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Quando a IA e a Propriedade Intelectual se cruzam, como ficam a Ética e o Direito?

(Especial Núcleo de Referência em Inteligência Artificial Ética e Confiável)

Por Gilberto Martins de Almeida

Para compor a matriz objeto de análise, a intersecção entre a Inteligência Artificial (IA) e a Propriedade Intelectual (PI) será desdobrada nas vertentes da proteção da IA pela PI e da proteção pela PI de obras criadas com a IA. A visão de ambas é fundamental para superar as dicotomias que se observa quando a abordagem estuda unicamente a proteção da IA como tecnologia ou tão-somente a proteção dos resultados de sua aplicação. 

De fato, a necessária harmonização e equilíbrio de interesses entre os participantes do ecossistema da IA exige evitar atribuição apriorística de direitos de propriedade a certo grupo. Ao contrário, contrastar as diferentes óticas permite vislumbrar critérios úteis para tratar a variedade de situações e injunções que se apresentam, descritas nos tópicos a seguir.      

A proteção pelo Direito de Autor 

Na primeira vertente indicada na Introdução acima, a IA pode ser protegida por diversos regimes de propriedade intelectual: patentes, know-how, segredos comerciais, marcas, e Direito de Autor, sendo que este último desperta maior número de polêmicas por ter sido concebido para amparar juridicamente criações humanas, e não “criações” por máquinas.

O Direito de Autor surgiu ao longo do tempo para reconhecer e proteger a originalidade e independência de obras resultantes da aplicação do intelecto humano, na premissa de que cada indivíduo possui personalidade própria, tendente a se expressar de modo singular.

Assim, mesmo quando o estilo pessoal do criador não se manifesta em campos tradicionais como o âmbito literário, artístico ou científico, é possível divisar direitos de autor na medida em que tenha havido intervenção humana com carga aquilatável de criatividade e originalidade.

Essa, aliás, foi a discussão que permeou o mundo da PI nos anos 80 quando se debatia sobre se programas de computador mereciam proteção pelo Direito de Autor [1]. 

Ao fim de debates alimentados por considerações jurídicas, técnicas e econômicas, se decidiu que a atividade de programação dá margem a originalidade de “escrita” (em código), embora os programas possuam também função utilitária. Considerando de forma integrada ambos os aspectos, foi convencionado um Direito de Autor especial, que trata de escrita não exatamente literária, porém proveniente do estilo pessoal dos desenvolvedores dos programas.

A IA não deixa de ser uma aplicação da atividade de desenvolver programas, e portanto a ela também se deveria estender o manto do Direito de Autor.

Isto parece tanto mais factível quanto a IA opere de modo predeterminado pelo programa.  Nesse sentido, o elo que liga a mente humana ao resultado final vai se esgarçando, à medida em que se multiplicam os resultados imprevistos e os black holes

Na pergunta se a IA pode ou não ser protegida pelo Direito de Autor a resposta parece ser, de acordo com a corrente majoritária, de que a proteção alcançará apenas até onde vá a efetiva participação humana.

A rigor, há também aqueles que sustentam que quando uma criação por IA não puder ser atribuída a ser humano, que então seja incorporada ao domínio público, como meio de incentivar a irradiação do acesso a obras, em benefício coletivo, que teoricamente haveria de em seguida refluir para processos produtivos.

De como e em qual medida a PI protege obras criadas com uso de IA e para tal, tomemos como hipótese a aplicação do Direito de Autor, com as limitações acima indicadas, a obras de artes plásticas ou literárias criadas mediante emprego de machine learning?

A primeira tendência de resposta seria de repetir a conclusão de que a proteção autoral encamparia apenas a esfera de atuação humana. É que a contemporaneidade não vê a arte (aqui tomada em sentido que compreenda distintas modalidades, como a literatura, as artes plásticas, o cinema, e outras) como simples sucedâneo da realidade, mero retrato visando representação do real.

Tanto assim, que no terreno das artes plásticas, após o auge, nos tempos do classicismo ou romantismo, do ideal de representação fiel, aprimorada com as técnicas desenvolvidas no Renascimento, seguiu-se a partir do modernismo a tônica de “interpretar” o real, primeiro com as lentes do impressionismo, depois com a desconstrução promovida pelo cubismo e os aspectos oníricos priorizados pelo surrealismo, e prosseguindo com o superdimensionamento de escala utilizado pela pop-art, enfim, num sem-número de movimentos em série que destacavam a pessoalidade do autor, em contraponto à aparência externa da cena retratada.

Atualmente, já no contexto da arte contemporânea, a obra costuma ser pensada como conceito, e processo, mais do que como resultado. 

Ou seja, o uso da IA no fazer artístico a coloca no centro da obra – a chamada “problematização”. Nessa linha, a IA como modus operandi constitui tema em si, provoca controvérsias, desperta consciências, e assim sucedendo, colabora para o papel da arte preconizado pela arte contemporânea. E ao assim integrar a arte, em tese, se torna protegível.

Na prática, se uma obra de arte contemporânea se propuser a discutir a intervenção do acaso na produção da arte, o imprevisível da criação pelas máquinas poderia ser equiparado a conceito ou processo, e a partir daí, uma obra normalmente não protegível pelo Direito de Autor poderia vir a sê-lo. 

O Copyright, sistema de proteção autoral vigente no Direito de origem anglo-saxã e praticado em países como a Inglaterra e os EUA, se preocupa sobretudo com a circulação da obra no mercado e por isso, além de proteger a criatividade em si, protege também o esforço (sweat of the brow) e tempo dispendidos. Exemplo disto se tem no Digital Millenium Act norte-americano, que ambiciona proteger o investimento realizado. Nessa condição, o sistema do Copyright pode ser mais uma possibilidade para abrigar a IA como meio de produção de obras artísticas protegíveis pelo Direito de Autor, avaliando o nível de esforço e contribuição envolvidos. 

Também aplicando este critério, porém conduzindo a desfecho distinto, se tem o caso movido pela empresa Torah Soft Ltd., no qual a decisão foi favorável ao programador do software, em vista de ter sido constatado que sua contribuição fora a maior para o desenvolvimento do produto final.

Cabe ainda ver que na sistemática do Direito de Autor existe uma subdivisão relevante, a que separa direitos morais, atribuíveis unicamente a pessoas físicas, e direitos patrimoniais, que podem ser de titularidade também de pessoas jurídicas, como no caso do produtor de uma obra para a qual ele contrate os criadores e coordene os recursos para a criação – assim, um organizador que disponibilize a IA como fator de produção para os criadores, poderá ser o titular dos direitos patrimoniais sobre obra criada com IA.

Pode também a titularidade de direitos resultar de negociação contratual. De fato, a legislação autoral prevê que nos contratos de desenvolvimento sob encomenda, os direitos cabem normalmente ao cliente-encomendante, seja ele pessoa física ou jurídica.

Vale por igual atentar em que a proteção autoral pode recair não apenas sobre o algoritmo mas também em relação aos bancos de dados, datasets e modelagens, utilizados direta ou indiretamente pela IA. A seleção embutida nos campos de dados e na forma de cruzar dados ou de desenhar modelos também contam como criatividade e originalidade. Da mesma forma, em relação à compilação subjacente à estruturação dos bancos de dados e datasets. 

Como se pode notar, as zonas de intersecção entre IA e PI são várias, e moldam respostas sob medida para cada situação, considerando a natureza e os detalhes respectivos, no mister de avaliar se a proteção intelectual é cabível ou não.

Essa consideração sobrevém em especial quando se aborda a utilização da IA como instrumento de derivação de obras originais. De fato, se pode determinar algoritmicamente que robôs partam de um ou mais quadrosde um pintor ou de um romance literário preexistente, para se afastarem da concepção original deles, de modo que resulte obra que não possa ser considerada como cópia da obra primígena. 

Nessa trilha, podemos antever situações em que a nova forma seja tão diferente da anterior, que se possa considerar como atendido o requisito de originalidade (especialmente, se abstrairmos a questão incidental de a obra ter sido, ou não, predeterminada pela programação). 

Porém, a originalidade de forma não é o único requisito do Direito de Autor: ele também pressupõe desenvolvimento independente. Isto é, desde que uma obra não tenha sido criada mirando a outra, ela pode ter proteção autoral ainda que coincida com a forma da outra.

Em outras palavras: até que ponto tomar uma obra original como parâmetro no ponto de partida deveria ser considerado como desenvolvimento independente? Afinal, implica em ter na sua origem uma obra preexistente.

A propósito – e isto pode ser um item de especial para professores e pesquisadores -, devido à realidade de que a IA tanto pode ser usada para identificar plágios quanto para despistá-los, esse tema interessa particularmente ao meio acadêmico, eis que trabalhos apresentados por alunos ou pesquisadores como sendo de sua autoria porém tendo sido originados de programas descaracterizadores de plágio deveriam, em princípio, ser tidos como desprovidos do labor intelectual que se espera, e nesse particular a discussão sobre o requisito de independência interessa simultaneamente tanto ao aspecto da propriedade intelectual quanto às facetas da honestidade acadêmica, produção intelectual, e outras.

Aliás, um aspecto correlato é de que em Direito de Autor a obra derivada requer autorização do autor da obra originária. Ou seja, em tese, um autor poderia barrar que obras derivadas fossem produzidas, exibidas ou comercializadas, ou que compilações de dados fossem “mineradas”.

Vale notar que o tema da IA e a PI remete por igual a repercussões em outros ramos do Direito, como o da defesa do consumidor e o da proteção de dados pessoais.

Aos olhos dos consumidores, a rastreabilidade da IA deve ser transparente, para se comprovar possíveis erros ou defeitos, porém essa visibilidade pode esbarrar em segredos comerciais do algoritmo, contrapondo direito do consumidor e direito da propriedade intelectual. 

Semelhantemente, a proteção de dados pessoais pode exigir a prova de que determinada decisão automatizada não foi viciada por viés discriminatório. Desvendar essa condição pode também conflitar com segredos comerciais, embutidos em bancos de dados ou em aplicações de IA. Nesse caso, contrapondo proteção de dados pessoais e propriedade intelectual. 

Em suma, o entrecruzamento da IA com a PI é confluência rica em aspectos éticos e legais e pródiga na diversidade da casuística associada. Isto induz a necessidade de interpretação caso a caso e de harmonização de interesses ao longo da cadeia da IA. Por sua vez, tais desafios reivindicam visão de uma arquitetura de conceituações e soluções, mais que exames de elementos pontuais, por mais aprofundados que possam ser. 

Em prol da disseminação sustentável do uso crescente da IA, cabe à comunidade ligada à IA – pesquisadores, desenvolvedores, professores, produtores e usuários – zelar simultaneamente pela observância da propriedade intelectual de sistemas de IA e pela responsabilidade de os utilizar para resultados que prestigiem direitos de terceiros. Afinal, o respeito à propriedade intelectual é eixo central e denominador comum dessa proteção em mão dupla.

Referências

[1] Salomão, Luís Felipe e Taul, Caroline Somesom, Inteligência artificial e propriedade intelectual: fundamentos teóricos e legais de proteção, in O Direito Civil na era da Inteligência Artificial, São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 757.

Sobre o autor

Gilberto possui graduação em Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1983) e Mestrado em Direito pela Universidade de São Paulo (2000). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Direito da Informática e da Internet, lecionando no Curso de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro desde 1996, e em cursos de especialização em universidades no Brasil e no exterior. Autor de artigos em livros e em publicações especializadas, no Brasil e no exterior.

Como citar esta matéria

Martins de Almeida, Gilberto. Quando a IA e a Propriedade Intelectual se cruzam, como ficam a Ética e o Direito?. SBC Horizontes, SBC Horizontes, Fevereiro 2023. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2023/02/quando-a-ia-e-a-propriedade-intelectual-se-cruzam-como-ficam-a-etica-e-o-direito/>. Acesso em:<data>

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