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Admirável gene novo: Qual o papel do direito frente a biotecnologia do CRISPR-CAS9?

Admirável gene novo: Qual o papel do direito frente a biotecnologia do CRISPR-CAS9?

por Julia Gandin Araujo, Júllia Andrade de Castro, Yasmim Kamila da Costa Ribeiro e Adelaide Helena Targino Casimiro

(Especial GEDI)

A biotecnologia, para além das histórias de ficção científica, se faz presente no cotidiano das pessoas. Quando se fala, principalmente, de edição genética, muitos medos invadem o imaginário social e questões éticas são levantadas, pois uma coisa é certa: as ações realizadas dentro de um laboratório podem impactar a vida do ser humano e a sociedade na qual está inserido. Diante a isso, as diferentes ciências são chamadas para dialogarem entre si com o intuito de desenvolver reflexões e resoluções efetivas. Sendo assim, questiona-se: qual seria o papel do direito frente a essa realidade?

Conceituando o CRISPR-CAS9

Antes de comentar um pouco mais sobre as aplicabilidades dessa biotecnologia, vale a pena uma breve explicação sobre o que é a técnica e como ela funciona. Com isso, o CRISPR configura-se como uma abreviação para palavra “Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats”, Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas, isto é, um sistema molecular formados por enzimas, fragmentos de DNA viral e um RNA guia. 

Dentre essas enzimas, existe a proteína Cas-9, chamada de tesoura molecular, pois, sua função consiste exatamente em cortar parte da molécula de DNA para inserir o fragmento desejado. Logo, pode-se fazer uma comparação didática: a ação do complexo CRISPR-Cas9 age de modo parecido a arte de corte e colagem, sendo a proteína Cas-9 a tesoura e o sistema CRISPR o instrumento que colará.

Aqui está! Tem-se a chamada edição genética, desejável por uns, temida por outros. De início, a técnica foi amplamente explorada pela indústria alimentícia, desenvolvendo os organismos geneticamente modificados (OGM), os quais vão desde plantas editadas para serem mais resistentes e mais nutritivas até animais modificados para fins laboratoriais

Atualmente, o CRISPR-Cas9 apresenta-se como uma possibilidade de uso clínico para o tratamento de doenças, uma vez que o sistema possui a capacidade de diagnósticos mais rápidos e econômicos (MELLO, 2021). No entanto, é importante perceber que esse uso implica na abertura da aplicação da edição genética em seres humanos. 

A construção do admirável mundo novo

Em Admirável Mundo Novo, famosa obra do escritor Aldous Huxley, o leitor é apresentado a um mundo no qual a edição genética em seres humanos torna-se algo comum e atinge uma escala industrial. Isso mesmo! No universo pensado por Huxley o desenvolvimento tecnológico culmina na fabricação de pessoas, selecionando sua genética para corresponder a uma função pré-escolhida na sociedade.   

À primeira vista, é possível observar que o uso do CRISPR-Cas9 traz consigo diversas reflexões sobre a potencialidade da técnica desde um cenário mais otimista, à exemplo do tratamento de enfermidades, bem como um cenário mais pessimista, no qual a biotecnologia amplifica as distinções e problemáticas já existentes. Haja vista que é perceptível que a edição genética leva o meio social rumo a mudanças nos mais diversos aspectos da realidade (REIS; OLIVEIRA, 2019).

Com isso, na segunda metade do século XX surge a consciência de que os avanços científicos deveriam ser observados sob uma perspectiva ética, optando-se por um direcionamento mais crítico acerca das novas pesquisas, haja vista que na conjuntura político-social estava em desenvolvimento maiores discussões sobre autonomia e liberdade (RIVABEM, 2017, p.284).

Ficava evidente que o processo científico era importante, mas o mesmo não poderia ocorrer a “qualquer custo” ou por meio de condutas antiéticas.

Diante a isso, o termo bioética nasce referindo-se a um estudo do comportamento humano diante das ciências biológicas (POTTER, 1971), ou seja, viu-se a necessidade de as ciências encontrarem um diálogo entre si mediante sua interdisciplinaridade.  

Após compreender o conceito de bioética, torna-se importante comentar quais seriam os pontos de intercepção entre ela e a técnica do CRISPR-Cas9. Haja vista que ao longo do texto falou-se sobre certos temores existentes no meio social sobre a técnica.

Novo mundo, velhos problemas

Além de “Admirável Novo Mundo” outra obra que chama bastante atenção na ficção científica seria o inovador “Frankenstein” (SHELLEY, 2020), o qual narra em suas linhas a jornada de um criador e sua criatura, aquele que deveria ser um ser perfeito, porém acabou considerado defeituoso, sendo rejeitado pelo seu criador e entregue à mercê de um mundo hostil. A maior reflexão do livro ocorre quando há o confronto entre os dois personagens descritos anteriormente e a reflexão vem à tona: a criatura defeituosa nada mais é do que um reflexo do seu criador, um ser humano também defeituoso, cheio de falhas e dilemas.

Não há novidade alguma em dizer que o meio social possui problemáticas. A questão aqui discutida envolve questionar criticamente se de fato a tecnologia promove um desenvolvimento dentro do meio social ou as mazelas sociais possuem a capacidade de transformar uma técnica em um instrumento de hostilidade. 

Conforme os estudos realizados, acredita-se na veracidade das duas proposições: realmente os avanços da biotecnologia trouxeram um cenário otimista na sociedade, por exemplo, se antes um diagnóstico de diabetes significava morte sofrida, atualmente muitas pessoas detém a doença, porém, possuem qualidade de vida. Ainda assim, é preciso lembrar os exemplos de quando os avanços tecnológicos ocasionam situações trágicas.

O maior exemplo a ser citado envolve a famosa fórmula de Albert Einstein, E = mc2, uma possibilidade de produzir grande capacidade energética. Em contrapartida, a compreensão dessa fórmula abriu para o desenvolvimento da chamada energia nuclear, resultando na criação das armas atômicas, as quais quando utilizadas produzem um efeito desastroso, como ocorreu nas cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945. Existe uma dificuldade em dizer precisamente o número de mortos pelas duas bombas, cálculos mais conservadores apontam para 110 mil pessoas, no entanto há outros cálculos que apontam para 250 mil. Além disso, também deve-se levar em consideração milhares de pessoas que sobreviveram, mas morreram anos depois mediante problemas de saúde devido ao contato com a radiação (SERRANO,2020).

O que toda essa discussão se relaciona com a edição genética promovida pelo CRISPR-Cas9? É possível enumerar alguns problemas de cunho ético presente na aplicabilidade da técnica em seres humanos: 

  • A questão da privacidade da informação genética (WESTPHAL, 2020)
  • Preservação de direitos das populações vulneráveis (WESTPHAL, 2020)
  • Transparência de informações acerca dos experimentos e a correta submissão dessas pesquisas aos órgãos de controle (SÁ; NAVES, 2021)
  • O alto risco da utilização da técnica para manipulação embrionária (SÁ; NAVES, 2021)
  • Os limites aceitos da melhoria genética dentro no núcleo social (SANDEL, 2021)

Todos os dilemas apresentados acima fundamentam-se no temor do CRISPR-Cas9 de amplificar as questões de distinção social, preservação da biodiversidade (o patrimônio genético está ligado a um nicho ambiental) e preconceitos. Portanto, compreende-se que:

  • Há diversas violações de privacidade e informações no contexto brasileiro. Por exemplo, no ano de 2021, o Ministério da Saúde sofreu dois ataques harkers, ou seja, milhares de dados da saúde foram expostos. 
  • O desenvolvimento da técnica depende das pesquisas e experimentos realizados, logo, é preciso de pessoas para formar grupos de experimentação. No entanto, quem são essas pessoas? Exemplos históricos, como o caso Tuskegee, mostram que infelizmente testes antiéticos acabam por envolver indivíduos de grupos vulneráveis.
  • Em 2018, o governo chines foi acusado de falta de supervisão em relação ao caso das gêmeas Lulu e Nana, por sua vez, um caso de manipulação embrionária.
  • Os casos de terapia gênica em atletas, ou seja, usar a técnica CRISPR-Cas9, não para tratar doenças hereditárias do atleta, mas sim com o intuito de aprimorar suas habilidades. Seria justo um atleta geneticamente modificado mediante tratamentos genéticos competir com outro que não possui as mesmas condições físicas?

 

Desde o início deste artigo buscamos evidenciar a tendência contemporânea da multidisciplinaridade entre as áreas do conhecimento, tais pontos de interseção ocorreram por meio do diálogo (SÁ; NAVES, 2021). A biotecnologia traz consigo debates que transpassam as questões biológicas e direcionam-se às ciências sociais e humanas. 

Conforme visto, a técnica CRISPR-Cas9 demonstra ser uma potencialidade impressionante, sendo uma tecnologia que desponta em pesquisas e aperfeiçoamentos nos próximos anos.

As indagações éticas produzidas no meio social são relevantes para compreender-se qual caminho a humanidade pretende traçar com o desenvolvimento da engenharia genética.

Diante a isso, percebe-se uma necessidade de delinear, efetivamente, uma regulamentação que evite a objetificação do indivíduo, bem como proteja seus direitos fundamentais (ARAUJO; CASTRO; RIBEIRO; CASIMIRO, 2021), dentre eles vale a pena destacar a autonomia e a dignidade humana. Com a regulamentação dessas práticas haverá uma maior perspectiva da preservação de direitos dos envolvidos, por fim, demonstrando o papel do direito em relação ao CRISPR-Cas9 e a necessidade de se acompanhar as novas tecnologias e garantir a segurança das pessoas perante estes avanços.

Referências 

ARAUJO, J. G.; CASTRO, J. A.; RIBEIRO, Y. K. C.; CASIMIRO, A. H. T. Engenharia genética na prevenção de doenças: perspectiva da jurisprudência no Brasil. In: RIBEIRO, Leonardo Jensen. Direito civil e Direito constitucional e suas nuances. Campo Grande: Inovar, 2021. Disponível em: https://www.editorainovar.com.br/_files/200001964-ec5d9ec5dc/LIVRO%20-%20DIREITO%20CIVIL%20E%20DIREITO%20CONSTITUCIONAL%20E%20SUAS%20NUANCES.pdf?ph=a3ca205532. Acesso em: 24 dez. 2021.

MELLO, Ramon Andrade de. CRISPR: uma ferramenta de edição genética no tratamento do câncer. Veja saúde, 2021. Disponível em: https://saude.abril.com.br/blog/com-a-palavra/crispr-uma-ferramenta-de-edicao-genetica-no-tratamento-do-cancer/. Acesso em: 08 nov. 2021.

POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. New Jersey: Prentice Hall, 1971.

REIS, E. V. B.; OLIVEIRA, B. T. CRISPR-CAS9, biossegurança e bioética: uma análise jusfilosófica-ambiental da engenharia genética. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 16, n. 34, p. 123-152, jan./abr. 2019. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/. Acesso em: 27 dez. 2021.

RIVABEM, F.S. Biodireito: uma disciplina autônoma? Revista Bioética. v. 25, n. 2, p. 282-289, ago. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/vpVLjFZNxCSPhZNwcqtVpMz/?lang=pt. Acesso em: 10 nov. 2021

SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 5. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.

SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: Ética na era da engenharia genética. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

SERRANO, Carlos. Hiroshima e Nagasaki: como foi o ‘inferno’ no qual morreram milhares por causa das bombas atômicas. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-a05a8804-1912-4654-ae8a-27a56f1c2b8a. Acesso em: 30 dez. 2021.

SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o Prometeu moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

WESTPHAL, Euler R. O Oitavo Dia: na era da seleção artificial. Joinville: Urbem Pluviam, 2020.

Sobre as autoras

Julia Gandin Araujo – Estudante de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), 3º período. No ano de 2021 teve participação na Gestão da Sociedade de Debates Potiguar. Produz conteúdos literários no perfil Aventura Sob Páginas e narra suas experiencias acadêmicas em Diário de uma Jus Estudante.  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1804-4979. E-mail: ju.gandim@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/539008534101970.

Júllia Andrade de Castro – Acadêmica de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), 3º período; Técnica em Controle Ambiental pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Em 2021 integrou a Gestão da Sociedade de Debates Potiguar. É artista visual e criadora de conteúdos fotográficos no perfil @juporai_. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0293-5892 E-mail: julliandrade_@hotmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/4342321319870230

Yasmim Kamila da Costa Ribeiro – Estudante de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro dos grupos de pesquisas “Interfaces entre o Direito das Relações de Consumo e o Direito Animal” e “A função do direito na conservação e uso sustentável dos recursos marinhos brasileiros”. E-mail: yasmimkamila35@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6858461051666316. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4955-4069.

Adelaide Helena Targino Casimiro – Doutoranda e Mestra em Ciência da Informação, e Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).  Participante do Grupo de Pesquisa Informação, Aprendizagem e Conhecimento (GIACO). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9088-9621. E-mail: adelaide_helena@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3440365758494156.

Como citar esta matéria

ARAUJO, Julia; CASTRO, Jullia; Ribeiro, Yasmim; Casimiro, Adelaide. Admirável gene novo: Qual o papel do direito frente a biotecnologia do CRISPR-CAS9? SBC Horizontes, SBC Horizontes, Janeiro 2022. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2022/01/admiravel-gene-novo:-qual-o-papel-do-direito-frente-a-biotecnologia-do-CRISPR-CAS9?/>. Acesso em: <data>

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