicas trouxeram um leque de funcionalidades antes custosas ou inviáveis, como armazenamento e tráfego de dados. Tranquilamente podemos perceber que uma área cresceu bastante em relevância durante o período pandêmico, com isolamento social, quarentena e reclusão: o streaming

A década de 2020 iniciou com uma translação massiva da comunicação à transmissão digital (que vamos chamar aqui de streaming, como é popularmente conhecida). Aulas, palestras, reuniões, conferências, eventos, velórios, missas, partidas de futebol, sexo virtual, tutoriais, comunicações jornalísticas, audiência coletiva síncrona de mídias para grupos, festas, formaturas… a imaginação foi (e é) o limite.

A dinâmica interativa e transmidiática tomou tais proporções ao ponto do senador Renan Calheiros perguntar, através do seu Instagram, quais perguntas os seus seguidores gostariam que ele fizesse na CPI da COVID, exposto na Figura 1. CPI essa que, também, é streamada (transmitida, em internetês) em tempo real. Tanto por contas oficiais do governo, quanto por outros interessados em diversos canais disponíveis. Os internautas têm disponíveis quais canais digitais lhes convier para acompanhar a CPI, com os comentários de quem está moderando a transmissão e trocando ideias com outras pessoas no chat. O próprio moderador pode ser um comentarista político. Agora a CPI da COVID ocupou este vazio deixado pelo término do Big Brother Brasil, e com uma pluralidade de opções espetacular.

Renan Calheiros interage no Instagram
Figura 1 – Renan Calheiros interage no Instagram

Ao final do texto teceremos considerações éticas sobre streaming. Nem tudo são flores e aqui também é válida a análise e avaliação de valores.

Aqui nesta comunicação vamos tratar de um tipo específico de streaming, o entretenimento. Este texto traz uma entrevista com Gabriel Barcelos, que é streamer de jogos digitais e artista Queer, incorporando a sua persona Mirana em streaming, como na Figura 2. Gabriel utiliza da arte drag como um diferencial, dividindo a streaming com a sua persona Mirana. Antes, vamos analisar alguns dados de streaming?

Canal da Mirana na Twitch (taca stream na fada): https://www.twitch.tv/miranadrag/

Mirana Drag
Figura 2 – Mirana em uma de suas lives

Twitch

YouTube e Instagram têm funcionalidades de streaming, só que eu resolvi trazer para vocês uma plataforma digital especializada primariamente em streaming, a Twitch. A página da Wikipédia traz as informações gerais, vou deixar aqui apenas o primeiro parágrafo:

“Twitch é um serviço de streaming de vídeo ao vivo que se concentra em streaming ao vivo de videogame, incluindo transmissões de competições de esportes eletrônicos. Além disso, oferece transmissões de música, conteúdo criativo e, mais recentemente, streams “na vida real”. É operado pela Twitch Interactive, uma subsidiária da Amazon.com, Inc. Foi introduzido em junho de 2011 como um spin-off da plataforma de streaming de interesse geral Justin.tv. O conteúdo do site pode ser visualizado ao vivo ou por vídeo sob demanda.”

Vamos falar de números? De dados? Apenas um resumo (MUCHNEEDED, 2021).

  • Em 2018, 46 bilhões de minutos de stream foram assistidos mensalmente;
  • Mensalmente são mais de 3 milhões de transmissores, únicos, de conteúdo;
  • 81.5% dos usuários, streamers ou não, se identificam pelo gênero masculino;
  • 55% dos usuários estão no intervalo etário de 18 até 34 anos de idade;
  • O piso etário permitido para tornar-se usuário é de 13 anos de idade, só que vários usuários estão abaixo deste limite. E, mesmo irregulares, são também transmissores de conteúdo;
  • Um usuário médio dispendia 95 minutos diários na plataforma;
  • 62.87% da atividade na plataforma é em inglês;
  • O streamer “Ninja” é o mais famoso da plataforma, com mais de 12 milhões de seguidores. Para uma comparação simples, Ninja tem mais seguidores na Twitch do que Portugal tem de população total (em torno de 10 milhões de habitantes);
  • Ninja já arrecadou mais de 500 mil dólares em apenas um mês;
  • Twitch tem mais de 9 milhões de canais;
  • Tem mais de 27 mil streamers parceiros e 220 mil streamers afiliados.
  • Para se tornar um afiliado, precisa ter o piso de 50 seguidores, transmitir 500 minutos totais, transmitir por 7 dias únicos e ter uma média de 3 ou mais visualizadores (viewers, em internetês) concorrentes nos últimos 30 dias. Afiliados podem monetizar seu trabalho na plataforma e receber por ele.

Estes são os dados de apenas uma plataforma de streaming, dentre várias outras. Certas plataformas de streaming se “especializam” em algum tipo de conteúdo, tema ou tópico. Enquanto a Twitch iniciou em “jogos digitais”, hoje sua abrangência engloba muito mais que isso.

Um serviço muito famoso de streaming é o Spotify, dedicado à transmissão de música. Sua funcionalidade principal é assíncrona, isto é, não é em tempo real. Apesar do Spotify disponibilizar transmissão síncrona, ela é pouquíssimo conhecida e utilizada.

Streaming e pesquisas acadêmico-científicas

Como fenômeno crescente, a área de Interação Humano Computador (IHC) abraçou a cultura do streaming com carinho, iniciando sua relação de produção intelectual sobre este fenômeno. Comunicações na área, como na conferência internacional do tema (CHI), dedicam atenção crescente ao streaming, e sua associação com a Computação.

Johnson (2021) e Pellicone e Ahn (2017) tratam do trabalho “off-stream”, que é toda a dedicação de tempo e recurso por detrás da webcam. De início parece que a atividade da pessoa streamer é quase como espontânea e descuidada, como se tudo já estivesse pronto e disponível e apenas sentasse na cadeira, apertasse um botão, e *tcharam* está tudo perfeito. Há uma complexidade laboral implícita, o que Latour chamaria de “caixa-preta”. Há preocupação com equipamentos, cenário, direitos autorais de terceiros, parcerias, criação e manutenção de redes de apoio, dentre outros.

Chen e colaboradores (2021) prospectam a vida do educador por streaming e seus desafios, das inseguranças em adentrar o digital em rede até a adequação psicológica com este novo meio.

Lu e colaboradores (2018); Glickman e colaboradores (2018) e Kriglstein e colaboradores (2020) tratam da relação interativa entre streamer e viewer. Como motivar e engajar a audiência? O que fazer para prover streaming divertido e interessante? As interfaces habilitam uma dinâmica satisfatória de interação entre streamer e viewer? Estas são questões recorrentes nos profissionais deste ramo, tratadas nestes trabalhos.

Lin (2021) trata do sistema de recompensa e presentes entre streamers e viewers, os construtos associados com esta relação social, como lealdade e divertimento.

Streaming e LGBTQIA+

Estamos em junho, considerado o mês do orgulho e diversidade, e aproveitando o ensejo tratamos de streaming de pessoas LGBTQIA+ e heterodivergentes/não-heteronormativas.

Recordando, o que significa a sigla? Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, o + indica uma classificação não exaustiva. Por exemplo, neste “+” estão englobadas as pessoas dois espíritos (two-spirit), um gênero atrelado à cultura indígena estadunidense (Wikipedia, 2021).

Enquanto na televisão a agenda sociomoral ditava diversas restrições e limitações às identidades desviantes/divergentes, o streaming abriu um novo universo de possibilidades para expressão. Os streamers são responsáveis por si e pela sua comunicação, através das regras da plataforma. 

Por exemplo, RuPaul Drag Race é um exemplo de programa televisivo com integrantes LGBTQIA+ expondo elementos heterodivergentes/não-heteronormativas, mas a aparição e performance dos artistas é controlada por outros, que não eles mesmos. Em streaming, o streamer está livre de normativas morais, temas, juízos, avaliações, com a possibilidade de expor o que puder ou lhe convier. Não há controle externo ou agenda editorial. Mas ainda estão ancoradas às regras da plataforma.

Definir drag queen é uma tarefa muito complexa e não vamos nos estender nela aqui. De forma muito sucinta, a arte drag envolve subverter estereótipos e performance de gênero. Há o(a) artista e o(s) personagem(ns), que são as drags. A arte drag possui, por si, diversas subcategorias e nuances próprias. Por exemplo, drag king, enquanto a drag queen trata de estereótipos atribuídos ao gênero feminino, drag king opera o mesmo ao gênero masculino. Performar a arte drag é independente de gênero, isto é, mulheres podem ser artistas drag queen.

Com os serviços de streaming, artistas puderam expor sua prática artística fora do padrão moral dominante, como as drag queens. E, mais do que isso, em ambientes e práticas fora do escopo tradicional, como boates, onde foram subjugadas a se manter. Mirana, por exemplo, oferece streaming de jogabilidade, subvertendo a alocação normal atribuída à drag queen que é de estar apresentando lipsync (dublar com uma música de fundo), dançando ou cantando. Outro exemplo é a drag queen Rita Von Hunty, que apresenta conteúdos acadêmicos diversos no YouTube.

Entrevista com Gabriel/Mirana

Nossa entrevista durou um pouquinho mais de uma hora e aconteceu através do serviço Google Meets. Estruturamos as informações em seções para facilitar a contextualização. 

Prólogo

De início, Gabriel mora no Rio de Janeiro, em Jacarepaguá, especificamente no Anil. Neste local há uma forte atuação de milícias, organizações de poder paralelo e crime organizado. Nossa entrevista foi interrompida logo no início para ele receber o técnico da operadora de Internet, por causa de um furto de cabeamento de Internet envolvendo o local onde ele mora.

Após a visita do técnico, continuamos a entrevista. Infelizmente, não houve garantia de que o problema seria resolvido ou a situação melhoraria…

Introdução, Gabriel e Mirana

No universo drag queen, dizemos que a pessoa artista “faz” drag. Isto é, o ato de performar a arte drag é chamado de “fazer drag”. Gabriel já conhecia e admirava a arte drag há bastante tempo, em 2018 se aprofundou neste meio e encantou-se com a arte e a performance drag ao vê-la em boates. Neste ano decidiu começar a fazer drag, e continua até hoje. Mirana participou de concursos, frequentou muitas festas, organizou eventos, dentre outras diversas atividades.

Gabriel cursava Biblioteconomia e deixou o curso por não sentir uma conexão tanto com a área quanto com a sua prática, precisava criar e exercer sua criatividade e na faculdade não conseguia nada disso, desmotivando-o. Por outro lado, a arte drag habilitava e habilita o exercício de sua criatividade e legítima expressão.

A Mirana surge como uma forma do Gabriel expressar o que não conseguia, de coisas que estavam tão entranhadas dentro dele que não poderiam mais ser faladas, tinham que ser gritadas. Um diálogo entre o queer e extravagante da Mirana com o introvertido e estudioso do Gabriel, o encontro dessas coisas ajudam ele a encontrar-se. Ela ajuda o Gabriel a despertar sua autenticidade, dando a ele a oportunidade de experimentar coisas novas.

O início

Percebendo como pouco atrativo, Gabriel abandonou a ideia de produzir conteúdo assíncrono para o YouTube e mirou em uma abordagem vista por ele como em crescimento, streaming. É muito difícil se sobressair no YouTube, hoje em dia é Tik Tok e streaming. E como ele não queria “fazer dancinha no Tik Tok”, optou pelo streaming.

E desde o início Gabriel quis mostrar o que ele faz bem, drag. Como [nas palavras dele] ele não joga bem e não tem equipamento bom, então poderia oferecer entretenimento com a arte drag.

Duas foram as maiores dificuldades para iniciar, equipamento e tempo. Ele usava o computador do namorado, câmera e microfone de amigos. Tudo emprestado, e foi comprando um a um. E tempo, dividindo o quarto com o namorado, o namorado trabalhava de manhã e ele streamava de noite, tornando os horários incompatíveis. Em situação de pandemia e dividindo o espaço, esse cenário se tornou bem complicado e só melhorou depois que Gabriel se mudou, tendo seu próprio quarto.

Depois de uns 3 meses de streaming, Gabriel definiu que este não era mais seu hobbie e sim sua ocupação principal, sua profissão. Passou de 9 horas a 30 horas semanais de streaming.

Com dificuldades para conseguir um emprego ou ganhar dinheiro, abraçou essa como sua única opção. Quando viu a oportunidade de dar certo, agarrou com unhas e dentes e não largou mais.

Aí entra o Facebook, e também a problemática dos algoritmos opacos e confusos. Em alguns momentos o Facebook impulsionava a live da Mirana, ela aparecia para todo mundo, e alcançava uma audiência estável de 50 pessoas ou mais. Esses números, para quem está começando, são muito bons e inesperados. Nisso ela foi tentando fidelizar os seus viewers, começou a ganhar dinheiro e persistiu.

Manutenção

Não só o algoritmo, como a política do Facebook é confusa. E a plataforma notifica uma quantidade de pessoas sem que você saiba o porquê. Por exemplo, você descobre que ela notifica 100, só que não sabe o motivo dessa quantidade, nem como isso se dá. Você não sabe se precisa pagar um impulsionamento, fazer mais horas… é do jeito que ele quer.

Se você fica algum tempo sem streamar, o Facebook reduz a sua relevância e você perde visibilidade e alcance. Não há um comprometimento humanizado entre o Facebook e o streamer, a plataforma espera que o prestador de serviço atue constantemente, sem abertura para férias ou qualquer interrupção.

Assim como no modelo tradicional, os viewers querem assistir o que estão acostumados. Eles querem abrir a stream e ver o que agrada elas, e o que elas já esperam encontrar. O próprio Gabriel já está cansado de jogar o que joga hoje, onde ele já tem o rank máximo, pontuação altíssima e a maioria das conquistas alcançadas. Entretanto, quando ele abre a live é o que os viewers querem, eles querem ver a Mirana jogando a mesma coisa. Mudar a dinâmica altera o engajamento, com risco de perder viewers e popularidade, consequentemente perder rendimento financeiro.

Você também precisa saber a hora certa de streamar, porque o fator tempo é essencial. Você abdica de parte da sua vida para dedicar-se à ocupação. Tanto dia de semana quanto finais de semana. Gabriel se mantém em isolamento social, por causa da pandemia. Após o período pandêmico, o desafio será conciliar o streaming com as festas e eventos, nas quais Mirana realiza performances.

Dinâmica com o público

Diferente do que se espera, os viewers têm expectativas que não apenas o conteúdo e há uma dinâmica flexível. Alguns estão lá para assistir o jogo e a jogabilidade, enquanto outros querem ver a Mirana, outros só querem assistir uma partida (e depois deixam a live), outros querem interação, outros querem jogar com a Mirana e fazer parte da stream, dentre outros. O streamer define o seu nicho e isso determina os viewers que, eventualmente, virão.

A ideia psicossocial é construir um ambiente seguro e construir uma comunidade unida, fugindo de toda a desgraça e dos problemas externos, como da pandemia de COVID-19 e de tantas mortes. Paralelamente, há uma troca de experiências e compartilhamento de conhecimentos, onde a Mirana interage com pessoas leigas e ignorantes do meio LGBTQIA+ e tem a chance de passar suas percepções para elas, para elas perceberem o que é uma drag queen, conversarem sobre assuntos divergentes ou complexos, debaterem sexualidade e tópicos queer. Formar um ambiente seguro para pessoas vulneráveis e fragilizadas, apoiá-las e mostrar que elas não estão sozinhas, mesmo que em âmbito digital.

Mirana atrai seu público pelo humor, pela cascaria e pela diversão. Como joga a mesma coisa há muito tempo, também pela jogabilidade experiente e de boa qualidade. E assim como as pessoas assistem, a dinâmica interativa também permite que ela ensine as pessoas e troque experiências de jogo.

Começar, ou recomeçar, é muito difícil. O viewer não só quer ver um conteúdo específico, como também espera te ver na plataforma da preferência dele. Se você entrega um serviço, precisa ser o serviço da melhor forma possível para o interessado. Até o passo de criar uma conta em uma plataforma diferente pode afastar o viewer fidelizado. O viewer quer facilidade e comodidade.

Há uma rotatividade de público, alguns são fiéis e permanecem por um período longo de fidelidade com o streamer. Outros, a maioria, revezam entre canais ou streamers e, eventualmente, o horário se torna incompatível e deixam de acompanhar. 

Diferencial de interação com a audiência

Para interatividade, Gabriel oferece diversas dinâmicas com o público enquanto Mirana. Tanto como diferencial como para diversificar o entretenimento.

Na Quinta-feira é o dia de maquiagem, começa com a cara limpa e se maquia na live, enquanto interage com os viewers. E é a sua audiência que define qual maquiagem, ou tipo de maquiagem, que vai ser.

Sexta-feira é o dia de beber, então ela bebe de acordo com acontecimentos específicos que ocorrem pela live. Por exemplo, sempre que alguém faz uma doação, Mirana ativa uma roleta virtual e bebe de acordo com o resultado. Mesmo assim, é proibido fazer streaming alcoolizado na Twitch. Tanto os streamers pequenos quanto a plataforma parecem não se preocupar efetivamente com isso, porque as lentes estão voltadas aos streamers maiores.

Sábado tinha live de madrugada, mas não tem acontecido pela baixa audiência. Domingo é dia de cosplay, pergunta o que eles querem ver e se monta de acordo, por exemplo, Sailor Moon.

Segunda-feira, Mirana joga com os subs. Ela convida os subs para jogar algum jogo de comum escolha deles. Terça-feira é um dia sem tema ou dinâmica específica. E quarta-feira é “dia de folga”. Mas o que é um sub? A mesma coisa que “inscrito” como no youtube, a diferença é que quando você se inscreve no canal de alguém na twitch, você ajuda financeiramente o streamer.

As interações criam uma sensação das pessoas serem ouvidas, de proximidade, que é potencializada pela situação pandêmica que vivemos atualmente.

Parte técnica e tecnológica

O monitor é uma TV, que é o que ele tem. A placa de vídeo está no fim da vida útil, então durante o streaming é possível que tenha travamentos. Gabriel também critica a obsolescência programada, onde as coisas “são feitas para quebrar muito rápido”, e se o computador dele é de 4 anos atrás, agora já está praticamente obsoleto.

O viewer quer gráficos de altíssima qualidade. E não só no jogo! Como parte do que é oferecido é a própria Mirana, eles também querem que ela esteja na melhor qualidade gráfica possível, para ver sua peruca, maquiagem, acessórios… os equipamentos não-funcionais, igualmente, devem estar impecáveis, como o chroma key.

O que conta no engajamento inicial são os primeiros segundos, no máximo os 10 primeiros, e se não for satisfatório ao viewer, ele abandona a stream para ir para outra. Esse é o piso mínimo para ele não apenas gostar da sua live, mas também de você. E para isso os equipamentos e a conexão precisam ser os melhores possíveis.

Um equipamento alheio à Computação é o ring light, que é essencial para streaming. Ele fornece a iluminação necessária para que sua expressão facial e rosto apareçam bem, sendo imprescindível para uma drag queen que precisa de exposição facial.

O chroma key ele fez o dele mesmo, porque R$100 na internet estava fora de cogitação.

Parte social e comportamental

Os ataques homofóbicos são constantes, e você acaba se acostumando porque eles acontecem quase todo dia. Esse “costume”, por sua vez, é um mecanismo de resiliência, dado que a naturalização deste fenômeno é igualmente negativa. E quando é uma pessoa individualizada proferindo discurso fóbico, ainda é simples de resolver, o problema é quando a prática vem de um grupo, organizada.

A opressão coletiva pode ocorrer por recursos humanos ou computacionais. Quando é humano, são coletivos inteiros que acessam a stream e iniciam práticas de ódio, como já ocorreu de 40 pessoas engajarem neste comportamento. Precisa-se resolver uma de cada vez, para evitar que se repita.

Não apenas a interação é humana, quando são bots vêm dois mil, cinco mil… aos milhares e invadem a stream. O sistema injeta milhares de seguidores fantasmas e começa um ataque coordenado contra o streamer. E se você tem muitos seguidores “fantasmas”, como são classificados os bots, a Twitch te penaliza, ao ponto de te bloquear. Ela entende que você está criando seguidores fantasmas.

Para diminuir a opressão, Mirana configurou de forma que apenas os seguidores da página  possam interagir nas lives. E mesmo que ataques de bots sejam problemas comuns a sexualidades diversas, streamers heterossexuais não correm risco de “restringir” a comunicação de seus canais por um ataque automatizado e coordenado de bots “heterofóbicos”. Até porque a “heterofobia” é um fenômeno inefetivo e irreal sociomaterialmente.

É essencial que haja parceria com outros streamers, e dessa parceria surgem também amizades. Ninguém cresce sozinho. Nisso podemos ver um ecossistema de streamers, constituindo uma rede por si só. Eles se ajudam mutuamente e mantêm dinâmicas de interação que os fortalecem.

Um desafio atípico e pouco esperado é lidar com os viewers quando há uma interação inesperada. Na primeira vez que dois subs brigaram na live, Mirana perdeu a compostura e encerrou ali mesmo. Foi algo totalmente inesperado. Hoje ela já tem experiência e sabe sair dessas situações de forma polida.

No Facebook o atrativo é o thumbnail, a imagem de apresentação do streamer. Para a thumbnail do Facebook, Gabriel comprou próteses de seios de silicone para chamar atenção logo na impressão inicial. No Mercado Livre estes acessórios são vendidos abertamente. E o apelo ao seio enorme agrada ao hétero, que gosta desta apelação; e agrada ao gay, que fica louco por coisas assim. Essa é uma das premissas da arte drag, “jogar” com os estereótipos de gênero e escrachar os padrões. Só nestes seios, Gabriel investiu aproximadamente R$600 para Mirana.

Parte organizacional ou procedimental

Como o preço dos eletrônicos e peças de computadores depende da variação do dólar, isso influencia os streamers. Principalmente os iniciantes, sem capital e entrando neste negócio do zero.

O dinheiro do streaming financiou os equipamentos posteriores ao início, depois que começou foi comprando gradativamente materiais de melhor qualidade para stream.

Apesar da maior liberdade e menor controle, as plataformas ainda possuem um leque de regras, algumas nebulosas e outras excessivamente rigorosas. A lista é grande demais, mas dentre as regras temos algumas que mais incomodam como ouvir músicas na stream, jogar em servidores privados não listados, entre outros. Na plataforma do Facebook, o sistema é ainda mais rigorosos a ponto de banir usuários LGBTQ+ que usam seus dialetos por conta do algoritmo identificar como conteúdo homofóbico (como escrever bicha, que é um vocativo normal dentre gays).

Sobre comunicação e atendimento das plataformas prestadoras dos serviços, mesmo que Gabriel reclame e registre queixa dos ataques fóbicos em sua stream, não há resposta. E ele aprendeu a resolver o problema de ataques automatizados sozinho. Como Gabriel percebe, “diz a lenda” que se falar com a Twitch ela fornece a ferramenta adequada para lidar com esse cenário de ataques automatizados, entretanto ela não respondeu nenhuma das tentativas de comunicação dele.

As redes de streaming não se preocupam com quem é pequeno, seja Twitch ou Facebook. Se você é contratado há uma atenção, se não é só mais um. O contratado tem, de fato, um contrato, recebe salário e tem suporte técnico. O suporte técnico, na maioria das vezes, não é em português brasileiro, excluindo boa parte da população brasileira desta comunicação. O Facebook ofereceu um contrato de exclusividade não remunerado para Gabriel, que ele recusou por acreditar ser um abuso e excesso da plataforma, de exigir exclusividade e oferecer pouquíssimo em troca, sem pagamento.

A mecânica de “pagar” o streamer também varia de acordo com a plataforma, e muitos usuários não estão acostumados. Então, se for muito custoso em tempo e esforço, o usuário não remunera o streamer.

O Facebook e a Twitch têm formas diferentes de monetização, principalmente as analogias lúdicas. Você pode pagar e se inscrever no canal ou comprar “moedas virtuais” para pagar o streamer. O Facebook usa “estrelinhas” como abordagem semiótica lúdica e amigável, como o próprio Gabriel diz, as pessoas gostam de ver as estrelinhas subindo e ver o nome na tela indicando quem transferiu as estrelinhas, é bonitinho. Melhor que cifrões ou números literais.

Na Twitch o que manda são os inscritos (subscribers, ou subs). O streamer ganha pela quantidade de subs. E a quantidade de subs também indica certo “poder” do canal, porque um streamer com um milhão de subs é percebido como um streamer “interessante”, isto é, “se ele tem tantos subs é porque tem algum diferencial, não é?”. Cada sub equivale a, mais ou menos, R$9.

Mesmo assim, Gabriel oferece para que os viewers apoiem seu trabalho através de transferência por PIX, que não tem imposto e cai direto na sua conta. Enquanto a plataforma, pelas suas vias próprias, abocanha parte do rendimento. O sub dá engajamento, mas o PIX é mais fácil e direto. Para Gabriel, quanto mais fácil e cômodo para o viewer, melhor, porque fica a critério do interessado pagar ou não. Agora que os usuários podem pagar o sub com PIX, as pessoas não dependem mais de cartão de crédito para esta iniciativa.

Sobre ganhar dinheiro, em um mês normal o pagamento é um pouco mais de R$1.000. Sendo uma ocupação instável e que depende de audiência, em um mês recebeu um pagamento bem maior de um viewer só, e conseguiu em torno de R$2.300. 

Prós e contras

Como prós:

  • Você trabalha em casa e não corre os riscos da pandemia
  • Trabalha jogando, com algo que pode ser prazeroso
  • Interage com o público
  • Tem uma liberdade de horário
  • Você tem menos restrições morais ou normativas e maior liberdade de expressão 
  • Você é seu próprio patrão, e como autônomo têm responsabilidades próprias
  • Bom para quem se adapta bem à instabilidade e coisas novas, ao inesperado

Como contras:

  • Você é seu próprio patrão, e como autônomo têm responsabilidades próprias
  • Tem que lidar com o público, e os aspectos negativos disso, como exigências
  • Precisa “interpretar” um personagem, e parecer feliz mesmo que não esteja
  • Você é refém dos seus horários de trabalho, as pessoas esperam que você trabalhe nos mesmos dias e mesmos horários
  • Precisa de constância, se você “desaparece” as pessoas encontram outros streamers e criam fidelização com eles
  • Não tem férias
  • É refém do engajamento
  • O pagamento é incerto e instável
  • Você está sujeito às regras da plataforma, e pode ser “punido” (por exemplo, banido) sem ter direito à explicação ou arguição do caso.
  • Ruim para quem espera estabilidade e constância, se não se torna entediante e corre o risco de perder a audiência

Recomendando pessoas que começam do zero

Gabriel é bem realista quando recomenda a quem quer começar e já introduz o cenário com sinceridade. Outras drag queens já procuraram Gabriel para conselhos de iniciante e nenhuma persistiu, porque o início é árduo. 

Precisa investir dinheiro, porque os equipamentos são caros, principalmente com a variação do dólar. E precisa de equipamentos que melhorem a qualidade, como chroma key e ring light, e não apenas façam o streaming acontecer. Precisa persistir e ter muita paciência, no início o streamer passa muito tempo streamando para ninguém, ele fica literalmente jogando e falando para uma audiência de zero pessoas. Se quiser começar realmente do zero, precisa se manter online e ativo para “mostrar que existe” e só assim começar a formar uma base de viewers fiéis, a sua comunidade.

Um colega que começou a streamar desligava a stream quando tinha pouquíssimos viewers, em torno de 5, e Gabriel explicou que ele precisa persistir nisso e não abandonar, porque é assim que se cria a base de viewers. As pessoas não querem consumir canais que “desligam do nada” ou abandonam elas enquanto estão assistindo.

Conclusão

Estamos no mês do orgulho e da diversidade e nossa intenção é trazer a voz, experiência e vivência da interseção entre Computação, com o fenômeno do streaming, e diversidade, com a expressão LGBTQIA+ e a arte drag. Gabriel é streamer, gay e artista drag, que performa Mirana durante sua streaming, e dividiu conosco sua vivência de streaming.

Streaming nos permite assistir, no digital em rede, uma gama de conteúdos desviantes do padrão tradicionalmente aceito pela moral dominante. Neste sentido, refletindo eticamente, o universo do streaming nos possibilita uma abertura para conteúdos divergentes e independentes, horizontalizando o poder comunicativo e enfraquecendo o monopólio de comunicação das grandes redes de comunicação. Por outro lado, esta independência e menor controle podem trazer consequências negativas, como conteúdo impróprio legalmente (como pornografia exposta para menores) ou disseminação de desinformação sem centralização institucional, isto é, de difícil responsabilização; e, mesmo que haja maior apelo plural e popular, ainda é uma forma elitizada de comunicação transmitida, pois há necessidade de diversos requisitos técnicos de custo elevado; há o risco de “despersonificação” enquanto indivíduo no ciberespaço: a pessoa pode ser lida como “produto” e consumida de acordo, causando a sua percepção de que precisa apelar ao absurdo para alcançar métricas de sucesso, por exemplo, expor seu corpo para atrair mais viewers, mesmo que isso seja contra seus valores.

O diálogo com Gabriel nos mostra que o fenômeno do streaming não é tão trivial quanto parece. Mesmo que esteja disponível para muitos, ainda há desafios diversos em aspectos técnicos, organizacionais e humanos. Não é apenas “ligar a webcam e fazer qualquer coisa”, até para streamar uma live mostrando você “apenas” comendo coisas é necessária uma base e diversos conhecimentos associados (ANJANI et al., 2020).

O futuro do streaming nos apresenta o potencial de romper com o status quo moral das comunicações tradicionais. Ainda temos muitos desafios pela frente, pois problemas do âmbito físico assolam analogamente o digital, como a homofobia, e são potencializados pelos próprios recursos computacionais.

Referências

ANJANI, L., Mok, T., Tang, A., Oehlberg, L., and Goh, W. B. (2020). Why do people watch others eat food? an empirical study on the motivations and practices of mukbangviewers. Em Proceedings of the 2020 CHI Conference on Human Factors in Computing Systems, CHI ’20, pp. 1–13, New York, NY, USA. Association for Computing Machinery.
CHEN, X., Chen, S., Wang, X., and Huang, Y. (2021). “I was afraid, but now i enjoy beinga streamer!”: Understanding the challenges and prospects of using live streaming for online education. Proc. ACM Hum.-Comput. Interact., 4 (CSCW3).
GLICKMAN, S., McKenzie, N., Seering, J., Moeller, R., and Hammer, J. (2018). Design challenges for live streamed audience participation games. Em Proceedings of the 2018 Annual Symposium on Computer-Human Interaction in Play, CHI PLAY ’18, pp. 187–199, New York, NY, USA. Association for Computing Machinery.
JOHNSON, M. R. (2021). Behind the streams: The off-camera labour of game live streaming. Games and Culture. doi: https://doi.org/10.1177/15554120211005239.
KRIGLSTEIN, S., Wallner, G., Charleer, S., Gerling, K., Mirza-Babaei, P., Schirra, S., andTscheligi, M. (2020). Be part of it: Spectator experience in gaming and esports. InExtended Abstracts of the 2020 CHI Conference on Human Factors in Computing Systems, CHI EA ’20, pp. 1–7, New York, NY, USA. Association for Computing Machinery.
LIN, L. C.-S. (2021). Virtual gift donation on live streaming apps: the moderating effect of social presence. Communication Research and Practice, doi: https://doi.org/10.1080/22041451.2021.1889190.
LU, Z., Xia, H., Heo, S., and Wigdor, D. (2018). You watch, you give, and you engage: Astudy of live streaming practices in china. InProceedings of the 2018 CHI Conference on Human Factors in Computing Systems, CHI ’18, pp. 1–13, New York, NY, USA. Association for Computing Machinery.
MUCHNEEDED. Twitch by the Numbers: Stats, Users, Demographics Fun Facts. 5 jan. 2021. Disponível em: https://muchneeded.com/twitch-statistics/.
PELLICONE, A. J. and Ahn, J. (2017). The game of performing play: Understanding streaming as cultural production. Em Proceedings of the 2017 CHI Conference on HumanFactors in Computing Systems, CHI ’17, pp. 4863–4874, New York, NY, USA. As-sociation for Computing Machinery.
WIKIPEDIA. 15 jun. 2021. Two-Spirit. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Two-spirit

Sobre as pessoas autoras

Luiz Paulo Carvalho

Bacharel em Sistemas de Informação (SI) pela UNIRIO. Mestre em Informática, com ênfase em SI, pelo PPGI/UNIRIO. Doutorando em Informática pelo PPGI/UFRJ, integrante do Laboratório CORES. Bolsista e pesquisador CAPES. Tópicos de interesse são, não limitados a, Ética Computacional, Discriminação e opressão social em SI, Transparência de SI, Modelagem e qualidade de processos de negócios, Privacidade e proteção de dados, CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade).

Gabriel Barcelos

Streamer parceira na Twitch, estudante de 5º períodos de biblioteconomia até parar pra focar em arte. Drag queen, maquiador e performer.

Como citar essa matéria

CARVALHO, Luiz Paulo; BARCELOS, Gabriel. LGBTQIA+, streaming e jogos digitais. Um bate-papo de milhões com a drag queen Mirana. SBC Horizontes, jun. 2021. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2021/06/lgbtqia-streaming-e-jogos-digitais-um-bate-papo-de-milhoes-com-a-drag-queen-mirana/>. Acesso em: DD mês. AAAA.

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