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A IA e a quarta ferida da humanidade

A IA e a quarta ferida da humanidade

Autora: Lucia Santaella (20/04/2023)

 

As tecnologias, que, de alguma forma, substituem ou expandem a capacidade do trabalho ou da criação humana, sempre provocaram reações mais ou menos intensas. Que sirva de exemplo o ludismo, movimento que ocorreu na Inglaterra durante o século 18, como reação dos trabalhadores braçais contra as máquinas de tear. Um pouco mais perto de nós, lembremos o advento da fotografia e a crise que provocou nas tradicionais formas de representação visual, crise à qual Walter Benjamin dedicou um antológico ensaio sobre “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. O século 20 é fértil em outros exemplos. Basta citar o advento do computador que chegou a despertar em acadêmicos a convicção de que o computador desumaniza o ser humano.

Nada, entretanto, poderia ser comparado ao verdadeiro abalo sísmico que o ChatGPT e os outros sistemas de IA generativa de imagens estão provocando pelos quatro cantos do mundo, agitando a área empresarial que é sempre a primeira a correr atrás das novidades em prol do crescimento da produtividade e repercutindo em todas as outras esferas de informação sob efeito da conectividade onipresente.

Como entender as razões da intensidade de efeitos muitas vezes radicais e quase sempre incrementados psicologicamente por emoções desmedidas que o ChatGPT está provocando? Não faltam diagnósticos de extermínio da humanidade sob ação da IA. Diante disso, sem de modo algum minimizar os riscos e imensos problemas de diversas ordens que estão emergindo, Dora Kaufman e eu estamos em vias de publicar um artigo acadêmico que lança a hipótese de que a IA, que veio à tona com a IA generativa, está colocando a humanidade na travessia de sua quarta ferida narcísica.

Ptolomeu, Copérnico e Galileu, os heróis do heliocentrismo tiveram de enfrentar imensas dificuldades diante da recusa implacável do fato de que a Terra não era o centro do universo, uma recusa que acabou por levar Giordano Bruno a queimar na fogueira. Essa foi a primeira ferida narcísica. A humanidade protege seu narcisismo imaginário com veemência e até violência a quaisquer ameaças de rebaixamento.

A segunda ferida narcísica, veio com Darwin. Encontrar-se na sequência evolutiva dos seres vivos, não obstante o grande material de pesquisa empírica dessa verdade, tornou-se inaceitável para o humano, alimentado que estava na sua crença de ser uma criatura de Deus com a missão de reinar como senhor absoluto sob a luz de sua gigantesca autoestima.

À psicanálise estava reservada a terceira ferida narcísica, muito bem descrita por Freud, a saber, somos sobre determinados pelo inconsciente, uma instância que foge a qualquer controle racional. Nossas pulsões e desejos não são racionais, nem exercidos de forma consciente. Vem aí a demonstração de que o humano não é senhor e tropeça em sua própria casa, a saber, a casa de seu pensamento, sentimento e conduta.

Propõe-se agora que o narcisismo humano, seu exacerbado orgulho, a duras penas conservado, com a IA, em especial com esse Chat que conversa como se fosse gente, está sob efeito da sua quarta ferida. Basta nos colocarmos à escuta do imensurável alarido e da nervosa agitação que tomou conta do mundo há três meses para concluir que deve haver alguma probabilidade de que a quarta ferida está doendo muito.

 

Como citar este artigo:

SANTAELLA, Lucia. A IA e a quarta ferida da humanidade. SBC Horizontes, 20 abr. 2023. ISSN 2175-9235. Disponível em: <http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2023/04/quarta-ferida>. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Lucia Santaella é pesquisadora, escritora e professora titular na pós-graduação em Comunicação e Semiótica e em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, ambos da Pucsp.
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