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Por que não me sinto suficiente no mundo da tecnologia? Uma discussão psicológica sobre a autoexigência feminina.

Por que não me sinto suficiente no mundo da tecnologia? Uma discussão psicológica sobre a autoexigência feminina.

Por Marcela dos Anjos e Mariana Carmin

Muitas profissionais passam horas se questionando: o que ainda falta aprender? O que ainda falta para desenvolver? Qual tecnologia ainda não sei? Por que ainda não cheguei lá? e por aí vai… Esses questionamentos sobre o que ainda Falta, além dos sentimentos de Insuficiência e de Incompetência, e os comportamentos de Cobrança, Controle e Rigidez consigo mesma, podem ser sinais de Autoexigência

Considerando que o setor de tecnologia é majoritariamente masculino e outras questões culturais da mulher no mercado de trabalho, percebe-se o impacto da autoexigência no dia a dia das mulheres na área de tecnologia. E para falar sobre isso, podemos lembrar de um jogo famoso, o Super Mario

Às vezes o objetivo é querer ser como o Super Mario, a começar pelo nome, querer ser “Super”, e isso não combina com fazer o básico, não combina com ser mediana, não combina com ser mais ou menos em algo. É sobre o desejo de querer ser Excelente, querer ser Referência. Krintin Neff em seu livro sobre autocompaixão nos traz uma reflexão relacionada: 

Quantos de nós nos sentimos realmente bem nesta sociedade extremamente competitiva? Sentir-se bem parece uma coisa fugaz. Especialmente porque, para nos sentirmos merecedores, precisamos nos sentir especiais e acima da média. Qualquer coisa menor soa como fracasso.

Krintin Neff, 2017

Às vezes também olha-se para a vida como se fosse apenas fases a serem conquistadas, como no jogo do Mario. Se planeja cada vez pular mais rápido, se desenvolver de forma ágil, para passar por aquela fase, e ir logo para a outra. Quando se chega na outra fase, não há a permissão interna para demonstrar possíveis dificuldades, mesmo sendo um cenário e desafios novos. E novamente surge a autocobrança de pular mais rápido, aprender rápido,  já de olho na próxima fase.

Às vezes cansamos de pular e correr rápido, e os sentimentos que surgem são muito desafiadores. Nem sempre podemos nos sentir especiais e acima da média. Muitas vezes, o resultado é devastador. Olhamos no espelho e não gostamos do que vemos (literal e figurativamente), e então a vergonha começa a tomar forma. A maioria de nós é extremamente dura em relação a si quando consegue admitir alguma falha ou defeito. Pensamos:

“Eu não sou bom o suficiente. Sou um inútil”

Krintin Neff, 2017

 

E a partir disso, podemos entrar em um ciclo de falta de motivação e energia, ou também em um ciclo de procrastinação. “Perdemos a fé em nós mesmos, começamos a duvidar de nosso potencial e perdemos a esperança. Naturalmente, esse estado de tristeza apenas produz mais autocondenação por sermos perdedores que não fazem nada. Assim, caímos cada vez mais. Mesmo quando conseguimos nos sair bem, as regras do jogo para atingir o “suficientemente bom” parecem sempre permanecer fora de alcance, o que é frustrante” (Krintin Neff, 2017). 

Essa dificuldade e cobrança pode ser observada tanto ao longo da carreira na tecnologia, mas principalmente em seu início. Há estudos que indicam alguns fatores que podem desmotivar as mulheres a permanecerem na jornada acadêmica dos cursos de computação, tais como o preconceito contra o gênero feminino, piadas depreciativas vindas de colegas de curso e também professores, bem como a baixa representatividade feminina no curso e no mercado de trabalho (Ramos e Araujo, 2022). Aprender envolve falhar, envolve ter dúvidas, e fazer isso em um ambiente majoritariamente masculino pode ser desafiador para a maioria das mulheres que escolhem uma carreira na área de tecnologia. Abrimos espaço neste texto para um relato pessoal: 

Um dia estava discutindo com algumas colegas e chegamos a um consenso: existe um sentimento de que precisamos provar a todos os homens a nossa volta que merecemos estar ali, que somos tão boas ou até melhores que os homens que estão ocupando o mesmo espaço que nós.

Essa conclusão veio depois de uma longa conversa sobre repetidas situações que vivemos onde homens – ou mulheres- duvidaram de algo que havíamos feito ou falado dentro do mundo acadêmico ou no mercado de trabalho.  

Mariana Carmin, 2022.

Esses comportamentos exigentes são aprendidos ao longo da história, e na relação com o mundo. É aprendido o que é valorizado, é aprendido a forma de se alcançar reconhecimento.  No mundo da tecnologia, as mulheres aprendem que se não fizerem um trabalho excepcional podem ter seus títulos, conquistas e trabalhos questionados, o que pode levar a um cenário de auto exigência. Segundo levantamentos de Melo, Lastres e Marques (2012) as mulheres estão em busca por afirmação profissional em terrenos tradicionalmente ocupados por homens.

Uma das partes mais desafiadoras nesse jogo, é que muitas vezes, o pior chefão da vida, será você consigo mesma. E isso pode gerar muito sofrimento. Toda a pressa, toda a cobrança, toda a rigidez, podem te paralisar e trazer prejuízos em outras áreas de sua vida.

Não há quase ninguém a quem tratemos tão mal quanto a nós mesmos.

Kristin Neff, 2017

Um risco que se corre, é ver a vida passando, fase por fase, e a atenção se direcionar sempre ao que ainda falta, e ao que ainda precisa ser alcançado. E com isso, pode-se perder o que se tem para viver no hoje.  

Isso pode se intensificar quando falamos com mulheres, mães e que trabalham. Além da autoexigência, “mãe que trabalha fora é uma das maiores vítimas da culpa” (Quednau, 2007) . A autora aborda que as mulheres exercem uma auto-cobrança ao desempenhar diferentes papéis que hoje lhe são atribuídos, tais como: mãe, profissional, esposa, mulher, filha, além da cobrança que a sociedade exerce sobre a mulher, como por exemplo ser a principal responsável pela educação dos filhos, mesmo que os pais, hoje, estejam mais participativos. Existem desafios enfrentados na conciliação da família, maternidade e carreira, e obstáculos enfrentados por mulheres ao ingressarem em cursos de exatas (Loch, Torres e Costa, 2021). Caso você se interesse mais pelo assunto de maternidade no mundo da tecnologia sugerimos uma outra leitura para você: Porque as mulheres acadêmicas estão produzindo menos durante a quarentena

Caso você tenha chegado até aqui e tenha se identificado com alguns aspectos do texto, vamos refletir um pouquinho se esses comportamentos aparecem em seu dia a dia. E para isso preparamos um questionário com algumas situações comuns que podem sinalizar comportamentos exigentes.  

IMPORTANTE: Este questionário não é um teste psicológico e não pode ser utilizado para quaisquer fins. Este questionário não substitui avaliação profissional, e nenhum tipo de laudo/diagnóstico.

  • Mesmo sabendo que o mundo da tecnologia está em constante evolução, você se cobra conhecer todas as novas linguagens, APIs, pacotes, ferramentas? 
  • Você se cobra um desempenho excelente em provas e tem dificuldade de lidar com possíveis notas mais baixas que o esperado? 
  • Você tenta sempre superar as expectativas de seus superiores ( chefes, orientadores ou professores) e fica frustrada caso alcance um desempenho apenas “suficiente”?
  • Você se compara com colegas e tenta sempre mostrar um desempenho maior e/ou notas maiores que eles ou elas?
  • Você sente dificuldade em lidar com seus próprios erros?
  • Você sente uma “não permissão” para ser inexperiente ou ter dificuldade em alguma tarefa específica? 
  • Você sente raiva de si por ser nova e inexperiente em alguma atividade específica?
  • Você sente dificuldade em reconhecer suas conquistas e seu bom desempenho?
  • Você está constantemente em busca de novas formações e aprendizados? 

Essas perguntas podem sinalizar comportamentos exigentes de você consigo mesma, a depender do seu contexto atual.

E por fim um, responda para si algumas reflexões importantes inspiradas no livro de Kristin Neff, sobre Autocompaixão:

  • Como seria para você adotar uma linguagem mais gentil e compreensiva consigo mesma, quando nota alguma falha pessoal ou comete algum erro?
  • Como você acha que se sentiria caso pudesse, de fato, se aceitar exatamente como é?
  • Como seria para você aceitar que algo é realmente difícil?
  • Como seria para você se confortar por algo que aconteceu?
  • Como seria para você lembrar que todos experimentam dificuldades na vida?

Diante disso, um convite importante é valorizar suas conquistas, valorize quem você é hoje e onde você já chegou. Buscar um equilíbrio entre as áreas da vida, como Autocuidado, Saúde e Relacionamentos e se perguntar, o que mais você gostaria de fazer para além do desenvolvimento profissional. 

Tente nutrir uma amizade consigo mesma, buscando ser sua melhor amiga. Tente nutrir um carinho por si mesma nessa trajetória do jogo da vida, esse jogo que é único e só seu. Na vida, nenhuma fase e nenhum cenário é igual para todos. Se permita ser gentil consigo mesma, se permita viver para além da competência profissional. 

Caso perceba que isso lhe traz sofrimento, se permita auxílio profissional, você não precisa dar conta sozinha.

A insegurança, a ansiedade e a depressão são extremamente comuns em nossa sociedade, e muito disso é devido ao autojulgamento, por nos martirizarmos quando sentimos que não estamos vencendo no jogo da vida.

Krintin Neff, 2017

Indicação de leituras adicionais sobre o tema: 

Autocompaixão: Pare de se torturar e deixe a insegurança pra trás” de Kristin Neff

A coragem de ser imperfeito de Brené Brown.

Os homens explicam tudo para mim” de Rebecca Solnit.

O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres” de Naomi Wolf.

Referências: 

LOCH, R. M. B., TORRER, K. B. V., & COSTA, C. R. Mulher, esposa e mãe na ciência e tecnologia. Estudos Feministas, v. 29 , n. 1 , e61470, Jun. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/wsmDtkBwsTk8JRsT5xvpQsL/?lang=pt. Acesso em: 23 set. 2022. 

MELO, H. P., LASTRES, H. M. M., & MARQUES, T. C. N. Gênero no Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil. Gênero , v. 4 , n. 2 , 73-94, Set. 2004. Disponível em: https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/31033/18122. Acesso em: 23 set. 2022. 


NEFF, K. Autocompaixão: pare de se torturar e deixa a insegurança para trás. 1. ed., Teresópolis: Lúcida Letra, 2017.

QUEDNAU, F. S. O conflito entre a maternidade e o trabalho na mulher pós-moderna. Orientador: Doutora Carlene Maria Dias Tenório. 2007. Monografia (Graduação de Psicologia) – Faculdade de Ciências da Saúde – FACS, Brasília, 2007.

RAMOS, A. I. M., & ARAÚJO, F. O. Questões de Gênero e a Evasão de Mulheres nos Cursos de Computação: Um Estudo de Caso na Região Metropolitana de Belém. In: WOMEN IN INFORMATION TECHNOLOGY (WIT), XVI., 2022, Niterói. Anais, Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2022, p. 239 – 244


Como citar este artigo:

DOS ANJOS, M.; CARMIN, M. Por que não me sinto suficiente no mundo da tecnologia? Uma discussão psicológica sobre a autoexigência feminina. SBC Horizontes, setembro. 2022. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2022/09/por-que-nao-me-sinto-suficiente-no-mundo-da-tecnologia?-uma-discussao-psicologica-sobre-a-autoexigencia-feminina/>. Acesso em: DD mês. AAAA.

Sobre as autoras:

Marcela dos Anjos

Sou Marcela dos Anjos, sou Psicóloga formada pela UFPR. Tenho formação em Terapia de Aceitação e Compromisso, e sigo a Análise do Comportamento como abordagem. Meu sonho profissional, é ajudar pessoas a viverem suas vidas com mais leveza, autocompaixão e significado 🍀

Site: https://keepo.io/marceladosanjos
Instagram: @marceladosanjos.psi

Mariana Carmin

Informata Biomédica formada pela UFPR. Mestranda do programada PPGINF/UFPR no laboratório de pesquisa HIPES. Membro do grupo WHPC.

Linkedin: https://www.linkedin.com/in/mariana-carmin

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